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sábado, dezembro 27, 2008

AS ÁRVORES MORREM DE PÉ, AS PEDRAS NÃO

É voz corrente dizer-se que «as árvores morrem de pé». Em correspondência com esta sábia sentença popular, Maria Matos, ao que supoho ter sido o seu último espectáculo no teatro D. Maria, terminava a sua actuação na peça que fora intitulada com aquele título, olhando, muito direita, a quem devia olhar e, tendo bem assente a sua begala, a mão tremente. E dizia: «As árvores morrem de pé!»
Assim acontece com este eucalipto, cuja inclinação é aparaente pelo uso do plano contra-picado: viveu, com a sua habitual soberania, perto da margem de um rio. Os homens exploram este monumento vegetal, peimeiro mais pela ornamentalidade das separações territoriais, depois sem qualquer amor pela sua natureza algo arrebatadora: foi, até agora, o uso do eucaliptal, de crescimento rápido, poderoso de massa explorável, perverso quanto à sua insaciável sede em apreciávis extensões de terra à sua volta. Quandoa sua presença se inutiliza e a sua carne tende a ser cobiçada pelo mercado, as serras mecânicas vêm cortar, um pouco acima do solo, a peça cujo talhe terá as aplicações entretanto suscitadas.
Ao contrário, na imensa Amazónia, lícitos ocupantes da terra dedicam-se ao corte em vida de muitas árvores de grande porte, devastando por dia superfícies equivalente e quatro campos de futrbel. O cheiro da madeira sangrando é inebriante. Após o corte, um pequeno gesto da mão precipita a queda da árvore. Essas grandes plantas, sempre dignas na sua função revitalizadora do clima, tombam com enorme fragor, flagelamdo os ramos inteiros das suas congéneres em volta. São árvores que também se abatem, e ainda vivas, porque os seus assassinos, saindo de uma clandestinidade mórbida, assim delapidam patrimónios indispensáveis à vida na Terra, triturando cada pedaço de vazio para eventuais cultivos igualmente perversos.

Ao contrário, as pedras significadas pela modelação humana, vivas equanto coordenadas com outras nas grandes fachadas de palácios e mansões diversas, são menos poupadas pela fúria das batalhas (e até dos elementos naturais), ofercendo-se, na racionalidade das suas espirais, molduras ou capitéis coríntios, ao abandono no espaço, espalhando-se pelo terreno em redor, como se tivessem decidido engtre si um suicídio carregado de légica, de paisagem, de seculares esperas som um mínimo sopro de descfomdorto. As imagens uscitam algum entendimento desse percurso, dessa morte sem verdadeiro reaproveitamento, seres vindos do além, que contrastam com as plantas verdes caprichando em crescer à sua volta, por vezes enconrindo bocados de curvas, animais escultóricos, patas de leão lascadas sem remissão a altura do tornozelo. Um dia, depois de tempos, as pedras modeladas ainda poderão encontrar-se no mesmo sítio, cremadas por um al brasardor.
As árvores morrem de pé mas são abatidas pelo homem para ficarem à sua disposição, mesmo num mundo futuro e cinzento, quase sem vida, rodando no espaço segundo especiais diretrizes do acaso cóamico. Não gaverá então madeiras capazes de servirem para muletas, nem metais, nem oficinas apropriadas. As facas, pequenas ou grandes terão de ser de novo usadas pelas mãos humanas, rodadas, encravadas, apertadas por longos fios de pele de animal.
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fotos de Rocha de Sousa

domingo, dezembro 21, 2008

ANALOGIA, CONOTAÇÃO, IMAGEM, SENTIDO


Se a imagem visual pode sugerir uma simples transferência analógica da realidade para um suporte compatível, as imagens de um texto, são, por inerência dos sinais e do meio, compostos codificados, realidades dinâmicas e moventes, impulsos de conotação, espaços de decifração. A verdade é que estas últimas imagens, pela escrita que as forma, pelo enquadramento que as conclui, podem tornar-se mais difíceis de descodificar do que a sua correspondência na fotografia. As palavras e as imagens referidas a um mesmo modelo por dois observadores são sempre diferentes da mesma experiência assumida por cada um deles. A realidade de um modelo fotografada não se ajusta, de forma irrefutável, à narrativa escrita do mesmo modelo, ainda que o operador seja também o mesmo.
Mas há, por consequência, um conjunto de regras fixas, de modelos de ideias, para as explorações representativas nestas áreas de expressão e comunicação -- nem a imagem precede o texto, nem o texto precede. O sulco inovador da realidade poética -- abertura sensível aos significantes accionados, relação nova entre sinais, símbolos e metáforas -- é que marca, de forma indelével, os níveis da qualidade da construção proposta. Texto e imagem, em particular no âmbito pedagógico, surgem de uma conjugação profunda no próprio projecto dessa construção: escreve-se no jogo simultâneo da banda de imagens e de palavras possíveis.

quinta-feira, dezembro 18, 2008

FOTOGRAFIA MENTE TANTO COMO A PINTURA


A fotografia, mesmo a fotografia que procura (pela aproximação) expor a verdade do real, mente tanto como a pintura. Para exprimir esteticamente os objectos que olhamos de passagem nas horas do quotidiano, enfrentamos o problema de mentir para dizer a verdade que a todo o instante se esconde de nós. Posso olhar-me ao espelho e pensar em restituir a figura, com outra forma, ao plano a que chamamos da realidade. Mas a própria imagem ao espelho já não é verdadeira: o braço direito, no vidro, é legível como sendo o nosso braço esquerdo em projecção vertical. Eu penso que é pensável o pensamento plástico. (Francastel). Mas também penso no pensamento sobre o real, a despeito de todas as armadilhas e distorções que a percepção visual nos atira ao caminho das representações. A propósito de tudo isto, continuo a julgar que a abertura alucinante da arte a todas as formas de se configurar, invertendo imagens, inventando a mentira no interior da própria verdade, não está (nem deve erstar) inibida de se reconhecer na necessidade do realismo. É impossível copiar a realidade como se a cópia respirasse, para citar a célebre frase de Claude Roy a propósito de certos quadros de Picasso: «eles estão vivos porque respiram». É uma daquelas afirmações que nos faz, de súbito, perceber tudo. Como a que Magritte escreveu sob a representação ultra-realista de um cachimbo: «isto não é um cachimbo».
Tenho vivido sempre a dialéctica dessa equação: a de olhar para um trecho da realidade e não o ver como definitivo. Lembro-me sempre de um jarro que havia na minha casa, sobre uma mesa de abas móveis junto da janela, na cozinha. Quando entrava naquela dependência pela porta do quintal, o jarro poderia estar posado com a asa para o meu lado direito, a mão tocava-lhe com imediata facilidade. Mas quando entrava pelo lado da «copa», a mesma posição do jarro era-me dada com a asa para a esquerda, o que, sendo eu destro, me obrigava a uma escolha mais complicada: ou usar a mão esquerda com mais cuidado, ou usar a direita, movendo-me para a ter pelo menos de frente para o arco de vidro e poder manejar o objecto, em segurança, com a mão direita. A visão indicia, de facto, certos comportamentos, ajuda-os ou compromete diversas evidências.
Nunca me ocorreu uma ideia apenas ligada à natureza do real e por isso não me espantava nada com os desenhos lógicos (ainda não reféns da percepção) que os meninos da escola realizavam como qem escreve. A vida que desejamos aprisionar no sentido de um quadro ou de uma escultura escapa quase toda para um espaço invisível e dela fica-nos apenas nas mãos a sujidade das tintas e na tela a pressa aterradora da imagem que já não pertence a ninguém.
Tudo isto por causa daquele copo com água, do qual ía beber, e agora, fotograficamente, não passa de uma transparência. Vou à cozinha buscar outro. O jarro ainda está fresco, a água pronta para usar com as mãos e a boca, a asa de vidro voltada eficazmente para a direita: se entrar pela porta do quintal.

