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quarta-feira, junho 11, 2014

OBRA DE NINGUÉM pensar o ver


questões de conceito| 1

         Então ele disse: «as artes não servem para ornamentar o mundo, mesmo quando alguém as orienta nesse sentido. Não parecem ter esse fim, sem nada que desvende o seu eventual enigma, entre suportes técnicos e culturais. Mas já ninguém duvida de que elas sejam o rosto sensível da própria civilização.»
Os alunos, compactos e impacientes, julgaram que estas palavras seriam, provavelmente, o termo da lição: porque eles conheciam razoavelmente as tonalidades retóricas do professor e a maneira como teatralizava, em síntese, o fim das suas lições. Mas o docente mudou de agulha e prosseguiu:
— Se hoje nos encontramos aqui, na circunstância de trabalho que dispensa a pompa e os paramentos, é porque o pensamento plástico apontou de vez para a autonomia das nossas escolhas neste âmbito. Podemos agora falar delas sem qualquer obrigação ritual que nos torne reféns de todas as antigas cerimónias do aprender inicial, entre  cabeças  gregas, de gesso, e humildes   placas  de  cartão  sobre 
as quais tudo tinha de ser resolvido com preto, branco e ocre, porventura  superando o disfarçado valor da pele. Com efeito, o nosso labor já consistiu em obedecer a um longo processo de manipular pequenas misturas de tintas, esbatendo-as no cinza do suporte, testando assim uma habilidade artesanal, milagrosa, como a desses actos monásticos dos iluministas cuja meticulosa vocação se tornaria afinal insustentável, entretanto desaconselhada pelas ciências da arte.
      Os frades, castrados e frios desde meninos, aprendiam a fazer fazendo, pouco mais, ignorando a verdadeira noção de projecto e a própria ideologia que informava e formava todas as nossas urgências. Contudo, e ao contrário do que muitos ainda pensam, não foram os artesãos os culpados da posterior teoria, nem são os elefantes brancos da vanguarda a empurrarem os artistas para a exclusão, quebrando preciosidades em volta, indiscutíveis, como as antigas porcelanas da longínqua dinastia  Ming, na velha China, ou  as peças de Limoges,  na França, bem mais recentes. O saber teórico, aliado ao campo instrumental da praxis, tem o mérito de fundamentar descobertas, sem negar instintos e intuições, em sucessivos espaços da criação consistente. Espera-se desse encontro o achamento de uma forma de  facto inovadora, capaz de ajudar, tanto virtual como presencialmente, o avanço da grande arquitectura do ser. Poderemos então falar, com mais justeza, da rede que multiplica o sentido universal de todas as disciplinas cujo elenco de conteúdos abrirá novas conexões à própria razão. Poderemos também referir o papel da razão e da emoção nos decisivos alinhamentos da consciência. Todo o saber ontológico passa por aí.
      As Escolas de Arte, desde as últimas décadas do século anterior, foram sobretudo aliciadas pela invenção e desenvolvimento das chamadas tecnologias de ponta, máquinas que pareciam anunciar um distante mundo do futuro, aparelhos e próteses cujas funções permitiam, com efeito, abrir múltiplos espaços à criatividade. As teses que desbravaram tais domínios, estudando as virtudes tradicionais da pintura, por exemplo, em jeito de simbiose com os modernos instrumentos, transferiram para as velhas oficinas dos velhos mestres vários patamares apropriados aos novos modos de formar. Em bom dizer, no entanto, esses entrosamentos de tecnologias híbridas, e outras, não passaram, durante muito tempo, de meras somas de crescimento. O desenvolvimento das aptidões humanas, ou da sociedade na sua amplitude maior, realiza-se noutro comprimento de onda (digamos) e apesar das interferências. Terá de ser sempre enquadrado numa perspectiva filosófica, no âmbito de um espírito produtivo e vocacionado para a descoberta de sucessivas verdades.  