Páginas

sábado, outubro 27, 2007

PARA UM ENSAIO SOBRE A CONTINGÊNCIA DO VER

pinturas de rocha de sousa

Ao inserir neste ensaio a problemática da visão, e tendo em conta os estudos de Arnheim sobre a cor, pretendo apenas levantar mais uma vez a ideia de que a nossa capacidade perceptiva, no campo visual, é muito contingente. Circunscreve-se a uma mecânica de sensibilidade às radiações luminosas, as quais passam por vários tipos de células da retina, sofrendo o impulso de trajecto que vai accionar uma parte específica do cérebro, produzindo os fenómenos sensoriais neste domínio e a percepção das formas do visível. A atitude de fitar fixamente duas pinturas semelhantes, como os apresentadas aqui, garante-nos uma recepção de formas e cores cuja ordem parece ter sido distorcida, alterada, imposta pelos princípios da presentação, aliás coordenados num juizo concreto mas mutável. A verdade, porém, é que esse juizo é muio selectivo e dependente de um lago espectro de circunstâncias, bem como dos meios operativos ou outros. A mobilidade de abertura ou de aproximação, a duas ou três dimensões, poderá implicar efeitos de negação do ponto de partida: olhar de muito perto uma obra do tipo das apresentadas, mas de grande escala, pode levar-nos a ver apenas duas formas e duas cores ou, até, uma única cor. A mobilidade reversível, atrás, fará com que percamos o reconhecimento desta enovelada cartografia, entrará para um espaço mínimo, residual, comprometendo as relações espaciais desfeitas quando comparamos o resultado da operação. Este exemplo não passa de uma operação elementar: desde a avaliação das duas estruturas cromáticas às propridades da realidade enquanto nos movemos num espaço a três dimensões e isso basta, consoante a nossa deslocação, para provocar o aparecimento e desaparecimento de formas, das suas cores, numa substituição por outras áreas do espaço, alteração das sobreposições, ângulos determinantes da mudança das figuras e da luz. De cada vez que nos organizamos em relação a um modelo, imóveis, a imagem mantém-se fixa: o olhar parece fixo, apertado contra o campo escolhido. Uma laranja cortada ao meio é vista por nós como inteira, se o interior estiver voltado para trás, com rigor geométrico. Três passos para a direita, com rotação da cabeça para a esquerda, abrirá uma outra imagem e uma outra consciência do que se está a indagar. Esta relatividade do olhar e do ver podem alterar substancialmente o julgamento de objectos que parecem mudar de sentido consoante as condições em que os observamos. Nos quadros apresentados, a estrutura cromática é a mesma, mas a alteração da sua colocação e configuração parece opor os arranjos compositivos. Ao mover-se, o real sofre efeitos substanciais. Um rosto que passe por nós a grande velocidade não nos confere dados de percepção para reconhecimento: é como se, dessa maneira, a parcentagem daquele reconheciento baixasse drasticamente, impedindo a captação descriminada do modelo (digamos ideal) e a verdadeira penetração o sentido do real. O mundo é, em si, muito diferente daquele que percepcionamos.

domingo, outubro 21, 2007

DETALHES DE TAPEÇARIAS E FOLHAS ÀS CINCO DA TARDE


pormenor de uma tapeçaria de rogério ribeiro

Pormenor de uma tapeçaria em ponto português (Portalegre) tecitura sólida e delicada que cresce a partir da lã e das mãos como terra rodopiando na harpa da teia, ao alto. No fim, alguns metros quadrados de vida plástica estarão prontos a posar num espaço parietal e a justificar o longo dedilhar das tecedeiras. A tapeçaria, nos seus melhores exemplos, lembra a folhagem de certas plantas e do estímulo da luz, na relação entre fundo e forma, contraste de valores baixos e altos.


fotos de rocha de sousa


Por vezes, ao cabo de horas e horas de trabalho, o cansaço toma conta do nosso corpo e os olhos ardem no limite de todas as suas aplicações. Há casos de erros e recomeços, desesperadamente quando o objecto em formação estava quase concluído. Lembro-me de visitar em Portalegre, no auge da sua actividade, a Manufactura de Tapeçarias. O ponto português é uma invenção deste lugar e permite, a nó, a realização de grandes tapeçarias, como as que ali foram tecidas para uma catedral na Austrália e as quatro peças, de doze metros de comprimento cada uma, para a sala de honra da Fundação Calouste Gulbenkian. Esta tecelagem, em camadas de nós sobre camadas, vista de perto e em plena laboração, mostra a velocidade das mãos das tecedeiras, umas ao lado das outras, e a desfocagem quase completa da ponta dos dedos enrolando e esticando o cordão de vários fios coloridos. O cansaço vem depois, horas e horas depois, sob o efeito do grande pano a subir aos milhares de pontos por dis e por operária. Resta dizer que, todo o património técnico e humano de grande qualidade, brilha ainda em edifícios públicos e transmite ao espaço uma cintilação semelhante à destas plantas, vivendo de contrastes fortes e belos contornos. Indelizmente, apesar dissso, a Manufactura já quase não existe, desfazendo-se através de gestões insanas.