sexta-feira, novembro 28, 2008

O BAZAR LABIRÍNTICO DA VIZINHA PATRÍCIA





Pisei o degrau da entrada e fiquei estarrecido por me achar de súbito num interior com- pletamente cercado de uma variedade incontável de objectos vulgares de consumo, coisas utilitárias de metal e de plástico, de madeira e tecidos industriais, máquinas de café, chaleiras, bóias floridas em pleno Inverno, baldes de folha, zincos, candeeiros aprisionados na sua estética das duas assoalhadas, esfregonas, escovas, faqueiros, pentes, cortadores de unhas, espelhos com molduras barrocas, pequenos móveis para casa de banho, sanitas, tampas de sanitas, gambiarras de três e seis lâmpadas, velas finas e gordas, vermelhas, amarelas e brancas, tintas de esmalte, fichas eléctricas, sachos de jardim, tapetes para o banho, fio de nylon, maçanetas para portas fingidamente antigas ou recorrentes, pássaros de brincar, prateleiras de vidro, toalhas turcas, brinquedos a corda e com pilhas, machadinhas de madeira e ferro temperado, tabuleiros para chá, tijelas, quebra-nozes, panos para a louça, acendedores de gaz, trinchas, pincéis, pratos de barro e em cerâmica da Secla, chávenas de café, banheiras de menino, meninos para meninos - «Vizinha!» Latas cairam lá para o fundo e ela apareceu do fundo de uma floresta inenarrável. Vinha a defender-se do aperto das coisas e eu olhei para trás e já não vi a porta, só paredes em volta de materiais diversos, do chão até ao tecto e no próprio tecto. Vinha devagar, obesa, sorridente: «Então vizinho, que é que vai desta vez?» Pensei que, naquele labirinto forrado de bugigangas, não havia lugar para pedir só uma coisa e uma coisa menor. Reagi à crescente sensação de claustrofobia e pedi: «Queria um rolo de nylon, daqueles pequenos e uma lata de tinta plástica, branca». Ela sorriu de forma mais larga. «Por acaso, desta fez não tenho nada disso».

quarta-feira, novembro 26, 2008

RESGATE DE UMA PINTURA DOS ANOS 70


Como já se percebeu desde o início, a minha obra, nas várias disciplinas aqui citadas, nunca foi ordenada por arquivos, códigos identificadores, acervo de artista. Há séries tratadas e estudadas, mas há também centenas de obras plásticas dispersas pelo país e pelo estrangeiro, sobretudo vendidas através de galerias, cujas propriedades não se encontram catalogadas, nem a indicação de qual foi o comprador, além de minúcias técnicas por vezes muito importantes. Certas pessoas que têm estudado a minha produção como printor desde os anos 60, conversando comigo, ofereceram-me reproduções de peças cujo rasto eu perdera (embora me lembrasse da sua forma), facto este que, além de insólito, se ficou com frequência a dever a teses de mestrado e de doutoramento. Dirão os que lerem estas notas que esta indisciplina é inaceitável, seja qual for o verdadeiro valor das obras. Mas ao certo, o meu projecto não era do de tornar pública uma carreira, ter confiança em tudo o que fizesse: se figuro nos dicionários da pintura portuguesa é porque alguém cumpriu o seu dever. Por mim, seria difícil andar esgaravatando o meio, as influências, entre galerias e editoras, a fim de edificar um edifício pluridisciplinar que acabou por estar suspenso por aí.
Esta peça fazia parte de um conjunto trenário, em acrílica, e decorria de uma outra série inspirada nos desastres rodoviários e outros. Toda a minha obra plástica, ou grande parte dela, releva (ou ainda releva) da conturbação do mundo, espaços estilhaçados, desastres principais, como sempre achei por bem nomeá-los. A par de outros, com a mesma orientação, mas conotados com outras catástrofes, as interiores, as da condição humana. Talvez este blog, até ao seu termo, possa delinear um percurso multidisciplinar e assinalar notícias (sem cronologia) de muitas obras, de uma diversidade de projectos consertados em torno destes polos de coerência.

sexta-feira, novembro 21, 2008

TALVEZ UMA DESERTIFICAÇÃO ANUNCIADA


Este livro, alegoria inquietante povoada de gente envelhecida e alguns traumatizados da guerra, começa por nos sugerir um espaço invulgar, entre próteses arquitectónicas improváveis e a quase prosaica imagem de um centro de acolhimento votado sobretudo à terceira idade. Como que saída de um passado indeterminado, não propriamente longínquo, A CASA mergulha numa paisagem exterior sem limite, após jardins mal tratados e vedações atrás de vedações, acrescentada, através dos tempos, de novos pavilhões geminados ao estilo inicial, na urgência de uma demografia trabalhosa, gente meio perdida, pessoas solitárias e sem memória, ali procurando conferir ao resto das suas vidas um resto de dignidade ou de conforto. Mas a imagem do mundo infiltra-se nesta multidão acossada por muitos problemas de saúde, de abandono, restos de retratos amarelecidos, talvez segredos de família, porventura afectos guardados em vulgares caixas de cartão.
O quotidiano desta população, na sua diversidade e grupos mais relacionados, enche de tumultos iniciais estas páginas, numa relação complexa entre cada pessoa, cada saudade, e as regras de serviço, as enfermeiras e auxiliares que fazem por dar uma continuidade razoável aos velhos, a meio das refeições, tratamentos, conversas patéticas, e também a presença ainda forte (mas abalada) dos «hóspedes» mais novos e cuja mente parece gravemente afectada pelas sequelas da guerra ou pela batalha das grandes cidades.
Narrativa visualmente apelativa, antropológica, marcada por uma sociologia do sofrimento, este romance faz-nos reconhecer ideias e perdas contemporâneas, aproximando-nos da condição humana no quadro de uma espécie de desertificação anunciada.

