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segunda-feira, agosto 29, 2011

NEM LONGE NEM PERTO, A ALMA DA GENTE


composição foto e colagem de Rocha de Sousa
Lusofonia, quer queiram quer não:
ela vem de longe e revê-se nos corpos de hoje


Li hoje, deslumbrado, um dos mais belos documentos sobre Portugal e o Brasil, sobre os desvios da História e as mitologias ou sarcasmos inúteis que tantos teceram acerca de viagens e gentes, face a face na distância dos continentes e dos sonhos ganhos ou perdidos. É um texto de Miguel Sousa Tavares, no Expresso, uma lição testemunhal perante os erros, equívocos, vários ritos antigos e modernos, a par de muitos esmagamentos da verdade intrínseca da história lusófona.

«...as relações Portugal-Brasil, nos últimos 150 anos, são um interminável jogo de ioiô, em que, quando um está em cima, e vice-versa, com ciclos de emigração, económica ou política, cruzados ao sabor da situação interna de cada um de nós. Dir-se-ia então que o desdém e a fútil superioridade com que aqui recebemos esses brasileiros que vieram ocupar os trabalhos que os portugueses já não queriam foi uma espécie de ajuste de contas tardio na forma como os brasileiros receberam os portugueses que para lá foram em massa desde o último quartel do século XIX até às primeiras décadas do século XX. Injustiça paga com injustiça: nós ficamos agora a dever aos brasileiros grande parte da construção das auto-estradas, hospitais, Expos, com que, imbecilmente, imaginamos ter conquistado para sempre a modernidade e o progresso; e, antes, eles ficaram a dever os ciclos do café e da borracha da Amazónia, o que não teria sido possível, por ausência de mão de obra, sem a impressionante emigração portuguesa que teve, como contrapartida, a ruína do interior de Portugal.» Miguel Sousa Tavares trata bem a história do padeiro, personagem que invadiu por completo o imaginário do brasileiro: emigrantes que desenvolveram a indústria da panificação e geriam as respectivas lojas e sobre os quais os brasileiros idealizavam seres de pé descalço, trepando pela riqueza acima e explorando o povo em épocas de crise. A ideia da perfeição do Brasil e de tanta mistura devem colidir com a realidade histórica e ontológica do mundo e dos seres: em boa verdade, a perfeição é impensável e o que importa é sabermos qual a nossa relação com os lugares a que pertencemos. Miguel considera-se inteiramente do Brasil e de Portugal, o que é uma boa medida para a sensatez que nos vai faltando. Ele diz-se muito irritado com «as críticas mútuas e redutoras com que tantos portugueses e brasileiros se entretêm, como se com tanta mistura de sangue e de sémen, tanta aventura e tanta desgraça em que andámos envolvidos, uns com os outros, os vícios e fraquezas de cada um nunca tivessem passado ao outro.» Não terão os brasileiros sido também portugueses e os portugueses também brasileiros, pelo menos até 1882?
Diz Miguel Sousa Tavares:«1808», de Laurentino Gomes, sobre a chegada da corte de D. João VI ao Brasil: um panfleto doentiamente antiportuguês, sem preocupação de enquadrar a história no seu contexto e onde só interessa o lado negro da aventura joanina. Parece, segundo o autor, que, com a estada da corte portuguesa, os "brasileiros" descobriram, estupefactos, a porcaria urbana, a corrupção, o compadrio e o desgoverno (tudo coisas que, como se sabe, foram extintas em todo o Brasil há muito). Ora todos sabemos que D. João VI era um atrasado mental e que D. Carlota Joaquina era uma ninfomaníaca sevilhana permanentemente ocupada em conspirar contra o próprio rei ou marido.» Havia disso em todas as cortes europeias, fruto, também de problemas de consanguinidade e pelas regras arbitrárias dos próprios sistemas monárquicos da época.
«D João VI foi bem melhor soberano no brasil do que foi em Portugal. Reformou a cidade do Rio de alto a baixo, abriu os portos brasileiros ao comércio internacional e instalou um verdadeiro Estado que levou daqui por inteiro onde antes apenas havia capitanias e mandantes locais. O seu grande erro foi não ter tido a visão de perceber que a capital do Império devia estar no Brasil e não em Portugal.

sexta-feira, agosto 26, 2011

EVENTUAL PARTÍCULA DO INVISÍVEL E DA MORTE



Imagens ao espelho, corpos, estou a olhar
um cadáver de cada vez, nus, frios e hirtos.
como vítimas estranhas jazendo no espaço frio da morgue
ou na cortante madrugada, sacudida de ventos finas areias.

Os espelhos multiplicam-se, os corpos também.

Todos eles, primeiro, foram expulsos do mar
pela maior vaga alguma vez vista naqueles dias.
Todos eles, depois, vomitam peixes,
morrendo sem forças, ao procurarem expulsar da boca
grandes porções de areia em papa e pequenas conchas prateadas.

