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segunda-feira, janeiro 31, 2011

A PARTILHAR COM NOZOLINO UM VER DORIDO



fotografias de Paulo Nozolino

Tocado pela excelente entrevista de Clara Ferreira Alves ao fotógrafo português Paulo Nozolino, revendo alguns nocturnos de minha autoria, fiquei submetido a esta escrita da imagem fixa e sabendo, mais uma vez, que tudo isto se desmorona com a indiferença geral e as soluções recreativas proliferando um pouco por toda a parte, forma de abortar todos os renascimentos da lucidez e do gosto, banalizando às liturgias do consumo as grandes formas de pensar que marcaram o século XX. «Nozolino, como acentua Clara a propósito deste artista, é um dos mais inteligentes e lúcidos fotógrafos do mundo e do mundo que ele escolheu fotografar. Não é um lugar poético e terminal que nos é descrito numa linguagem de secura e beleza perigosas.»
CFA, contornando a brevidade de um almoço com Paulo Nozolino, preferiu falar com o artista na casa dele, «uma conversa no estúdio feita de cigarros e um copo de água. Paulo Nozolino é como a fotografia que faz. Não há desperdício nem erro. Não há indolências»
Tendo em conta o seu prestígio internacional e o extraordinário currículo de Nozolino, gerado em muitos lugares e partes do mundo, CFA indaga: Porque é que voltaste?
«Porque estamos condenados a padecer aqui.»
Porquê padecer? Isto é a tua casa.
«Não, isto é o lugar em que eu nasci. Calhou. Uma pessoa só se apercebe onde está por volta dos 15 anos. Antes, é a infância. Filho único, a falar sozinho, a brincar sozinho. Cromos, normal. Liceu Francês, Liceu Camões.
A bela e simples viagem ao longo da vida deste homem cujo olhar tem produzido excepcionais percepções do mundo, felizmente «aprisionadas» na fotografia, é-nos dada pelo texto exacto de CFA. Ali ficamos a saber que Nozolino, descendente de portugueses, tem italianos na sua genealogia, e houve também piratas genoveses que faziam tráfico de escravos para Cabo Verde O avô era de Cabo Verde. Era militar. Tenho sangue italiano, sangue negro, sangue judeu»
«Ouvia música. Dylan. Quando ouvi "Like a Rolling Stone" (tinha uns 10 anos) foi um choque brutal.» Nozolino fala da voz de Dylan, o som mono, um som fabuloso. Diz que ouviu aquilo sem saber como se chamava. Depois dessa primeira vez, só encontrou essa referência três anos depois. Era uma descoberta marcante. Em redor, naquele tempo, havia pouca informação sobre todas essas coisas, literatura, poesia, artes plásticas, cinema. Tudo tão pouco que não podia ser só isso.
«Política? Era tabu em casa. Só sabia que não queria estar na Mocidade. Tinha um grande amigo no liceu Camões, o único que parecia interessado nas coisas de que eu gostava.»
CFA: e a ameaça do serviço militar? A guerra de África?
«Apanhei um período de grande turbulência e mal-estar com a minha vida em Lisboa. Como é que se pode ver o "Easy Rider" no Império e vir para a rua e ver a Fonte Luminosa? Eu queria aquela estrada. Sair.» Paulo Nozolino confessa que começou a beber e decidiu estudar pintura, fazendo um curso rápido nas Belas Artes. Mas é então que escolhe a fotografia. Uma namorada fotografada com a primeira máquina. Um corte na relação dela. Acabou por perdê-la na Almirante Reis. Nunca mais a viu. Não estava tudo perdido. «Não se perder tudo, pode guardar-se alguma coisa do que se viveu. Não estava tudo perdido.»
Londres?
«Eu queria sair daqui. Quanto antes. O meu pai ajudou-me muito. No London College of Printing aprendia-se tudo, desde as artes gráficas à impressão. Apesar das ajudas, sobreviver fez de mim porteiro de noite, "sex shops», imensas coisas, andam por aí. Mas acho que sim, que foram os melhores anos.»
Partilha casa com Sic Vicious.
Paulo Nozolino numa experiência terminal. O grupo. Ambiente insalubre. Era um squat. Mudavam de um lado para o outro. Partiam objectos de casas abandonadas em King's Road, mesas e cadeiras, para alimentar a sua própria lareira. Paulo declara que nunca fotografou esse espaço inominável. A droga segurava as pontas. E a primeira máquina que teve, a sério, foi uma Nikon.
«Na escola aprendi coisas técnicas e nas galerias aprendi o resto. A fotografia americana encheu os olhos e a mente de muitos de nós. Mas pensei em coisas diferentes. E entretanto a fotografia imperava, os meios americanos também. Abundavam os estímulos e as contradições de gosto.»
Apesar da importante tradição inglesa, das modalidades praticadas pelos americanos, além do fotojornalismo, a verdade, reconhece Nozolino que nessa altura - «Eu não sabia o que queria fotografar. Nos primeiros cinco anos andei à deriva. Muitas horas de câmara escura. A realidade não existe, o que existe é o que fica no filme». (aqui devia haver um link para o Blow-Up). «Da nota à frase final, o mais importante é a edição. Não queria que ficassem coisas que já tinha visto. E queria coisas que fossem um bocado eu, ou mesmo muito eu».
CFA, a fotografia como espelho?
«Sempre achei que a fotografia é muito pessoal. Na escola era empurrado para coisas concretas. Jornalismo, moda, publicidade.» Era como uma recruta em que a mínima ordem se tem de cumprir. Mas quem se prepara como um soldado ganha alguma coisa com isso.
«O McCullin regressou sempre à guerra. Até poder. Agora fotografa paisagem. Fico arrepiado
quando penso nele e no seu carisma. Ainda me passou pela cabeça ir para o Vietnam».
CFA, Tens vivido em movimento, mas a fotografia tem, em ti, uma qualidade de quietação inquietante. Mas não pode haver silêncio. E como se recusa, entre as explosões que nos cercam, o movimento?
«Isso já tinha sido tão bem feito pelo Cartier-Bresson. O instante decisivo. Eu queria um anti-instante decisivo. O momento da contemplação. (...) O movimento que nos atira ao contrário do real, obriga-nos a desejar, até ao desespero, parar e contemplar. Compreendi que havia coisas que não podiam ser fotografadas em movimento». Ele diz: é preciso sentar no passeio, pousar as máquinas e ficar a olhar para a mesma coisa durante meia hora. A contemplação. A mobilidade de que me falam é outra coisa: é saber que isto está aqui e estará aqui para sempre.»