sábado, novembro 08, 2008

O DESTINO OU O QUEBRA-NOZES ESQUECIDO


O quebra-nozes ficou estendido, imaculado, sobre a mesa. Que faz aqui o quebra nozes? Não sei, há anos que não vejo esse instrumento, devia estar guardado numa das gavetas da cozinha, presumo. Nesse caso, e dada a natureza do objecto, seria natural que tivesse sido abandonado lá, por desatenção, onde de resto falta qualquer indício de cascas, ou de miolos, ou nozes inteiras em algum sítio adequado, não é? Pois sim, aqui é a sala de jantar, a mesa costuma ter uns pratos ao centro, flores, ornamentos. E só temos, meio aberto e limpo, o quebra-nozes? De facto, parece uma nova decoração, algum devaneio, uma ideia atípica. Tem a noção do que está a dizer? Porquê? Porque encontramos duas nozes, aliás velhas, num racanto da arrecadação. Mas qual arrecadação, qual coisa, eu tenho aí um armário do próprio andar, cheio de coisas sem préstimo, latas, um azeite creio que rançoso, caixas da aparelhagem, nada mais, há anos que perdi o hábito de vasculhar nesses sítios, as gavetas empenadas, o vão bolorento onde assenta a placa do lava-louiças e do fogão, ou mesmo aquele espaço além, no recanto entre portas, as malas de sempre, cheias de pó, tenho lá paciência para subir ao pico do guarda-loiças, loiças velhas, rachadas, uma salva de prata que foi a única coisa que sobrou para mim, a única lembrança da avó, coitada, santa, irrepreensível, cheia de sardas nas faces descaídas. Sei lá dessas coisas? Mas o senhor é inquilino desta casa. Inquilino já nem sou. Fiquei por aqui, ao deus dará, lendo outra vez alguns livros e jornais antigos, jornais do tempo da revolução, deixo tudo em monte, até copos e pratas usados há cerca de um mês, sofro de reumático, tenho artroses, a reforma mal me chega para o pão, te-nho a água e a luz cortadas, sabem como é, sabem como estes sacanas tratam os velhos, e ainda querem subir as rendas, abater a varanda donde já não se pode ver a rua, nem a rua nem os vizinhos, sem o pássaro na gaiola, os pardais a apanhar restos, sei lá das nozes, nunca comi nozes na minha vida, pareciam miolos de rato, esse quebra-nozes, se é daqui, vem do tempo da minha mulher, que deus a tenha em descanso, gostava de comprar coisas novas, muitas coisas, ainda podem ver aquele móvel castanho, rachado, bem cheio de roupas e caixas de cartão, algumas com chapéus dos casamentos e assim. Vamos lá calar, o senhor quer é dar voltas ao destino. Destino? Mas os senhores não vêem o meu destino? Esteja calado. Conhece aquela mulher? Não sei bem, não vejo bem daqui. Ó António abre a luz e traz a mulher para aqui. Conhece ou não conhece? Ah, minha boa Teodolinda, que é feito de ti? O senhor sabe bem melhor do que ela: não vê aquele dedo entrapado? Aquele dedo foi o senhor que enrolou num lenço e partiu com o quebra-nozes.

domingo, outubro 26, 2008

A REINVENÇÃO DA LENDA DAS AMENDOEIRAS


____Antes de entrarmos para um lugar de morte, ainda que branca, levemos flores desta árvore ser imóvel mas carregado de vida, na sua beleza homogénea, restos de uma primavera algures. Fotografei esta planta, sentado numa esplanada, no sul, à beira de um rio plácido que reflectia um canavial e uma antiga ponte romana. A árvore estava a poucos metros de mim, mas era o único ser que sorria, fresco, contra a apatia de meia dúzia de pessoas rodeadas de sumos e cervejas. Já tinha olhado para esta figura mondrianesca, na fase básica da primeira representação, mas não dera pela singularidade do seu espectáculo, vendo o que parece mais imperativo ver na normal decorrência do quotidiano, quase nada do que, no fundo, era a única metamorfose significativa (e até simbólica) que se abria, clara, a uma verdadeira precisão selectiva e comparativa do ver, ali. Então disparei a máquina fotográfica, para que aquele momento não se perdesse, e, sem mais vazios ou imagens recorrentes, deixei-me passear pela copa florida da árvore plantada por engano na orla daquela esplanada. É nesses casos, como noutros, que a nossa imaginação, sustentada pela memória e pelas contínuas dinâmicas do nosso cérebro, desagua no largo espaço da consciência e reinventa jardins em volta, por exemplo, ou quadros impressionistas, ou as lendas da cidade, da sua princesa sequestrada por um rei mouro, apaixonado, que plantava um pouco por toda a parte milhares de árvores capazes de florescerem em branco, assim, para que a sua amada lembrasse a neve do país donde viera. Mesmo assim, ao que se crê, a outra lenda trágica de certa mulher fugindo da almedina da cidade e embrenhando-se nos campos numa corrida paroxística, parece, para muitos estudiosos ou visionários, duas notícias da mesma história: a princesa nórdica não teria morrido de saudade, teria apenas enlouquecido quando descobriu que as flores brancas não eram neve e que a pedra avermelhada da fortaleza (sua morada, seu cativeiro) pareciam anunciar a conquista da praça pelos cristãos. E assim foi, com efeito, mas a mulher amada pelo comandante mouro, evadiu-se por uma porta secreta, correndo para Ocidente até mais não suportar. Os soldados que a perseguiam clamavam de longe, olhando em redor: «Ó da louca! Ó da louca!» E então, com a passagem dos anos e o desvanecimento da presença árabe naquela paisagem, os camponeses foram consolidando o baptismo do lugar em que desaparecera a fugitiva:chamaram-lhe ODELOUCA. Ainda existe. É bordado por um pequeno rio. E, curiosamante, esse rio engrossou e vai agora, com uma barragam que controla os benefícos da sua força hídrica, fornecer mais luz às populações locais, na época da tecnologia. As tochas dos soldados que perseguiram a mulher pintável como no «Grito», de Munch, nunca chegaram a ser encontradas.