Apesar de tudo, e da reanimação imaginária como possível,
estavam mortos os homens, como os peixes,
bocas abertas, areia até aos dentes;
os olhos fixos, os corpos já inchados,
entretanto patéticos, inúteis, sombrios, inquietantes.

Ninguém se arredou da tarefa dura de cavar aquelas bocas.
Ninguém se apercebeu das coisas vindas nas colheradas enviesadas.


Cobertos por mantas até ao queixo, aqueles homens,
permaneciam ocultados dos filhos, mal de ver,
e os próprios filhos talvez nem imaginassem os pais ali,
apenas feitos de bocas entaipadas por areia húmida.
Alguns filhos eram rapazes de estudos,
já só percebiam dias de férias, a baba de cada pai, o prato da açorda.

Olhavam, apesar disso, numa curiosidade mórbida mas de fascinação,
as bocas abertas e erguidas, quase tapadas de areia,
quase fingindo um grito em vias de soltar-se do fundo
e na hora terrível em que tudo estivesse limpo.

Mas quando as mulheres, já perto da garganta,
deixaram de esgaravatar tão malvada areia
e entornaram água para dentro das bocas rígidas,
os moços, ansiosos, quiseram levar aquela matéria, a baba das ondas,
além desses pequenos e subtis grãos das praias,
os quais isolavam em descoberta debaixo de uma grossa lente
e logo os perdiam de vista ao adestrado dos gestos.


A sua esperança residia no facto de haver ali, entre fios de algas
e os restos da massa, ligando areia e sufocação,
como breves sinais, porventura sempre a escapar-se,
sinais cuja natureza entretanto, e afinal, mantinha invisíveis
outras coisa que não fossem porventura, e apenas, partículas da morte.

fotografias de Rocha de Sousa com a participação encenada de Miguel Baganha

quinta-feira, agosto 18, 2011

PELA ESPUMA DOS DIAS OU O BANHO A BRINCAR


Sem vontade de nada, para nada, nado na banheira cheia.
Braços estendidos ao lado do corpo,
ondulando para cima e para baixo,
ora devagar, ora mais depressa,
flocos de espuma com a lógica da sua leveza
a descer, lentas, como pedaços de nuvens rendadas,

Agora formou-se tanta espuma
que o teu corpo até pode esconder-se:
aí ficas por instantes, a respiração suspensa e os olhos fechados
contra o ardor desse mundo de brincar,
dedos depois em voltas de ajuda.

A água e o sabão escorrem pelo corpo já torto,
respira e abre os olhos,
ao contrário escorres tu antes de poderes ver,
antes de poderes abrir a boca, Antes de soletrares o real
limpo da espuma dos prazeres breves, Vidros, mármores e cromados.
Um espelho cheio de bruma, sem ti, coberto de espuma e perfume.
E rios árcticos como rachas estampadas no Universo.

Enfim, desta vez és tu quem quer sair da submersão,
agarrar o cromado e a torneira em falta,
procurar a âncora pendurada já sem argola nem sinal.
Sem nenhum prumo auxiliar no escuro da espuma,
nem espelho em volta na volta da moldura solta.
E um pé desliza para longe, o outro também,
a cabeça a cravar-se na pedra e no metal atrás,
onde se aquece a vida e a chuva
quando nos molha de acordares.
Ficas imerso e acompanhado desse ruído borbulhante
no súbito silêncio da tua boca.

Olhas para mim, emergindo, mas já não olhas de verdade
e a tua boca começa a encher-se de espuma
como se estivesses a engolir nuvens.

