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quarta-feira, novembro 28, 2007

METAMORFOSE DA PEDRA ATRAVÉS DA LUZ




foto de rocha de sousa
A cor não existe. Ou melhor: a cor não existe nas coisas. Tudo o que vemos diversifica-se na aparência e sobretudo na cor através da luz, com as diferentes radiações que a deteminam e se formam em comprimetos de onda, os quais, por sua vez, bombardeiam tudo em volta. As inúmeras constituições moleculares e atómicas das matérias expostas à luz permitem a sua reflexão mais ou menos diferenciada, o que chega à retina em efeitos graduados. Se a nossa retina não tivesse células sensíveis aos comprimentos de onda das radiações comportadas pela luz, a percepção que formaríamos de tudo o que nos rodeia acabaria por plasmar o visível num branco mais ou menos cortado por sombras cinzentas ou negras. Há um pintor que padece desta anomalia e tudo o que faz é a preto e branco, de aparência surda e dramática. Ele conhece bem o seu problema e por isso pode tirar partido de tal contingência. Ao usar o vermelho e o verde na área das sombras, fazendo emergir o resto de tintas mais luminosas, o resultado, para o pintor, é harmónico na graduação de valores monocromáticos. Mas, para nós, a obra constituída ganha ao mesmo tempo a maior das estranhezas e uma força brutal. Esta nossa exploração de hoje, com base numa fotografia tratada, mostra-nos o efeito de valoração e significação que os três níveis de registo causam no plano da percepção visual. O homem extrai muitos efeitos, conraditórios ou harmónicos, dos seus conhecimentos neste domínio, e das experiências que retém, manipulando com diversos intuitos plásticos ou simbólicos a qualidade visual das coisas vistas ou imaginadas. E porquê as imaginadas? Porque o imaginário está naturalmente contaminado pela complexa experiência da visão e do mundo de aprendizagens, sob os indicadores da luz, que esta fornece à vida humana.

sábado, novembro 24, 2007

MANIPULAÇÕES FOTO-PLÁSTICAS




As transformações que se verificaram, durante o século XX, no domínio das disciplinas de índole artística, como já vimos noutros locais deste blog, abriram o mundo das artes plásticas a um grande número de casos experimentais, à desconstrção e reconstrção da realidade, num sentido de pesquisa, por vezes quase arqueológica, enfrentando a «mentira» de certas novas relações sobre o visível, para conferir mais verdade às aparências que percepcionamos todos os dias.
De um jornal meio amarrotado, onde «sobrava» uma fotografia sobre o lixo urbano, usei os meus polos de sensibilidade para seleccionar bocados de peça. Várias vezes, com maior ou menor densidade de aparência restante. Depois passei esse material para um suporte programático mais tolerável quanto à manipulação da cor e da própria forma. Não dispunha de um pincel, dispunha de vários, a par de meios riscadores rectilineos, capazes de todos os arabescos, além
de simulações de spray e de utensílios de preenchimento automático em várias zonas com valores tonais de contraste e aproximação. Parece um aparelho de culinária. E, em certa medida, as semelhanças emergem de cada acção. Só que isso é apreciável quando estamos a trabalhar com tintas e pincéis de verdade. Aqui resta-me o teclado e os cliques de formulação diverisificada do imediatismo do enter.
Os verdadeiros problemas técnicos acontecem no domínio da mutação dos elementos, sem grande predisposição para ilustrar uma ideia, antes para criar novas ideias com a raridade surpreendente de centenas de encaixes, sobreposições, quebras, contornos, harmonias cromáticas -- outra imagem do lixo, porventura, que nos induz na condensação de novas figuras de sedução visual, dentro das quais parece possível abrir outras janelas para a realidade, acasos a que nos é acessível emprestar cúmulos de significação, um estranho ruído contemporâneo, a face do real sujeita a outros climas donde se extraiem coisas, apenas coisas, e contudo vibrando no contexto da nossa atenção quotidiana ou contemplativa.