terça-feira, outubro 21, 2008

RESTOS DE UMA CERTA LITURGIA DA MORTE




Está aí alguém? A quem pertencem estes objectos? O silêncio em redor parece uma leve e lenta cantata dedicada ao homem, à mulher ou à criança que já passaram vivos nesta catedral a céu aberto, feita de terra revolvida por algum vandalismo nunca identificado. Vidro fosco, vaso de barro, o oleiro quando? E as fotografias? E os retratos desfocados difusamente, outrora naquela redoma?
Eu conto, eu conto: eles vinham pelo domingo, domingueiros, grandes ramos de flores ainda orvalhadas, roupas negras, a criancinha enfiando os pés, a mão pendurada dos dedos crespos da mãe, passos pequenos, arrastados, e um medo da noite em pleno dia, manhã cedo, domingo de cada vez. Curvas de ferro lá atrás, já ninguém as imita, o ferreiro desdisse há muito a sua arte sem procura e nem sequer se aproximou dos mármores de Lagos, quando a moda chegou, andavam todos a fazer de finos, pedra polida, molduras como nas abas dos palácios, cruzes meio rendadas, o nome afundado em desenho inciso e letra preta. Já não sei quem era, não. Ó daí? Não há guarda, nem coveiro, nem operário de lajes? Mas eles vinham. Os que não morreram pela pneumónica vinham aqui, de lenço no nariz, enterrar cinco ou seis pessoas por dia, largar a terra, fechar o ferro ou as redomas com os retratinhos, flores de seda branca, alguns a aparelhar calcáreos trazidos de longe, tudo sem voz, nem ordens, as famílias ao portão lavadas em lágrimas. Ó da guarda? Ó porteiro? É um desalento deixar tudo assim, com montes de flores mortas atiradas para o lixo. E essas ainda são dos vivos, alminhas do Senhor, crentes na sua último morada, lavada, branca em volta, rosmaninho no ar ao cair da cerimónia, após o ruído surdo da terra encarniçada atirada para a tampa da urna, barulho oco e rolado, como se as tábuas não contivessem ninguém. Senhor António, onde está o coveiro? Precisamos dele amanhã. Foram-se todos, parecem mortos incapazes de responder, foram para a vila beber o seu mata bicho, que é como diz o Jasmim coveiro, três bgaços antes de cada cova, são vacinas, travam os bichos invisíveis atravessando a terra para o vazio onde ele cava, bichos de outras covas onde apenas sobram ossadas, pêlos, pedaços de roupa. Três bagaços por cada cova, incluindo os amanhos das cruzes e os potes das flores e o afeiçoamento dos grãos do terreno. E olhe lá, é que tudo ficava bonito depois desse trabalho, os jarros no vidro ou no barro, o chão elevado, alisado, alinhado, lembrando os velórios em torno das camas de ferro pintado, mas branco, velhas avós esticadinhas, metidas por inteiro nas roupas, um lenço de renda na cara. A urna esperava no chão, em baixo, ordeira, até ao amanhecer quando o Joaquim da funerária vinha acomodar a falecida na cova de madeira, sem tinta no fundo, ora cheirando a pinho, ora cheirando a nogueira, um Cristo de metal cinzelado jazendo no tampo, quatro pegas do mesmo jeito, duas a duas de cada lado. Vejam lá como as coisas são: eu sou ajudante do Joaquim há mais de trinta anos, já vi as mudas, os modos, tudo perfeito e engalanado. Mas quando estes ferros enferrujaram e nos disseram que os deixássemos assim. mesmo caídos, o tempo passou até esquecermos tudo. Já não se vê o nome desta gente, nem nas montras redondas, tudo baço, tudo amarelado, cheirando a terra e óxidos. Que raio de coisa. Mas vamos lá, vamos até lá cima, à capela, pode ser que os apontamentos do senhor Matias estejam contados e o lugar das ossadas também; isto é como tudo, somos uns para os outros, eu posso ver e perguntar porque vivo nesta viva há muito tempo, e é preciso que as coisas estejam aprontadas quando as famílias descerem da igreja, ali pelas pimenteiras. Ora aqui está uma cruz de pobre, abandonada, era do José do Nascimento, já não se percebe a data porque eles juntavam números e letras de outra maneira, assim como aquelas que tenho na matrícula da minha motoreta. Bem, tristezas não pagam dívidas. O José jé deve ter aí companhia, vejo muitas letras . Também não há mais ninguém dessa gente, nem os tipos que vinham sempre do barrocal, ao domingo, como se trouxessem água para encher os bebedores dos pássaros. Ora, ora a verdade é que nem pássaros voam por estas bandas, o que dá que pensar. Mas de dia, numa manhã assim, cheia de luz, as paredes brancas de cal em redor, porquê? Eu gosto de ver, gosto de me sentar nas pedras, deixando passar até aos meus olhos a sombra que se estende depois do sol ter estado a prumo sobre aqueles mausoléus. Parece mentira, parece mesmo, mas a verdade é que a morte é branca.
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texto e fotos do autor deste blog

quarta-feira, outubro 15, 2008

NOTÍCIA DO SANGUE ROUBADO, PRAÇA MAIOR


A rapariga estava deitada num divã estreito, a um canto de uma cave de paredes sujas e cartazes rasgados. Havia papéis no chão, roupas salpicadas de sangue, uma mesa rolante, de esmalte falhado, com o tabuleiro superior cheio de instrumentos cirúrgicos, em monte, entre bocados de algodão molhado numa espécie de tinta azul. Metais a revelar cortes no corpo de alguém, fios vermelhos escorridos, compressas, um suporte junto da parede com o seu gancho e o depósito para o soro ou transfusões, um tubo descendente, a terminar numa entrada de torneira na artéria principal, junto da dobra do cotovelo do braço direito. Mas o vaso do líquido não tinha soro nem sangue, estava municiado até meio por um líquido estranho, azul, matéria não muito fluida, na aparência, e que se podia ver a deslizar pelo tubo. A rapariga tinha uma máscara ou aparelho de respiração, toda a sua cara perto da boca parecia trucidada e transitoriamente comprimida com adesivo branco. Tendo as pálpebras fechadas, a pele parecia também azulada, ou suja de carvão, dos olhos até às maçãs do rosto. E o braço esquerdo, arroxeado, estendia-se ao lado do corpo, agulhas presas como no outro membro superior, dois tubos caídos, a breve trecho cravados num recipiente de vidro, o qual se mostrava como receptor de sangue da jovem mulher, aliás o que já acontecera com outro objecto semelhante, cheio de líquido vermelho, escuro, um pouco de espuma à altura do garagalo fortemente tapado, tranca e arame em volta.
Os meus olhos ardiam. Sentia ardor no peito enquanto fixava tudo isto, ainda sem perceber o que via, como via, porque via. A mão esquerda da paciente, roxa, esverdeada, parecia ter-se ani-mado um pouco. Era isso, movia-se devagar, tacteando a bata verde claro, parecia uma aranha trôpega a querer subir, enrolada nos tubos. Assombrado, reparei que a outra mão, essa apoiada sobre o peito coberto de tubos, se movia também, aflita, tremente, como se procurasse desfazer-se da agulha e dos apertos, metida e empeçada nos outros tubos sobre o peito. As mãos, parecendo rumar à zona do coração, fechando e abrindo os dedos, espasmos lentos, encontravam-se enfim no peito raso, desacertando os dispostivos de recolha de sangue e da tranfusão do composto azul forte. Havia agora derrames de das duas matérias, tanto no peito como no lençol da cama, mãos como gritos, tubos crescendo, arrastados da obscuridade pela subida dos braços, pelos movimentos em desencontro e trajectos cruzados, linhas azuis, outras de maior calibre, deixando passar bolhas de sangue. Tudo era já um motor cheio de próteses, plástico enrolado, sujo, arrastando panos, bolas azuis de algodão, outras encharcadas de vermelho, mais tubos, mais braços esguios que pareciam ter vida própria e prendiam cada vez mais as mãos cobertas de próteses, nem vida nem morte, galáxia de dor e máquina de roubar vidas, sei lá, eu via, via, a boca seca, o grito calado, um arfar não sei onde, todo o peito da mulher rasgado em buraco, buraco escuro donde emergiam outras formas, metais de afastamento e prisão de partes de orgãos, as mãos numa só, dedos rectos, quebrados, todos os tubos como vermes, vermes que subiam, que desciam, que entravam na cova descosida - cova onde as mãos se afundaram de súbito, soltas, sem vida, ao acaso, por fim num gesto doce, docemente, até à imobilidade.
Na praça, junto ao rio, os barcos acabam de ancorar. Deles começa a jorrar uma multidão de gente em contra luz, lesta, escura, abrindo-se depois no patamar onde passavam os transportes públicos. Sentado na esplanada, sentia-me dorido, culpado não sei de quê. Rostos pálidos, amarelados ou anémicos, passavam em fila, ali bem perto. E havia jornais, um jornaleiro à antiga,
transportando uma tonelada de papel. Comprei um qualquer. Falava-se da crise global, do fim da ditadura dos coronéis, das mães que se juntavam na Praça Maior para resgatar entes familiares, maridos e filhos. Gritavam palavras de ordem. Queriam acabar com a urgência, o medo, a ausência das famílias.

