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sábado, janeiro 17, 2009

EXERCÍCIO SOBRE OBSTRUÇÃO DO REAL

exercício de rocha de sousa

Agora até me ocorre misturar as vielas de Lisboa, e o lixo, e as paredes descascadas, com a visão em negativo daqueles quadros. Quadros, alucinações, todo esse surdo amontoado de ruínas e cenas diversas que vieram não sei bem donde. Gente escura, oleada, e as meninas leitosas, fora de época. Cabeças penduradas de janelas, entre flores. Como certas lendas de 1900, varandas coloniais e cemitérios de automóveis. Terra em volta, ferros e coisas de que se pode ainda falar com alguma propriedade, outras emergindo dos buracos da história e as mornas, um arrastar de pés descalços, os muceques. Umas vezes tudo parece tolerável, apesar do cheiro imaginado e da náusea, essa agonia que escorre dentro de nós ou molha a nossa pele num clima opaco. A argamassa intercalar, que separa cenas, que apodrece ilustrações, fizeram isso por ela, trataram-na como cartilagens e carne. Isso perturba-me, confesso. Procuro borboletas, aquelas que via na margem do rio Loge, no sentido de reinventar a beleza sobre o feio, saio de campo, penso numa certa rua de Ambriz, ou mais velha, em Lisboa, e consigo por vezes ficar preso num fogo de deslumbramento inquisidor, códigos e segerdos em cada porta, nas esquinas, nas sepulpturas dos militares entre paísagens ásperas, lugares como os morros de Nambuangongo. Eu sei, aquela pintura não anuncia nenhuma cartografia. A memória africana vem de outra latitude, desaba constantemente sobre muitos trechos de cada composição, entre cubatas, colunas de betão e toscas balaustradas de velhos senhores bem disfarçadas sob as grandes abas dos telhados, ciência benigna de perceber as intempéries. Pé direito muito alto, por outro lado, a parede amarela, até no primeiro andar entre janelas com portadas e ripas, pássaros em gaiolas brancas, fogo aqui e além, vozes antes do sono, nenhum bicho de porte aflitivo ali chega, sem perceber as chamas e as saltar por conta de tanto espaço. Nem mesmo os elefantes com insónias se aproximam das fazendas, deambulam pelas lagoas, nós estamos confinados aos charcos de lama onde deslizam, numa chiadeira, os machibombos da Carris, daqueles que costumavam atravessar-se na Estefânia, encurralando o trânsito, ali como em dezenas de praças da cidade. Autocarros, eléctricos, pardais à solta em Sete Rios e os carros das distribuições, a qualquer hora, entalados na rua do Sol ao Rato ou lá para os lados da Madalena. Acabaram com as docas podres do Poço do Bispo, os ferros, as areias, as barcaças oxidadas. Crescem casas. A multidão de um daqueles quadros guardados na Embaixada de Moçambique pode muito bem ser a malta dos concertos que ensurdecem meia cidade, árvores morrendo de pé, sobreiros decepados no Alentejo, nem jardins, nem Feira Popular. Tenho quase a certeza de que os ratos vão aparecer nesta Oran, cidade que também fora despida de árvores e já não albergava pombos. É a peste. Estes autarcas são duros de roer quando querem, na sua incompetência institucional, embelezar algum recanto de uma rotunda: acham logo palmeiras, africanizam calçadas em salpicos, contra o lado meridional da desaparecida cidade do pintor Botelho. Deixaram arder fragatas. Dizimaram milhares de jovens. Venderam mal as especiarias. Correram com os jesuítas e agora há por aí, entre arqueólogos e antropólogos, montes de santeiros alternando com fadistas.

Eventual trecho de um livro sobre o sentido da criação, Obra de Ninguém

3 comentários:

naturalissima disse...

Concentração brutal de emoções, vivências, experiências de vidas, de pessoas, guerras de guerras, amores de desamores, ilusões de desilusões, alegrias de tristezas, saudades de sentir falta das presenças ausentes, afastamentos doloridos, sofrimentos por tudo e por nada, numa obra única de ninguém para ninguém.

e estou aqui diante de um pedaço de si, sem dúvida de uma próxima obra de alguém (sua) para o mundo...

será que o mundo cego passará a vêr?

estou assim.
vejo?
sei que sinto!

jawaa disse...

Sobreviver é preciso.
Desta maneira bonita há poucos que o saibam fazer.

Não creio que possam ser cegos por muito tempo, Daniela.

Um abraço

Miguel Baganha disse...

Breve trecho ou brilhante exercício literário, repleto de palavras pintadas, João. Palavras que pintam de milhões de cores e com a destreza de um mestre, o retrato genuíno de um homem plural e notável no seu percurso vivencial, fazendo um magnífico contraste entre o passado e o presente.

Obrigado por este momento, meu bom amigo, é reconfortante lê-lo quando a saudade aperta.
Um abraço forte,

Miguel