fotografia de Rocha de Sousa

Aqui, e antes de tudo, preciso pedir desculpa por assumir esta partilha, na semelhança e na diferença. Nozolino é um fotógrafo altamente reportado, experimentado, e que se deslocou por esse inquietante território a que se chama internacionalidade. Eu sou um professor universitário aposentado, crente no valor do esforço e da prática multidisciplinar. A pintura seca depressa e imobiliza-se, mas pode ficar com indícios de uma decisiva e descobridora mobilidade visual. Trata-se de uma arte absorvente e que o século XX desmultiplicou, recriou, dividiu em breves e grandes certezas. Mas isto não faz com que rejeitemos a coisa pressentida, um rosto que passa por nós à janela de um autocarro e sobre o qual logo ficamos cientes da sua perda para sempre. Há fotógrafos que são caçadores desse instante suspenso ou do que resta dele, desfocado. O mundo é muitas vezes impróprio para a contemplação, mas tornar contemplável um instantâneo daquele rosto são milagres da fotografia e do cinema. Por vezes, na fotografia, o rosto olha-nos, incisivo, e mal percebemos que ele ia em movimento. A mobilidade visual serve-se das artes do espaço e do tempo para conceptualizar o real, para lhe arrancar os ângulos secretos e as impossibilidades da percepção. Que fazia o fotógrafo, em «Blow-Up»? Movia-se silenciosamente como os caçadores que esperam enquadrar uma figura na mira ou os fotógrafos tornar eterno um instante, reabrir as formas avassaladoras e justamente pela edição. A provável descoberta do fotógrafo no filme de Antonioni tem a ver com a desmontagem do real para o contemplar, entre partes, o que nunca vemos com os olhos. O espelho é um breve engano. O cachimbo de Magritte é a declaração peremptória de que o real é impossível, ou melhor, é sempre mais, é sempre outra coisa, escapa-nos perante a obliquidade das distâncias.

fotografia de Rocha de Sousa

Oiçamos de novo Paulo Nozolino:
Tudo é perecível, a coisa e a imagem, a pessoa e o suporte. Não fases fotografia digital?
«Não existe. Justamente, existe a contemplação e haver uma prova de contactos, com 36 fotografias que contam uma história, eu andei aqui, dobrei esta esquina, almocei aqui, dormi aqui, isso fica.»

Controvérsia pode gerar linhas divergentes, paralelas, cruzadas, sobrepostas. Nesse caso, uma delas é invisível, deixa de existir. Mas a linha recta, precisa, ao longo do papel, pode ser uma figura contemplável ou a fortuita aparência de algo que esconde o próprio tempo. A menos que nos movamos para a esquerda e para a direita, encontrando todas as linhas anteriores. Esse tempo cinematográfico, gráfico também, não se gera por completo no olho nem na objectiva da câmara fotográfica: é um conhecimento, através da mobilidade visual, dos equívocos da percepção e da representação. A alma de uma fotografia (um retrato, por exemplo) ressuscita de memórias anteriores, pode revelar dinâmicas ou colocar-nos a olhar para o fundo dela. Foi assim que descobri o ser dos meus pais num retrato institucional de família. Desse quase impen
sável resgate resultou um livro: «Talvez Imagens e Gente de um Inquieto Acontecer» Essa também é uma forma de ultrapassar o perecível e alcançar no futuro um testemunho da verdade.