Uma pequena nota no jornal, à esquerda, em baixo, dizia apenas: Ana Orwell, jornalista, desparecida há dois meses, foi ontem encontrada no subúrbio sul, morta, aparentemente por lhe terem feito o transvaso de todo o seu sangue e desinfectado o corpo por injecção de uma mistura anti-decomposição. A polícia investiga este caso singular na mesma hora em que as mães da capital exigem a abertura das valas comuns, na esperança de encontrarem os restos mortais dos seus familiares e amigos.

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Sinopse do filme «A morte de Ana Orwell», do autor deste blog,
sob eventos trágicos do fim de uma ditadura na América do Sul

domingo, outubro 12, 2008

ALUCINAÇÃO: COR, METAMORFOSE E MEDO


Estás com um tubo na boca, isso já entendeste. Tens seis agulhas espetadas no pescoço. Urinas sem perceber, um ardor que desaparece por baixo da cama. Se calhar começaste a ter medo. Mas medo a propósito de quê? Lembras-te daquela voz feminina que informou alguém de que estavam no «piso do bloco»? Havia mármores, tubos ao longo das paredes, perto do tecto, mas a luz era escassa, vias mal, tinhas a cabeça entalada entre almofadas industriais e só podias espreitar, pelo canto do olho, um canal fino, transparente, pelo quel escorria, leitosamente, o que poderia tratar-se de soro. Soro fisiológico, com produtos adicionados, invisíveis. Sim, claro que o espaço em volta havia escurecido, tornara-se azulado, e havia enfermeiras lendo fichas, cabeças coroadas de claridade, pendidas sobre o branco da mesa. Tudo parecia tranquilo mas o ruídos das vozes, apesar de trocadas em murmúrio, era insuportável, ensurdecedor. E a parede já sem tubos transformara-se naqueles tabiques interiores, antigos, revestidos por uma pintura ornamenteal dita escaiola. Havia pedreiros e pintores especializados nesse efeito aristocratizante, a fingir superfícies marmóreas, assaz raras. Depois apareceu aquela mulher. Tinha um pequeno véu na aba do chapéu estilizado e leve, vestia como nos anos 30, fato diáfano, rosa velho, uma cinta da mesma natureza, azul cinza, delineando a anca emergente. Orosto ficara em sombra, uns lábios pintados com suavidade, numa cor também rosada, a pele pálida, as feições inertes, tudo inerte na sua pose ao fundo. E, no entanto, a sua nitidez era maior do que o recorte das pessoas próprias daquele contexto. Pensei num fantasma. Numa visão do Além.
As alucinações em estado pós operatório são aparentemente mais reais do que a realidade.
Um bom tema para estudar as questões da nossa percepção do mundo.
A pintura aqui exposta, surgiu das mãos de um amigo que não reconheci. Ele disse que entregava a pasta à minha família. Antes de se despedir disse devagar: «olha, usei vermelhos, pretos e alguns cinzas. Sei que são as cores tuas preferidas e aliás ajudam a perceber os tons em volta.» O homem sorriu, parecia irónico, e eu não podia falar nem perguntar-lhe de onde nos conhecíamos.
Quando me foi possível libertar a boca, dois dias após aquela tarde, falei com a enfermeira e perguntei se estivera ali um colega meu, com uma pasta de cartão. «Não esteve cá ninguém, excepto a sua família. Mas tem aí, junto da mesa de cabeceira, uma pasta de cartão. Não sei quem a deixou assim, nem do que se trata. Quer que abra?» Atordoado, ainda consegui dizer: Não, deixe estar assim. Vejo quando estiver melhor».

quinta-feira, setembro 25, 2008

MEMÓRIA DOS MORTOS INSEPULTOS NA CHINA


Chamei por ti, chamei durante horas, onde estás? Quem és tu? Meu filho não, mas isso não importa. Podes ser também meu filho, ajuda-me, que é feito daquela criança de blusa azul? Não sabes? Abre caminho por esse lado, mas tem cuidado, filho. Onde está ele? Onde estás tu? Não chego lá, meu Deus, que Deus faz uma coisa destas, sacrificar crianças. Claro que me falta a mão esquerda. Claro que foi a trave. Põe-se um trapo, tu, meu novo filho, ajuda-me a rasgar a camisa. Ainda não viste um menino de blusa azul? Não viste? Como é que tu queres que eu saiba onde tombou a minha mão? Esta é forte, estás comigo. Mas temos de correr, a mão fica para quem a quiser. Olha a lama, já me chega aos joelhos, agarra a mão que sobrou, agarra a saia pesada. Preciso de ti e dos meus pais e do meu filho. Vestia uma blusa azul. Não há nenhum azul assim. Olha em volta, sobre para as minhas costas, bem agarrado, espreita para a frente, para trás, para os lados. Ele estava mesmo ao meu lado, puxando pelo braço, foi fácil, desprendeu-se dos restos da mão. Vinha comigo, agarrado à roupa e eu a selar contra o peito o sangue que escorria do braço. Não, filho, não tenho dores, nunca tive dores, a única dor é não saber do menino, é perdê-lo para sempre. Talvez amanhã. Talvez com o trabalho dos resgates. Talvez ainda respire. Talvez ainda se perceba que veste uma camisola azul. Talvez Deus ainda tenha compaixão por todos nós, vivos e mortos

quinta-feira, setembro 18, 2008

MEMÓRIA DAS FÁBRICAS CORTIÇEIRAS: FOGOS



Ceus de brandura e fogo,
crostas cortadas
no atraso das noites acordadas.
E o que sobrava em rios de lava
lavrando os mapas da insónia
abria sulcos de incerteza carbonizada,
faces furtivas, ainda vivas,
os pássaros fugindo avisadamente
na luz da hora intermitente.