segunda-feira, novembro 19, 2007

BELAS-ARTES E SEGREDOS CONVENTUAIS

SOBRE UM LIVRO QUE DESVENDA
OS ATRASOS SOMBRIOS DO ENSINO ARTÍSTICO

Estes dois excertos foram escolhidos de um livro de rocha de sousa que vai sair dentro em breve e que põe a nu, pela primeira vez, um longo percurso de desdém pelas artes e pela cultura, significativamente traduzido antes e depois do 25 de Abril de 74, durante décadas de humilhação de professores e alunos, Escolas sem meios, vigiadas, sem cumprimento das carreiras dos docentes e das reformas entretanto saídas em 1957, por último em 1976, treze anos em que os artistas ali trabalhando, roubados das categorias a que deviam aceder, conseguiram, ainda sem quadros, obter do governo a consolidação das Escolas Superiores de Belas Artes em Faculdades -- a de Lisboa na Universidade de Lisboa e que só há pouco dispôs das primeiras categorias. Das seguintes também, finalmente até catedrático. O país e os brasileiros do Chiado nunca quiseram perceber, nem quiseram tentar, a realidade das batalhas travadas, das metodologias modernas que chegaram a ser clandestinas, do incumprimento de leis que remeteram para a designação de primeiros assistentes personalidades raras, duas décadas esquecidas do acesso a Professores Auxiliares. Perante governos que até o design baniam, largos anos depois da «revolução», pode fazer-se uma ideia, apesar de tudo, da perda em demissões e do desinteresse pela prestação técnico-artística que os novos licenciados poderiam oferecer ao país, desde um verdadeiro ensino atístico até à defesa do espaço urbano, do ambiente, das instituições regionais onde saberiam fundar novos polos dedicados ao entendimento da cidadania e de objectivos de vida capazes de inverterem a desertificação do interior.

primeiro

Helena, um belo prelúdio de amor e as fantasias desfazendo-se no umbral da porta, acenos distraídos, um cheiro a bolos daqui a pouco. Comia o meu bolo de arroz em passeios sem nexo no corredor que dava passagem para o atelier de modelo vivo. Bebia as minhas próprias lágrimas virtuais, humilhado pela mediania do exílio e pela cada vez mais clara pobreza desactualizada daquele curso -- Aldemiro como penosa imagem de tudo isso, professor amável mas inútil, refém da sua única corda vocal e das bibliotecas e dos museus que lhe favoreciam certas descobertas a par do trágico comportamento do século. Tombavam tectos de novo, as abóbadas tinham fissuras inquietantes, os canos vertiam fios de água para dentro das grossas paredes, havia humidade um pouco por toda a parte, vozes longe, na envolvência da realidade e da memória. Bolor. Bolores nos arquivos de belos desenhos arquitectónicos e cópias de ânforas do Mediterrâneo. Caves cheias de «Diários do Governo» e de ratos, num fedor que emergia também de outras caves mais fundas, esgotos, labirintos de morte. Como no cinema. Mas sem a fúria e a vertigem de travellings impossíveis. Quem descesse a essas distantes cavernas da civilização contemporânea, numa deriva de que jamais sairia, usando em todo o caso lanternas e máscaras, formaria, a curto prazo, passos arrastados, brevíssimos, imersos na lama escorregadia ou nos vales mais profundos onde uma água barrenta, talvez esverdeada, anunciaria o aventureiro, daí a pouco borbulhando em torno do seu pescoço.