terça-feira, agosto 16, 2011

NEM SONHO NEM BRISA, O ACORDAR DA IMAGEM












***************
Nem sonhos nem o efeito da brisa sob os véus da janela suposta entre as pálpebras ainda inchadas. Imagens sim, podemos falar delas, imagens que se libertam, a todo o custo, da realidade à qual porventura estão ligadas. Fotografias? Também, porque não? Os cisnes passam perto delas, numa semelhança de diferenças, mas as penas ou são ilusórias ou se perderam entre ancoragens, amarrações ou no desfazer dos laços. A fotografia finge tanto como a pintura, chega a fingir que é sombra a sombra que afinal a habita desde há muito. Seria, possível, no desfazer desse fingimento, iluminar de forma lenta cada parte destas ondulações, fios, tecidos, ou penas desfocadas, tornando cada vez mais claro o acordar destas imagens? Talvez como se nos fosse dado o talento de recriar o visível, bolhas de pano molhado emergindo da escuridão, o mistério do invisível abrindo-se num jogo matinal de aparecimentos. Apesar das concavidades ainda insondáveis e das aparências obscuras que tenderem a permanecer ali até ao rodar do dia, horas perdidas da tradução em escrita das previsibilidades de cada brilho, de cada bordado dentro ou atrás dos fios, estampagem, inércia dos artifícios ornamentais. Lembro-me de ter chegado aqui, um dia pela manhã, deslumbrando-me com a suave claridade que começava a aparecer nas janelas, atrás da respiração lenta e calada dos painéis finos, transparentes, que sempre velavam a objectividade excessiva das coisa aparecendo na grelha de madeira pintada de branco, branco mas na delicada cinza dos panos tradicionais que nos protegiam do ardor da luz os olhos transitando, a espreitar de lado. Mas agora não sei se vou voltar a este amado lugar, curvas do tempo e do visível meio desfeito, casa revisitada, amada, onde os portas diziam os seus versos do fundo das estantes e muitos testemunhos da antiguidade cobravam o seu lugar arqueológico nos intervalos das palavras. Candeias árabes, moedas rústicas das nossas primeiras dinastias, o ouro belíssimo que D. Fernando mandara cunhar, o estudo comparado das religiões e das almas, almas a cores, como as torturadas aparições em «Julieta dos Espíritos», de Fellini, ou as mutações malabaristas dos fantasmas fabricados pelos espiritas brasileiros, em nome da ciência, rostos na sombra, desfocagens de meninas vestidas de branco, um sopro do Além agitando a vela solitária, na quase noite carregada de murmúrios. Aqui, os espíritos, são os esplendorosos rostos dos meus avôs paternos, beleza da feição antiga, marcas de fungos num canto inferior. Mas talvez me concedam a força voltar aqui no próximo ano, abrir estas janelas, passar os cortinados sedosos pelas mãos crispadas de frio, oh, isso não sei. A porta bate, com o vento. De súbito, pousando na calçada, um pequeno pássaro confunde o frio com o medo. Imobiliza-se para se fingir morto.



fotografias de Rocha de Sousa

quinta-feira, agosto 04, 2011

NASCER PARA CRESCER, CRESCER E MORRER

Ninguém sabe quando nasce, nem porquê nem para quê. Conscientes de tanta coisa em volta, a fecundação, os fetos sangrentos, os meninos já toldados da melancolia e da dúvida esperam, no canal gelatinoso da vida, o momento da chegada. Antes a penetração, perto do acaso, num certo ovário, de uma certa mulher, de uma certa família. Trazendo consigo um karma de vida e saudade, na certeza da morte, branco de estímulos, excepto a força ardente do oxigénio nos pulmões e o modo como o tocam, tão diferente da sua aconchegada placenta.
Após algum tempo de maternidade e de urgência das tetas, lavado e vestido, o menino cresce. E é nessa altura, como se disse atrás, que os sentidos se perturbam, se interrogam, diante de coisas sem nome, embora as pudesse pisar e sujar nelas as pequenas mãos do emergir da idade da razão.


Sentado num ponto alto, já homenzinho como ouvia dizer as vizinhas, o Carnaval apanhou-o a descer sobre o universo da família, uma grande cara junto de si. O menino não era mais do que um balãozinho pousado na cabeça do seu irmão, um homem já grande, esse sim, capaz de o levar às cavalitas e de se embrenhar, entre as estrelas do céu, nos ombros e cabeça do outro, o anterior, o irmão. Verdadeiramente, ninguém se conhece nessa altura, começa-se a brincar, a ver e aprender coisas dos adultos. E então o menino pensava: não posso andar sempre neste homem-cavalinho. Andarei pela mão. Andarei pelos lagos do jardim. E ele afastar-se-á um pouco, anos depois. O menino foi um dia à Escola: era no número 33. Valeu-lhe a sorte, porque quando chegou à idade da tropa, ganhou o nome numérico de 333, a conta que Deus fez, e começo de estudos mais difíceis. Tinha acabado o estudos de Belas Artes quando, no quartel onde se encontrava, o convocaram para a guerra que deflagrara em Angola. Era uma guerra de que ele não sabia nada, porque, enquanto menino, menino mesmo, levara a ouvir relatos da Grande Guerra, e viu cinema, e leu revistas, e começou a pressentir que lhe havia de calhar um calhau daqueles. Lá foi para Angola, em 61, num navio aparelhado para transportar três mil homens. Ele estava melhor servido, na zona habitável e não nos porões ataviados com altas e triplas camas de madeira.
E aqui em baixo, por volta dos 20 anos, cá está o menino depois da metamorfose, fotografado solitariamente no Colonato do Vale do Loge. Ainda faltava tempo, mas, fosse qual fosse a indignidade daquela guerra dita colonial, houve longas aprendizagens, o corpo cheio de vitalidade, grandes «tempestades» de medo em lenta guerrilha e longos minutos de pacificação, assim, exactamente como o menino homem se olha e parece dizer: ainda aqui estou.

auto-retrato

Voltou noutro barco, tendo beneficiado de uma rendição individual por estar nomeado para o liceu D. João de Castro. O barco parecia ser todo para ele. À noite, num dos decks, via filmes e sonhava com a família. Contra tudo o que decorria aqui e além, foi ali que ele viu pela primeira vez um filme fascinante, «A Sede do Mal», de Orson Welles. Nunca mais se desligou das artes visuais e da escrita, que é feita de letras e palavras e frases, pintando também o mundo, visualizando a guerra de há pouco e os jardins em volta de lagos, num país longínquo.