Soavam gritos nasais ou roucos,
gritos sujos, loucos,
afinal previsíveis e terminais,
graves também,
cada vez menos audíveis
na distância de todas as fugas,
gente partindo ao contrário do medo.

Ficavam as janelas desdentadas.
Sobravam grandes nuvens de fumo
sem rumo,
puxadas pelas velas do vento.
Vidros partidos ou espelhos
na inconstância das folhas rasgadas
sobre alcatrão e pedras fracturadas,
os pássaros longe,
os barcos vazios, à espera,
paredes de lata,
velhos de pano sacudindo as feridas
das roupas desfibradas,
quase invisíveis, já perdidas.

Uma janela horizontal,
morta,
vitimada outrora
na fábrica ardida antes da hora.

Rocha de Sousa

terça-feira, setembro 16, 2008

AS APARÊNCIAS DO REAL OU DA PINTURA


O homem é dotado de um aparelho visual altamente sofisticado e capaz de aperfeiçoamentos operativos consideráveis. Mas já temos equacionado aqui as limitações que o cérebro tem de cobrir, transformando um paralelogramo e rectângulo ou uma oval num círculo, isto é: o que a retina transmite para o grupo de neurónios que elabora a visão corresponde a apropriações enviesadas do real, linhas convergentes quando são paralelas, espectáculo plástico, como na pintura abstracta, quando o referente não passa de ruínas de um prédio. A estrada que parece afunilar-se não é lida dessa maneira pelo cérebro: a elaboração dos dados remetidos pela retina faz com que deduzamos a configuração real das coisas. Estas palavras podem associar-se a uma observação pouco cuidada da imagem aqui publicada, aparência cuja escala desconhecemos e que nos pode calhar relacionarmos com uma obra do autor deste blog, o qual é de facto dedicado a dar a ver peças de ordem plástica, fotografias, referências a cinema, arte digital e literatura, áreas em de facto tenho trabalhado, profissional ou amadoritiscamente, e que ofereço ao conhecimento dos outros e ao próprio debate. Assim, ocorreu-me trabalhar esta imagem, cuja base é fotográfica, de um fotojornalista, e cujo resultado, semelhante a uma pintura, seria quase irreconhecível junto da fotografia de base, com muito mais material em torno deste fragmento.

segunda-feira, setembro 01, 2008

MUTAÇÃO: UMA FOTOGRAFIA E DUAS TINTAS


Muitas das obras de arte do nosso tempo, nomeadamente nas últimas décadas do século XX, emergiram das mais diversas experiências, sobretudo pelo desenvolvimento instrumental dos meios no justo recurso às ciências, artesanatos, pensamento plástico, liberdade de inventar, superando convenções e atavismos aprisionantes. Toda a liberdade, bem o sabemos pela História e pelas revoluções entretanto sustentadas entre guerras, é um campo armadilhado, susceptível de tornar perigosas muitas escolhas aventureiras e implacáveis competições de ordem estética e de ordem mercantil. Neste caso, desde há muito que se fala em indústrias de arte, uma cultura salsicheira que a classe intelectual se encarregou de encobrir ou enobrecer como superior produto do pensamento. Não muito tempo antes, Umberto Eco, entre outros, atacara os males intrínsecos da arte de massas (ou para as massas), sublinhando a ideia de que certos valores recorrentes não significavam nem a socialização, nem a democratização da arte. A despeito dos muitos escolhos que o acesso à cultura superior coloca às sociedades, a verdade é que, para tratar pelas formas artísticas o pensamento ontológico mais consistente, a obra de cunho estético é inevitavelmente elitista, não no sentido comum, mas no sentido de um saber de grande sustentação e de uma visão do mundo capaz de o suportar.
E dirão alguns visitantes: pois sim, mas que tem isso a ver com estes dois bonecos que aqui nos oferece? Eles equacionam essa transcendência? Em resposta, eu não diria tanto. Mas, na base, a raiz comum dos bonecos está na fotografia, a partir da qual foram ensaiadas técnicas informáticas básicas a fim de conferir dois rostos a uma única identidade. Isso não constitui, a bem dizer, nenhum feito extraordinário. Mas já é extraordinário o que se pode extrair de uma reflexão abrangente sobre o que parece um fenómeno ludicamente comum. Talvez Greenaway tenha pensado nisso quando imaginou uma entidade humana, de anatomia reconhecível, vestindo um só fato apesar de sustentar duas cabeças sobre os ombros, ambas saindo da mesma camisa e das mesmas abas do vestuário. Essa ideia, bizarra na forma, do outro que sempre nos habita, siamês ou não, sugere a complexa via pela qual talvez possamos ultrapassar certos limites, a tridimensionalidade, a unidade na diversidade, o envelhecimento parcelar, a interacção dos elementos sobre sensação, percepção, repretesentação. O que, bem vistas as coisas, não é tão pouco assim.

DO MAR AO AQUÁRIO CORREDOR DA MORTE



No mês de Agosto, no Algarve e um pouco por todo o país,
não há português de qualquer condição que não corra
às marisqueiras a fim de encherem a boca de mariscos,
os mais diversos, vício antigo que já teve estatuto de
classe, o dos ricos, mas que hoje é mitomania de todos,
haja crise ou vacas gordas.
Vemos, em Silves, no principal restaurante deste
culto, filas de gente à espera de lugar,
outros sentados no chão e em cadeiras,
horas a fio, alta noite, a fábrica de comer
cheia por dentro e por fora, numa alucinação
de cascas, cerveja, vinho branco, manteiga, pão,
restos inenarráveis pelas duas horas da
madrugada.

sexta-feira, agosto 29, 2008

O SOPRO DA BRISA E A MORTE DAS ÁRVORES


















Liso, seco, translúcido,
o tecido sobre a janela ainda se deixa atravessar
assim,
entre a luz e a palavra cujo sentido
nomeia a cortina, no balanço breve da brisa
a descer sobre o tapete copiado dos persas
aqui,
no lugar procurado pelo cão,
passos leves encobertos, dispersos,
cão que vem dormir vagos sonhos
no chão feito de flores e fios diversos.

Dorme, cão, respira devagar como as plantas,
sonha que é natural e verdadeira a relva desse tapete
e deixa que o teu pêlo se pareça com a lã do chão,
mal reflectindo a luz amarelada que desce da janela,
ou das cortinas e dos panos laterais,
ou do teu próprio sonho,
dessa lassidão lateral, de cão,
as pernas estendidas e a cabeça de orelhas caídas,
tombada e já sonhando novas saídas.

Nem tu sabes, cão, quantas vezes estive assim,
dormindo pela tarde fora, fingindo o real,
mal acordado depois pela cortina contra a cal,
outros panos laterais, igualmente teatrais,
pesados do sol a queimar e dos anos mais.