segundo
«Também tu, mulher? Esta casa vai desabar, que é que julgas? O Firmino está feito com o Paulino, sabem de tudo, encontram-se com o Salazar durante a noite, mandam prender comunistas. Eu bem vejo os quadros do Mestre Salgado, enrolados debaixo do móvel de pau preto, à espera dos gajos da fronteira. A Cova Funda está cheia de ratos, crostas de caca, bolor em volta. De noite são os morcegos, aquelas asas de pano, pretas, num desassossego. Mas dentro do lixo há sempre um anel de brilhantes, noivas mortas, véus. E as molduras dos quadros roubados. E o sangue da violação. E as argolas e as correntes penduradas, cheias de ferrugem. As noivas eram crianças abandonadas na cripta, quando os cavalos se afastavam e batiam com ferros nas pedras da calçada. Tive os esqueletos das meninas nas minhas mãos, sobraram em monte depois das obras de 1911. Obras e reformas, sim. Foram os republicanos que mandaram edificar os casarões de escultura e pintura. Aproveitaram as escadas em caracol, descendo e subindo vezes sem conta entre fantasmas de frades e de freiras. A história levou-os mais fundo. A um lugar de cisternas e túneis lamacentos, donde removeram velhas armaduras semi-desfeitas, ainda habitadas pelas ossadas dos soldados mortos no labirinto. É tudo um labirinto. As estátuas antigas haviam sido modeladas em pedra. Os gessos armazenados. Foram todas enviadas, as estátuas, aos bocados, no bojo dos veleiros, para o Brasil. Nós somos os indigentes abandonados na fossa, ou aí dispersos pelos campos, mas esses campos secaram, amaldiçoados, desde o fim do Império e já não são Portugal. O Mestre Macedo tinha documentos que falavam destas coisas. Ele quase endoideceu quando, perseguido pelos homens do 28 de Maio, descobriu que já não vivia no seu país. Salazar, dez anos mais tarde, deu-lhe razão. Porque a pátria que o ditador não discutia, nem erstava à venda, era o Estado Novo, não era Portugal. Tudo começara a desfazer-se com o desaparecimento de D. Sebastião. Houve especiarias, a par do escorbuto, um tempo de viagens. O rei menino nunca mais voltou e não faltou quem dissesse, quando a corte fugiu para as terras achadas pelo Cabral, que alguém padeceu muito num convento anterior a este. Traziam de certa masmorra, para o caneiro que ía dar ao rio, roupas sujas, potes cheios de fezes, sangue e comida vomitada».
«Cala-te, Acácio!», gritou Felismina.
«Aquele sangue pertencia ao último português».
«Não digas asneiras, Acácio!»
«Todos os portugueses que voltam à terra onde existiu o reino de Portugal, voltam de madrugada, escondendo-se nos grandes nevoeiros da planície».

*

O primeiro excerto envolve referências a um clima escolar dos anos 50, assim revelando a natureza das carências, das salas degradadas e de uma pedagogia que já não fazia sentido.

O segundo excerto traduz uma «fala» do funcionário Acácio, no início da sua demência, das suas metáforas erráticas, antes ainda do tempo em que o mantiveram no serviço quando ele permanecia em estátua o dia inteiro, alucinado e de corpo dilacerado.

terça-feira, novembro 13, 2007

APÓS OS PIORES DIAS DE BRASA


Alguns anos atrás, em pleno Verão, os incêndios florestais atingiram a paisagem algarvia, o mato seco e muitas árvores de várias espécies, trepando pelos montes e iluminando as cidades do interior desta forma aterradora, apesar de fascinante. Em pleno dia, um disparo fotográfico produzia, em registos sobre papel e após a revelação, efeitos assim, que mais parecem um mero truque de breve encanto. Estas fotografias não foram feitas com máquina digital, mas parece que as diferenças entre sistemas técnicos não se afastava muito dos tons ardentes, alaranjados. Podemos considerar esta memória como sinal de um desastre raro. Mas hoje, com o despertar das sociedades para os fenómenos da alteração do clima terrestre e previsões credíveis, imagens assim obrigam-nos a olhar com mais respeito as catástrofes que começaram a abater-se sobre os continentes em datas recentes.














Alguns anos atrás, num verão de grandes incêndios florestais, o fogo atingiu largas áreas do Algarve e as fotografias que se obtinham em pleno dia ficavam registadas como se pode ver acima, acabando o mato, após esse desastre, de fornecer apenas este desolado aspecto de perda.




sábado, novembro 10, 2007

ANIMAIS AMIGOS E SERVOS DO HOMEM


farm
rocha de sousa, em férias sabáticas

sexta-feira, novembro 09, 2007

A BELEZA MEDONHA DO CORAÇÃO HUMANO (pausa)