terça-feira, outubro 16, 2007

A TEMPESTADE



«A Tempestade» é um ensaio vídeo que realizei em torno dos problemas do Médio Oriente, Curdos, Kosovo, Rússia. Não se trata, directamente, de nenhuma abordagem sócio-política, étnica, nem mesmo histórica. A identificação que o espectador terá de fazer das sequências documentais, em paralelo com construções fílmicas de minha autoria mas com carácter metafórico ou alegórico, dependerá da sua cultura, incluindo substancialmente muitos aspectos largamente difunidos pela televisão, sobretudo o golpe de Moscovo e a subida ao poder de Ieltsine, aquela noite inquietante em que as pessoas acompanharam provocatoriamente, na rua, os carros de combate e já se batiam por uma viragem que dias depois estava a começar, com as virtudes e defeitos envolvendo grande parte do mundo.

«A Tempestade começa por ser, prosaicamente, uma tempestade autêntica, de características tropicais, que se abateu sobre Lisboa ao início da noite. Essa realidade foi por mim registada, sem qualquer pressuposto que não fosse a grandeza do espectáculo e os relâmpagos quase sincronizados com os trovões.

Ao acompanhar os acontecimentos desencadeados na antiga União Soviética, uma força surda durante a noite (lá) e as provocações dos moscovitas em plena rua, lembrei-me da tempestade que filmara. A sua associação ao caso de Moscovo era aliciante. Entretanto, fui gravando situações na antiga juguslávia e noutros pontos quentes, documentos de grande força e sentido trágico.
Num ensaio de montagem não linear nem cronológico, trabalhando com cenas construídas por mim, a cores, em cemitérios e jardins, entre nostalgias da chuva e outros efeitos, acabei por introduzir, do mesmo modo, uma personagem que, apesar da trovoada, lê excertos do relato (futuro?) da própria realidade presente, folheando cadernos e fotografias com as mãos «sujas» de sangue.
Dois travellings à frente e à mão pontuam o princípio e o fim deste documento ao mesmo tempo real e ficcionado, trabalho que procura claramente mobilizar as consciências para um mundo em convulsão em pontos estratégicos importantes e em que os massacres ou guerras regionais nos alertam, com efeito, para as nossas fragilidades civilizacionais.








quinta-feira, outubro 04, 2007

A RENDIÇÃO DAS ALMAS




fotogramas de filmes de ensaio - rocha de sousa

Cada artista, cada operador de imagens, todos eles, na fotografia, no cinema, nas artes plásticas, exprimem o seu amor ou a sua angústia através de obras como estas, procurando saber como existiram estes lugares e como se diluiram assim, em pleno abandono, conotáveis com as árvores próximas igualmente descarnadas. A Rendição das Almas, como filme de ensaio, referia-se de facto a um tempo de desistência, metalurgias inutilizadas, vago aceno ao futuro. Por mero acaso, e bondade de um amigo, foi-me permitido filmar cerca de trinta fotografias dos acontecimentos do 25 de Abril e, nesse mesmo dia, apanhar um dos mais espetaculares nevoeiros junto da ponte sobre o Tejo. Embora esclareça aqui que só utilizo fotogramas do filme inicial, a verdade é que ele se transformou, em montagem adequada, com inserts das fotos entre as redes e os ferros, no segundo filme e foi apresentado como «As Névos do 25 de Abril». Inseridas a preto e branco, no travelling que nos faz deslizar pelos muros de ferros oxidados, temos assim, ainda, entre destroços, uma força subliminar de cunho sebastianista.