Morte anunciada, a deles,
dos troncos seculares, sem canais,
gigantescos e abandonados pelos pardais,
seiva seca, ramos quebrados,
jardim de bairro, recantos abafados,
dois patos, lentos e sós,
e um lago breve onde eles deslizavam, perto de nós.
Olhares divagando, doridos,
enquanto as serras cortavam os troncos feridos.

Troncos mortos antes de feridos.
Pardais mortos antes de perdidos













quarta-feira, agosto 27, 2008

APRENDER AS HORAS COM O RELÓGIO DA AVÓ


Eu era menino, já formava palavras e fazia contas. Foi há muito tempo, sem brinquedos nem prendas soberbas, a casa velha e fria, uma avó santa que me ajudava nas pequenas redacções e me oferecia, quando regressava de Aljezur, caixas com regimentos inteiros de soldadinhos de chumbo. Chamava-se Angélica, a avó, e fazia lindas rendas em crochet, costurava camisas e vestidos singelos de senhora. Cozinhava petiscos de galinha do campo e por vezes mandava ao forno público tabuleiros de folares. Em certos dias, quando não falava e nos dirigia olhares saudosos, era fácil perceber que tipo de sentimentos a povoavam e as saudades adiantadas para depois da morte. Tinha 90 anos e uma saúde de ferro. Escapara à pneumónica e tivera seis filhas.
O meu padrinho era um senhor farmaceutico, que emigrara para França e lá casara com uma senhora de boas famílias, madame Renée, que ainda conheci largos anos depois da guerra. Tinha um flho da minha idade e acabara por ser igualmente minha madrinha.
Quase no fim da guerra, o meu padrinho veio a Portugal para se tratar de uma doença dos pulmões e trouxe-me duas ofertas de sonho: um carro descapotável, pequeno, que andava a corda e no qual podíamos rodar o volante, mudando a direcção das rodas, e ainda um relógio de pulso, à prova de água, com ponteiros luminosos, segundo creio de muito boa marca.
Foi rápida a minha adaptação ao automóvel, em metal e com rodas de borracha, um luxo que nunca vira nas feiras onde só havia tralha de lata, de madeira e arame, coisas pitorescas mas que sucumbiam junto do meu peugot. Os meus dedos finos, de criança, manejavam o volante com facilidade e em bom acompanhamento de marcha.
O relógio, lindíssimo, grande de mais para a minha idade, é que era o pior. Pior porque eu não sabia ver as horas e não queria revelar a ninguém essa falha. Nem sequer me ocorria pedir a um dos amigos do meu pai, na Havaneza, que me ensinasse. Isso não seria estranho, pensava eu, tanto pela minha idade, como pela minha relação com a pessoa, o senhor Costa. Mas tive vergonha, de uma timidez congénita, e fiquei sem poder usar o relógio, embora o visitasse muita vez e lhe tivesse dado corda.
Eu ouvia as pessoas falarem das horas: «Maria? Que horas são?» E a voz dela, lá do fundo: «São dez e trinta e cinco». Depois percebi, quando a avó alimentava de corda o seu velho relógio de parede, acertando logo as horas, que o ponteiro mais pequeno correspondia aos números, aos doze números, o sinal das horas, sendo o maior um instrumento das tais partes ou minutos. Cada vez, neste jogo de espionagem, sabia mais sobre o funcionamento dos relógios e a marcação das horas.

Um dia, estava a minha avó a fazer a cama, perguntei-lhe: «Vó? Que horas são no seu relógio? Não vejo bem daqui.» E ela: «Pois claro, filho, és tão pequeno. São nove e dez». «Ah, está bem». E logo corri para o meu quarto com o intuito de colocar os ponteiros do meu relógio na posição em que vira os dela. Depois fui espreitando o andamento dos relógios. Por volta das cinco da tarde, decidido a aprender a ler as horas, meti-me na casa de banho e com um papel apontei aquele famoso «nove e dez». Percebi depressa que poderia, logo a seguir áquela hora, haver uma outra, no caso das dez. Se o ponteiro pequeno fosse colocado nas dez e o grande na posição das nove e dez, o resultado só podia ser «dez e dez». A partir daí começei a fazer experiências diferentes, rinventando o tempo que os outros apregoavam durante o dia. Eram seis horas quando descobri tudo, com uma alegria interior brutal. Quase a tremer, rodei o meu ponteiro das horas para as seis; e o maior para o número três. Segundo a minha descoberta seriam seis horas e 15. Corri para o corredor, onde a minha avó se sentava e vigiava o seu próprio quarto, mas, para disfarçar, desandei para o quintal. Um pouco depois clamei: «Vó?» E ela: «O que é, menino?» E eu:«Que horas são no seu relógio?» Ela inclinou-se para ver e disse: «São seis e vinte». Estremeci. Esperei. Acrescentei cinco aos 15, porque o seis já eu lobrigara do corredor. Fui, enfim, com ar distraído e sonso olhar a renda da avó e, logo que me foi possível pôr a jeito, olhei para o relógio dela: os velhos e rendados ponteiros estavam na posição dos meus: seis e vinte e quatro.
Nesse dia, até à noite, andei pela rua e pelo café a perguntar as horas. Quando mas diziam, eu pensava. O ponteiro pequeno está nas sete e o grando está nos 30, que eles chamam de meia hora.
E assim, longamente, tudo foi batendo certo. Não esperei por mais idade para colocar o relógio. De manhã coloquei-o no pulso, antes de ir para a Escola, e quando parti eram sete e trinta e cinco: sete horas e trinta e cinco minutos.
Rocha de Sousa

sexta-feira, agosto 15, 2008

PENSADOS DE ONTEM, CONSUMIDOS HOJE


A seguir a este conjunto de imagens, captadas na Feira Medieval de Silves, poderemos ver mais coisas próximas da sedução pela bugiganga. Estamos em Agosto de 2008 e a ideia dos dos organizadores cestes eventos é chamarem as massas que devoram tudo o que seja espectáculo , obstruindo a cidade e chamando os milhares de mirones que devoram tudo o que seja erspectáculo e bens (mesmo menores) consumíveis. Aqui olharemos pulseiras «iguais» e tecidos porventura trabalhados em teares eléctricos, informatizados, nos quais ninguém procura efeitos especiais capazes de sugerirem a espessura dos panos medievais, obtidos em grandes aparelhos horizontais, rudes e produzindo por vezes delicadas tramas de linho. Teares de quatro pentes e correpondente número de pedais, que separavam as teias umas das outras, aos pares.


