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terça-feira, outubro 21, 2008

RESTOS DE UMA CERTA LITURGIA DA MORTE




Está aí alguém? A quem pertencem estes objectos? O silêncio em redor parece uma leve e lenta cantata dedicada ao homem, à mulher ou à criança que já passaram vivos nesta catedral a céu aberto, feita de terra revolvida por algum vandalismo nunca identificado. Vidro fosco, vaso de barro, o oleiro quando? E as fotografias? E os retratos desfocados difusamente, outrora naquela redoma?
Eu conto, eu conto: eles vinham pelo domingo, domingueiros, grandes ramos de flores ainda orvalhadas, roupas negras, a criancinha enfiando os pés, a mão pendurada dos dedos crespos da mãe, passos pequenos, arrastados, e um medo da noite em pleno dia, manhã cedo, domingo de cada vez. Curvas de ferro lá atrás, já ninguém as imita, o ferreiro desdisse há muito a sua arte sem procura e nem sequer se aproximou dos mármores de Lagos, quando a moda chegou, andavam todos a fazer de finos, pedra polida, molduras como nas abas dos palácios, cruzes meio rendadas, o nome afundado em desenho inciso e letra preta. Já não sei quem era, não. Ó daí? Não há guarda, nem coveiro, nem operário de lajes? Mas eles vinham. Os que não morreram pela pneumónica vinham aqui, de lenço no nariz, enterrar cinco ou seis pessoas por dia, largar a terra, fechar o ferro ou as redomas com os retratinhos, flores de seda branca, alguns a aparelhar calcáreos trazidos de longe, tudo sem voz, nem ordens, as famílias ao portão lavadas em lágrimas. Ó da guarda? Ó porteiro? É um desalento deixar tudo assim, com montes de flores mortas atiradas para o lixo. E essas ainda são dos vivos, alminhas do Senhor, crentes na sua último morada, lavada, branca em volta, rosmaninho no ar ao cair da cerimónia, após o ruído surdo da terra encarniçada atirada para a tampa da urna, barulho oco e rolado, como se as tábuas não contivessem ninguém. Senhor António, onde está o coveiro? Precisamos dele amanhã. Foram-se todos, parecem mortos incapazes de responder, foram para a vila beber o seu mata bicho, que é como diz o Jasmim coveiro, três bgaços antes de cada cova, são vacinas, travam os bichos invisíveis atravessando a terra para o vazio onde ele cava, bichos de outras covas onde apenas sobram ossadas, pêlos, pedaços de roupa. Três bagaços por cada cova, incluindo os amanhos das cruzes e os potes das flores e o afeiçoamento dos grãos do terreno. E olhe lá, é que tudo ficava bonito depois desse trabalho, os jarros no vidro ou no barro, o chão elevado, alisado, alinhado, lembrando os velórios em torno das camas de ferro pintado, mas branco, velhas avós esticadinhas, metidas por inteiro nas roupas, um lenço de renda na cara. A urna esperava no chão, em baixo, ordeira, até ao amanhecer quando o Joaquim da funerária vinha acomodar a falecida na cova de madeira, sem tinta no fundo, ora cheirando a pinho, ora cheirando a nogueira, um Cristo de metal cinzelado jazendo no tampo, quatro pegas do mesmo jeito, duas a duas de cada lado. Vejam lá como as coisas são: eu sou ajudante do Joaquim há mais de trinta anos, já vi as mudas, os modos, tudo perfeito e engalanado. Mas quando estes ferros enferrujaram e nos disseram que os deixássemos assim. mesmo caídos, o tempo passou até esquecermos tudo. Já não se vê o nome desta gente, nem nas montras redondas, tudo baço, tudo amarelado, cheirando a terra e óxidos. Que raio de coisa. Mas vamos lá, vamos até lá cima, à capela, pode ser que os apontamentos do senhor Matias estejam contados e o lugar das ossadas também; isto é como tudo, somos uns para os outros, eu posso ver e perguntar porque vivo nesta viva há muito tempo, e é preciso que as coisas estejam aprontadas quando as famílias descerem da igreja, ali pelas pimenteiras. Ora aqui está uma cruz de pobre, abandonada, era do José do Nascimento, já não se percebe a data porque eles juntavam números e letras de outra maneira, assim como aquelas que tenho na matrícula da minha motoreta. Bem, tristezas não pagam dívidas. O José jé deve ter aí companhia, vejo muitas letras . Também não há mais ninguém dessa gente, nem os tipos que vinham sempre do barrocal, ao domingo, como se trouxessem água para encher os bebedores dos pássaros. Ora, ora a verdade é que nem pássaros voam por estas bandas, o que dá que pensar. Mas de dia, numa manhã assim, cheia de luz, as paredes brancas de cal em redor, porquê? Eu gosto de ver, gosto de me sentar nas pedras, deixando passar até aos meus olhos a sombra que se estende depois do sol ter estado a prumo sobre aqueles mausoléus. Parece mentira, parece mesmo, mas a verdade é que a morte é branca.
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texto e fotos do autor deste blog

2 comentários:

Anônimo disse...

Morte orgulhosa, essa.

jawaa disse...

Se diz que a morte é branca, lá deverá ser. Há quem a suponha negra.
Certo é ela ser muito importante, porque rege a vida de quem vive e por ela continuam a construir-se obras de arte mais ou menos perene.
Para mim só pode ser cor de areia. Se o vento soprar forte, pode misturar-se nas cores do arco-íris e então a paleta é mais rica.