No século XX, por exemplo, o advento da fotografia alterou a problemática da relação entre diferentes tipos de imagens e novas funcionalidades. Mas a máquina fotográfica, sofisticando-se a breve prazo, estava sujeita, a despeito dos usos, ao mundo das somas e das «regras» de mercado. Perante as apontadas tecnologias tradicionais da representação, a fotografia conquistou rapidamente território —  por dispor, com menos esforço e outra agilidade de processos inconfundíveis ao registar, num apreciável rigor, pessoas ou objectos. Para lá dos seus aspectos lúdicos (ou seduções de consumo), a câmara fotográfica, entre muitos outros meios de maior complexidade, veio contribuir, com efeito, para clarificar a mobilidade das percepções,     o próprio alargamento da consciência numa certa concepção               do saber superior do homem. É esta, porventura, a perspectiva que importa à criação artística. Seja como for, o encontro dos nossos talentos com a diversidade dos meios instrumentais, embora já anuncie uma frutuosa viagem em direcção ao futuro, dificilmente pode suportar  a  demora  das  esperas  por  cada  especialização.                                                                                                                                                                        
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E a   massificação das  ofertas, desbaratando o gosto, o apelo das ideias sobre o mundo, a própria ficção do amanhã. Esta crise cada vez mais descontrolada tornou redutor o projecto, misturou fugas em frente ocorridas pelo medo encoberto dos  limites  e  da  morte. Um  sonho de utopia, na linha  da cibernética em que o tempo dos replicantes já se encontra  programado, como acontece na trágica beleza do filme «Blade Runner». Essa obra alerta-nos para  um antigo temor: cada replicante do modelo mais avançado, quase clone do homem, seu inventor, carregando capacidades em certo sentido bem mais concertantes do que as humanas, está destinado, talvez como segurança contra o florescer de afectos ou dotes individuais, a uma vida de apenas quatro anos, lembrando as borboletas que sobrevivem quatro horas. Metáfora aterradora, sem dúvida, pela qual nem se vislumbram significativas melhorias bio-tecnológicas capazes de dilatar o destino do homem contra a absurda proximidade da morte.
O Professor olhou em volta, com as mãos metidas nos bolsos do casaco. Folheou depois uns papéis que estavam sobre a secretária e retomou a redundância do seu discurso – conceitos ou propostas meio desfocados pelo denso véu das palavras.
         —Quando estivemos rendidos à gestualidade liberta — ponderou o docente  —  e nos sentimos cercados por um deserto minimalista, portanto sem título, houve quem começasse a sentir medo pela dissolução do verdadeiro processo do ver. E enquanto o mundo se tornava globalmente pantanoso para muita gente, cidades inteiras submersas no fumo, outros protagonistas pareciam presos à nostalgia de certas imagens, murmurando coisas breves acerca das que haviam conservado desde a infância. Pensavam num mundo poético de figuras até há pouco impensáveis, talvez na deriva cinzenta do sonho, singular estado de alma através do qual julgavam pressentir uma estranha necessidade do realismo, talvez próximo daquele realismo  novo  aprendido com o caos e os desertos sem marcas.
Ouviram-se tosses. O Professor esperou. Voltou aos papéis, pousados sobre a secretária, parecendo não saber o que fazer com eles:
—No fundo, apesar das incandescências que nos irritam ou  apaixonam, a verdade é que não sabemos como trabalhar essa necessidade, a do realismo, ou do realismo reinventado numa dimensão nova, talvez o próprio hiperrealismo, eventualmente a experimentação recuperadora do anacronismo. Dorfles queria que a arte tivesse acabado na mais decisiva das abstracções, para ele não havia qualquer retorno a partir desse ponto de chegada. Enganou-se redondamente na espuma das marés, afinal cercado pelo novo expressionismo, por exemplo, ou de olhos olhando ao alto os retratos de Chuck Close, rostos comuns representados em suportes de vários metros na perpendicular. Ainda mal se experimentara essa espécie de desumanidade própria das máquinas, longe da pintura digital, robótica, um caminho que viria promover a partilha entre o homem e a funcionalidade da lógica informática. E o que aconteceu  depois do veredicto de Dorfles  nada  teve  a  ver com a insustentável descoberta