ALEGRIA BREVE


fotos rocha de sousa
«Alegria Breve» ocorre de um livro de Vergílio Ferreira

Estas imagens foram recolhidas numa deriva matinal, entre muros e distâncias singulares. Não se fala aqui de testemunho comprometido nem da denúncia dos desastres principais, ou dos crimes domésticos, por vezes hediondos, que parecem dar cada vez mais conta de um mal genérico, num psiquismo aterrador. Antes da lírica do desassossego e depois da Rendição das Almas, plantas em pausa, sagração do instante de paz, brisa interior de uma alegria breve.

quarta-feira, outubro 03, 2007

SINOPSE DE «LÍRICA DO DESASSOSSEGO»

fotogramas do vídeo «Lírica do Desasossego» rocha de sousa
Esta é uma última imagem do vídeo «Lírica do Desassossego», com Isabel Rocha, em que a personagem acaba por soçobrar ao ataque de um corda espessa e outras mais finas, as quais se erguem do fundo de um monte de fotografias antigas, em parte de família, colando-se às mãos até aí intérpretes delicadas, liricamente delicadas, de uma visita à imagem dos mortos, das casas, das velhas ruas da velha e decadente cidade de província. De fato, e quando a personagem mergulha bem fundo no monte de fotografias que recolhera, assusta-se ao ver emergir daqueles amarelados documentos uma enorme corda dura, enrolada, contra a qual luta, puxando-a e empurrando-a, no efectivo esforço de se desfazer daquele fenómeno. A imagem da corda enquanto corda não é disfarçado, embora escurecida em castanho, mas a sua conotação com uma longa serpente parece óbvia. Enquanto o corpo é enrolado pela corda espessa, as mãos, procuram convulsivamente libertar-se, mas acabam por ficar «algemadas» pelas cordas mais finas. Contudo, a personagem, rolando pelo chão de pano avernelhado, e depois de procuras meio desesperadas relativamente aos instrumentos dispersos pelo espaço, tenta serrar uma haste de madeira a que estava presa (pelas cordas ainda em actividade). Grande e longo plano fixo da serra a sulcar dificilmente a madeira. Essa acção é intemporalizada, antes do fim pretendido, pela paralisação da imagem: a madeira resistiu até meio, o destino apenas se exprime por metade. Presa da memória, a mulher fecha devagar as pálpebras, o serrote tombado além.





















Nem só as máquinas do Apocalipse se aproximam para nos destruir. Há milhares e milhares de anos que nos debatemos com as nossas memórias e a metamorfose das cordas colando-se ao corpo e às mãos, simulando a morte pelos répteis ou o suicídio perante um futuro rasgado.





terça-feira, outubro 02, 2007

A PREPARAÇÃO DE TODOS OS SONOS

Lembro-me perfeitamente dos dias em que a minha avó insistia em passar a ferro, tomando conta das roupas secas e dos lençóis. Era uma mulher aparentemente frágil mas de uma grande força física, de uma bondade indescritível. Falava sempre a meio tom e dizia-me que, depois de partir, eu ficaria com o relógio dela, na obrigação de o manter sempre a trabalhar, pelo que me ensinou diversas vezes os modos de limpar a máquina, o cuidado com os óleos e as duas poderosas chaves. Era eu menino e já me treinava naquela missão, fazendo muita força para que as chaves rodassem até prender as cordas. «Avó, e se o relógio pára, mesmo com com corda»? E de cada vez que eu fazia esta temerosa pergunta, ela responndia: «Ó filho, vais depressa chamar o sr. José relojoeiro e ele destrava o empanque». Por mim, ficava perplexo. «E é preciso ir depressa porquê?» És um neto muito falador: então não te expliquei já que enquanto o relógio trabalhar eu estarei viva no céu. Se parar muito tempo, será como se eu estivesse doente, pronta para morrer de novo e de verdade».

«Avó, o senhor José diz que tem que levar o relógio porque se partiu uma corda e é preciso substituí-la. Vão ser pelo menos seis dias. Como é que se faz?» E ela, passando a ferro os toldos do jardim: «Não te preocupes. Eu estou viva e ainda vou durar alguns anos, mais do que os seis dias de que o senhor José precisa».

fotos de rocha de sousa

Esta camisola foi toda feita pela minha avó. Visto-a no Inverno. Só não me conformo com o facto de ela ter morrido dois dias antes daquele minúsculo prazo de arranjo do relógio. Não sei onde ela esteve nem se ficou muito doente. Fui a correr à oficina do senhor José e gritei-lhe que a minha avó tinha morrido, embora estivesse de boa saúde. Ele olhou-me fixamente, com os olhos brilhantes e os dedos afagando devagar as barbas. «Tens que ter paciência, menino, a tua avó sempre gostará de ti e tomará conta dos teus dias». E eu: Para que isso aconteça é preciso que o senhor arranje urgentemente o relógio». «Porquê?» «Porque ela me disse. Se o relógio estiver parado muito tempo, a avó acabará mesmo por morrer, longe, naquela terra para onde a levaram.» «A tua avó já morreu, não volta a morrer, mas Deus chamou-a para ela ajudar melhor a família» «Não, senhor José, se ela morrer agora, por causa do relógio parado, vai morrer mesmo, vai morrer para sempre».