«Já compraste a nova versão do MCARDIO/VISTA?» «Eu queria, nem parece arificial, mas o meu médico não alinha pelas novas tecnologias». «Muda de médico, este equipamento é inteiramente fiável e, em princípio, dura muita mais do que nós; há até quem faça transplantes com os MCARDIO/VISTA que sobram». «Isso já me parece excessivo, algo macabro». «Não te ponhas a pensar assim: estes equipamentos têm uma duração de cerca de 150 anos e podem ser aproveitados, com inteira segurança, nos doentes em falência cardíaca». «Mas não têm mesmo avarias?» «Claro que não, embora tenhamos que contar com os problemas adjacentes, a falibilidade dos orgãos naturais, pulmões, artérias e veias, rins, essas coisas». «E nesses casos, lá vamos nós de charola para a lista de espera». «Nada disso, isto compra-se em qualquer farmácia qualificada». «Não me referia a isso, mas à parte biológica a tramar esse material molecularmente indefinido». «Podes sempre optar, contra a superstição, pelos engenhos que incorporam partes biológicas de desgaste desprezível.» «Estou a ver». «Com certeza, sou teu amigo, não ía enganar-te com um problema tão delicado. Podes pensar mais algum tempo; mas espero que contes comigo, sou representando dos três modelos e faço-te um preço em conta, em prestações e sem entrada».
da revista CÁRDIO, diálogo obtido por um representante da Ciberiótica germânica. A gravura apresentada tem origem na reprodução por infografia.

quinta-feira, novembro 08, 2007

1987: PRIMEIROS ENSAIOS PARA PERSONAGENS ILUSTRADAS




fragmento de «A MORTE DAS AVES»

As apresentações feitas neste blog visam, como disse no início, conceder lugar a obras de minha autoria, quer no domínio das artes plásticas, quer no âmbito da fotografia e do cinema, quer ainda no espaço da criação literária. Esta prática pluridiscilinar, sem partir de qualquer ambição de sucesso, teve sobretudo, ao longo de toda a minha actividade enquanto docente, o propósito de abrir vias didácticas e pedagógicas nos processos metodológicos do ensino artístico. Pensar pluralmente os meios de criação naqueles domínios, agir através de um deles ou trabalhar em sistema interactivo naquela base, isso alarga o quadro de recepção de informações, de conhecimentos, permitindo agir por nós ou em regime de formação de alunos, na prática e na teoria, no sentido de gerar um número cada vez maior, e sobretudo mais apto, de operadores das artes plásticas, visuais e do design.
Não tendo condições logísticas nem de arquivo para subir a minha obra a montante, cronometrando as suas fases no presente e preparando resultados a jusante, o que se justificaria num Site devidamente apetrechado, entre solicitações várias, fiquei humanamente aqui, dedicado a recuperações de documentos e obras quase perdidas. Num Site, como sugeri, seria agora possível aceder à bibliografia publicada ou guardada sem grande nexo, bem como obras literárias e científicas, a par de um largo espólio pictórico e a uma recuperada presença de cinema de ensaio (filme e vídeo), junto da qual existem peças de carácter científico e pedagógico, tal como as unidades audiovisuais de leccionamento (Didáctica da Educação Visual) no campo específico da Universidade Aberta.
As imagens entretanto propostas são anteriores a muitas outras que já apareceram atrás, mas esses arcos de revisão são úteis a diversos níveis. No caso presente, estamos em presença de ensaios ou estudos para a série «As Personagens Ilustradas», obras que nunca foram expostas e que, num modo gestual, apontado, desde logo ensaiando as simbioses ou enlaces paradoxais, visão entre o sonho e os complexos quotidianos, desastres, tratamentos, reencontros, abraços de partidas e chegadas, toda uma contingência, enfim, destas personagens, a busca e o desespero. Alguns casos estão perto do sonho ou da metamorfose, como podemos rever a montante, mas as cenas, na generalidade, tendem a «ilustrar» temáticas reconhecíveis desde há muitos anos e principalmente na actualidade, tempo de grandezas respeitáveis e de degradações globais que um dia obrigarão (com ou sem apocalipse) à escolha de um projecto com novos objectivos na articulação adequada de bens estruturais de consumo, num outro uso do planeta e em função de equilíbrios civilizacionais enfim despojados dos desastres principais que hoje contêm paradoxalmente uma fúria genocida, a par do crescimento de brutalizantes desnecessiades.