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do absoluto, entre linguagens que, em última instância, não aspiram à sagração mítica nem ao aprisionamento pelo dogma: trata-se apenas de continuar, entre todos os horizontes, a marcha do homem. Sabemos que isso comporta muitos paradoxos e belas invenções do sonho, resgatando do fundo desse espaço velhos painéis e a secreta geometria da arte de compor. Embora ninguém tivesse advogado verdadeiramente, no limite da nossa pequenez, a avaliação entre o pincel e o computador, apesar de murmúrios que pareciam vaticinar arranjos futuros muito mais consequentes do que a interacção da fotografia com a pintura. Também somos tomados, no curto prazo,  pela intuição sobre os processos que transformam as  coisas  em volta, assombro  do primeiro   homem   na   Lua,  fruto de  ciências    e    tecnologias   de   ponta,    alucinaç     que parecia introduzir alterações profundas no mundo. O artista de hoje é uma espécie de operador generalista ou especializado no seu mister, ombro a ombro com parceiros de áreas afins, e não um mero produtor de artefactos secundários. O que ele realiza, com arquitectos, designers, engenheiros, além de mais e mais operadores, são indubitavelmente objectos de civilização. Sobra um problema bem complexo: como gerir essa civilização



 O que o Professor vê, junto da janela, com o rio por perto,  lembra a anunciação da verdade, entre sonhos ébrios e festins de gente ensandecida, ornamentada com esplendor, talvez a grande tela das pulsações rítmicas e do desejo. É um cenário em ruínas, cercado de casas de adobe, movimentos larvares de homens nus, alguns procurando trepar os degraus do palco, num ginga-ginga absurdo e viral, a sugerir histórias escabrosas, lendas ou visões ao jeito de Georg Grosz. E por isso, na dor, é de presumir que se esteja simultaneamente diante do espectáculo da linguagem, na sua belíssima esquizofrenia, própria da transição do século, ou         num adivinhado Apocalipse de chamas que devoram tudo à sua passagem. É estranho poder desvendar-se, por cada monte de cinzas, um espaço de ópera diferente das outras óperas de outro tempo. Talvez o quadro queira ser o espectáculo de um realismo contraditório, mostrando irreparáveis fomes à beira dos pântanos, lamas e répteis, actores carregados de plumas luxuosas, a miséria afinal obesa e caricatural. É gente indecifrável, alcandorada, lenta, como plantas tropicais em varandins suspensos de um palácio imaginário, surreal naquele limite do mundo.



         Outros varandins enchem-se também de velhos olhando acasos à sua volta, eles mesmos improváveis mas sujos de uma espécie de argila ou leite derramado, anciãos cujos olhos húmidos, ainda carregados de nostalgias, acabam por tornar algumas mulheres  por ali  sentadas  em notáveis figurantes.  Outras, soltas, lavam de forma ostensiva as suas carnes cor de chocolate, grandes seios, bolsas flutuantes na água apanhada da chuva tropical, entretanto barrenta, lenta, cheirando a terra — ou a mortos e a flores ocasionais.
        Há grupos insinuados, por outro lado, elevando ao alto os cânticos espirituais de antigas negritudes, em volta outra gente marcada pela magreza ou mutilações a lembrar Brueghel. Tudo sonho ou realidade antiga. Tudo em espaços com parapeitos mal aparelhados. Tudo como lugares entretanto vividos por mulheres afeitas ao duríssimo trato de crianças rangendo, surpreendentes surpreendidas. Meninas sem nome mas gentis na sua beleza lavada. Festa nobre da pintura. Mistura de tempos, lugares e personagens. Roupas e cerimónias,  a lembrar a libertação da terra ou as recentes catástrofes naturais, não longe dos dias em que os mortos descem à superfície do rio e por vezes acabam perdidos, às moscas, nas margens baixas. A festa ou o paradoxo da vida. A presença estranha de uma ópera sem data, talvez a lembrar Manaus, híbrida, com figurantes a exprimir outras gentes, outras terras, lugares arrancados à selva. Paragens, enfim, capazes de receber emigrantes de povos exóticos, rostos do mundo longe.
O professor senta-se, ofuscado com tais exercícios, entre meios, referências e belíssimas contradições. Ainda não lhe ocorreu nada sobre o que procura. Os tempos e o espaço dos espaços não parecem fazer sentido.
           A miséria surge aqui e ali no interior florestas colossais,   num rumor de bichos e febres. Pode imaginar-se que essa gente,     a mais magra, a mais desidratada, enchendo a boca de fuba uma vez por dia, esteja no limite da vida, aguardando a morte, silenciosa e sem caprichos. Acaba a luz mas o povo não sabe nada da luz, nem da morte, porque só lhe falam disso como direito ao mistério, consolação na forma de flores atiradas sobre as urnas. É um  confuso destino que começa, em todo o caso, na viagem obscena da
             maternidade e do início da vida.
         O professor pensa no limite, a Oriente e a Ocidente, para sul, pensa nos grandes continentes carregados endemicamente de pestes. Mas ninguém trata de ninguém, os genocídios misturam-se com as festinhas de senzala, latas que batem, rebatem, quase apagando a lassidão das vozes na maior das escuridões, choros e murmúrios nas horas diversamente terminais.
        








Breves excertos, de capítulos diferentes, do livro do autor do blogue,
intitulado
             OBRA DE NINGUÉM
              pensar o ver