quinta-feira, agosto 14, 2008

SILVES: FEIRA MEDIEVAL OU A ILUSÃO CÉNICA

OS ESPELHOS MÁGICOS

A Feira Medieval de Silves é uma tradição recente. Uma cenografia mágica, com espelhos milagrosos e milhares de bugigangas que não servem para nada mas que, na sua anarquia de multidão, se espetam nos nossos olhos e tornam-se estranhos sucedâneos dos nossos desejos. A população, sobretudo jovem, veste os trajes da época, por vezes cortejando as almas do clima, circulando em marchas dançantes, acompanhado a célebre dança do ventre, olhando de longe as lutas dos cavaleiros,--combates de lança e a cavalo, combates rancorosos a pé, com grandes espadas cerimoniais. A rainha não sei donde vem ao largo das memórias poéticas e navega brevemente no rio engalanado. Este ano imaginou-se o tempo do domínio árabe e a conquista da cidade por D. Sancho I, apoiado numa armada de Cruzados. Mas tudo se reduz ao mesmo do ano passado, a Idade Média são fantasmas de várias épocas, enquanto nas barracas sem idade e luzes bruxeliantes, instalam-se marroquinos, ciganos, espanhóis e até lordes ingleses, louros, com mulheres e filhos, estilo baile de máscaras, a vender candeias de lata e colares de vidrinhos. É uma boa brincadeira, cercada de grandes espaços toscos, onde se comem leitões e as mais esquisitas iguarias Essas sim, lembram mais de perto a Idade Média. Sem querer ser desmancha prazeres, acho que era mais honesto chamar ao ecento apenas Feira de Outros Tempos. Ficava tudo mais integrado, sem medo dos erros históricos e sem as joalharias de lata e vidro em barracas de lona vanguardista. Em paralelo podia fazer-se história, lembrar acções dos séculos XI, ou XIII, ou mesmo XIV.





terça-feira, agosto 12, 2008

A LENTA SUBMERSÃO DOS HOMENS | A CASA

Livro de 2006. Em preparação de saída
CÍRCULO DOS LEITORES
extracto
A irmã Mariazinha andava de volta, o braço direito a balançar como numa saudação, sugerindo a impossível distribuição de hóstias fora da hora litúrgica que as ligava ao Senhor. Francisca arrastara a Dona Feliciana para uma esquina diante do janelão, tratava das bolachas com geleia, espalhando toda essa anunciada felicidade pela bandeja que depois sabia ajustar nos braços da cadeira de rodas. Feliciana tinha alguns haveres preciosos e a serventia voluntária daquela mulher que ficara marcada pelo gosto beato de assumir estes trabalhos e outros similares, sempre na dependência de alguém, sempre em obediência ao poder instituído. Na sua passagem fiscalizadora, Mariazinha soltava no ar certas palavras de ordem: «despache a senhora, tia Francisca, isto não é serviço para mimos e rezas mururadas». Mariazinha vinha zelando pelo equilíbrado decorrer da refeição, sem alienar as palavras próprias e os gestos indiciando ordem, entre roupas pardas e o aviso dos cheiros. Era necessariamente muito tolerante para com os velhos que usavam roupa da Casa, pijamas de flanela às riscas, largos, grotescos, ou fatos de cotim, tesos das lavagens completadas com ferro e goma. Ajudava no sentido de que tudo decorresse, por outro lado, dentro do horário previsto, inacessível aos velhos sem dentes ou outros males semelhantes, terminando a chamar de longe as auxiliares para que carregassem a louça, pilhas de louça. As auxiliares eram mocinhas de pouca idade, maminhas a despontar, rostos de porcelana e acabamentos a ouro, pernas já grossas e abauladas nas calças de ganga que traziam por baixo da bata curta. Bolinhos, mais bolinhos. «Que idade tens tu, minha querida?» As bocas luzidias da saliva e do chá abriam-se e fechavam-se umas após outras, comendo, falando, expondo a língua por acaso ou num maginário de luxúria. Mateus ia sempre para o mesmo lugar, de perna aberta, a mastigar bolinhos e a escarrar nos guardanapos de papel. Punha a mão no sexo quando as mocinhas passavam e gostava de vê-las rir, como se elas lhe viessem prestar outros serviços, daqui a pouco ou de madrugada, entre aventuras cheias de lascívia. «Deixe as moças em paz, compadre Mateus, olhe que ainda o mandam para o olho da rua». Gargalhadas, murmúrios de desaprovação. E ele: «Mas que faço eu às miúdas, ó merda? Olho para elas com um olhar sem malícia, saudoso dos borrachos de outras épocas, nem mais nem menos». O senhor José tinha recebido a visita da irmã Mariazinha porque deixara cair uma chávena e esta partira-se. Ela dedicou-lhe palavras atordoantes, como setas nos alvos de cortiça pintada em círculos, o dourado ao centro. «Ah sim? Está tudo apertado ou os senhores é que se apertam como pardais no cimo das árvores?» José era um velhote de estatura meã, torrado pelo sol dos campos, que a Junta de Freguesia da sua aldeia cobrira de alguns favores em troca das culturas dele, da casa em ruínas e da pensão de miséria que o Marcelo lhe inventara. «Eu pago a chávena, foi sem querer, as minhas mãos ficaram trémulas logo que deixei de cavar».
Excerto do capítulo 13, livro A Casa, de Rocha de Sousa

terça-feira, julho 29, 2008

VELHAS PORTAS, A BELEZA DO APODRECER


Quando a indústria de transformação da cortiça entrou em colapso no seu maior centro, Silves, já muitas portas de armazéns e de acesso a depósitos da matéria prima, tinham, junto ao chão, este aspecto arruinado, com buracos que facilitavam a entrada das águas das chuvas e os ventos de pó que atacavam a cidade em certas alturas do ano. Estas imagens são actuais (2008), são restos de arranjos inutilizados, fósseis, fibras secas, ferros de aperto afinal inúteis. Se nos alhearmos do chão, que nestes enquadramentos não se vê, o que nos é oferecido pode merecer o nome de paisagens, algo que soçobrou e adquriu o eterno estatuto de ruína. Há formas de morrer assim, como tantas vezes a arqueologia nos dá a ver, conciliando aparência e conservação.



Pela tardinha, num dia nada próprio do verão, divaguei por estes sítios e mais uma vez convencido da beleza difícil destas imagens, coisas, memórias, rostos velhos escondendo buracos negros ou vazios de armazéns outrora floridos, cheirando a frutos secos, amêndoa, coberturas retorcidas do milho. Por vezes quase me sentava no chão, entre os carros estacionados e a porta a enquadrar no ponto escolhido.
A certa altura, uma jovem fresca e bem aprimada de corpo, parou e perguntou-me:
«Mas que raio, o senhor acha isso bonito?
Eu levantei-me, sem ter perdido o disparo, e perguntei, por minha conta, à rapariga:
«Gosta de crianças, acha-as em geral bonitas?»
«Sim, claro que sim», respondeu ela.
«Conhece gente idosa, velhos, alguns como aqueles que se sentam debaixo das alfarrobeiras? Haverá, entre essa gente, o exemplo de uma beleza na velhice?»
«Sim, claro que sim» voltou ela a responder.
E eu:
«Pois saiba a menina que ando por aqui a fotografar estes belos velhos, velhos e silenciosos»
E ela:
«Ah, que giro. Giro mesmo. Visto assim, tem toda a razão».
Até esta porta ardida ganha, em beleza e despojamento,
os plásticos queimados do italiano Burri

fotografias de Rocha de Sousa