fotografia de Rocha de Sousa

Os restos de um registo centenário são, apesar de tudo, uma permanência. E a mudança de enquadramento de uma mesma coisa, torna-a outra, sendo esse um dos pontos base da mobilidade visual. A fotografia que vemos aqui já esteve na nossa retina de outro modo. E parecia diferente ou mesmo outra coisa. As nossas bases para esta relação com o real são um ponto essencial da nossa formação, do nosso saber e do nosso ser. Os pontos que assinalam olhares nossos por esse espaço fora são muitas coisas. Um gesto. O amor na memória. A casa onde vivemos é uma base indispensável à nossa estabilidade mental: viajamos até ao Oriente e, quando voltamos, a casa é como um ser vivo e comovente, sentamo-nos e (eventualmente) choramos. Nozolino conta a sua experiência em Berlim. «Há lugares no nosso trajecto pelas coisa que nos deixam feridos. A descoberta do Holocausto levou-me para trás. É então que se compreende o que significa essa coisa terrível de invadir, ocupar, matar pessoas, conquistar. Arrumar tais realidades, ultrapassar o horror que deixaram entre nós, essa é uma tarefa importante da literatura.» Com ela e o cinema, Tarkovski faz-nos ouvir os poemas do pai. É isso a vida. «A verdade é o modo como eu interpreto o mundo. Essa experiência é essencial, o nosso sofrimento, a vida». _______________________________________________

Este post decorre da entrevista assinalada acima, da acutilância de Clara Ferreira Alves e das próprias experiências do autor na pintura, literatura, cinema e acção docente. Só conheci Paulo Nosolino muito tarde, mas as nossas vidas, diferentes, foram contudo paralelas no tempo, no espaço, em certos padecimentos da alma, na espera, enfim, de não ser preciso desfechar um tiro na cabeça.

RSousa

quinta-feira, janeiro 06, 2011

LONGA TRAVESSIA ENTRE A MORTE E A VIDA

fotogramas de NOSTALGIA, de Tarkovsky
Estas duas imagens pertencem a dois instantes do longo e belíssimo travelling do filme NOSTALGIA, da Tarkovsky, num lugar vazio de banhos, lugar que o autor transfigura para uma sequência quase ritual ou litúrgica, a prece por alguém, a promessa de alguém, terrível travessia sobre pedras, restos de água, detritos de lata, na condição processional que é, só por si, e também, figuração do sacrifício e da esperança que a chama de uma vela transportada pelo personagem se mantenha contra a brisa do tempo indefinido. Duas vezes a chama se apaga, três
vezes o penitente recomeça. Ele ainda nos explica, com os edos, que à terceira é de vez, superstição das pessoas, propiciação da esperança e da perpetuidade do fogo em partilha com a água.
Num silêncio nem absoluto nem puro, o homem mostra-se o grande inventor de todos os ritos e todos os mitos, com os quais procura exprimir-se para melhor se conhecer. A grandeza desta cena de Tarkovsky é, só por si, um filme completo, talvez a história de um Sísifo triunfador, exactamente quando conseque atravessar todo o espaço inominável, sempre com a chama acesa, numa delicadeza difícil de sustentar, e cujo sentido ontológico nos vem declarar a permanência dos elementos vitais, o fogo e a água.
É porventura trágico viver-se numa época em que o objectivo deste inabalável discurso da travessia entre a morte e a vida, um renascer construído com tal metáfora, não voltará a ter equivalente no cinema de amanhã, aquele que se aproxima, tecnológico e autista, lúdico e impensável, como uma grande onda capaz de engolir cidades inteiras, sem direito a restos, algo que talvez aponte um futuro onde a beleza ensurdecedora das obras de Tarkobsky não passrá de património arqueológico, devoradoramente investigado por alguns sábios cujo interesse reside, com efeito, em demonstrar que o homem do século XX já era um ser pensante, para o qual a filosofia vogava nas palavras e nas imagens, apenas tornando visível a profundidade confusa de todos os genocídios. Os cientistas que procuram o passado e as suas grandezas, talvez antecipações do futuro, índicações da morte irrevogável, saberão concluir que nunca mais haverá as Grécias de um tempo restrito, o silêncio significante de NOSTALGIA, porque se terão fechado as fábricas onde o pão se fazia contra o silêncio, à superfície e no abandono. A verdadeira performance do homem não está em Deus, está, como Tarkovsky nos mostra, nele mesmo, pela Arte. Toda a transparência do ser está na singeleza ímpar deste rito, feito para lá do vazio, sempre através da água e do fogo, que muito poucos meditarão com esta exacta grandeza, daqui a cem anos, já sem arte nem sonhos, apenas de frente para a orgia espectacular, no crepúsculo da imagem do fogo bruxeleante e no pântano onde a água desaparece. Será um tempo em que, inexplicavelmente, cada vez mais, milhares de pássaros caiem do céu, sem razão nem ruído.

foto de Rocha de Sousa