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quarta-feira, janeiro 15, 2014

NEM AMOR NEM CRUELDADE, SÓ ASPIRAÇÃO

afirmação do ser

Nunca desenhei desenhos destes e tenho pena por isso. No dia em que me ofereceram uma caixa de lápis de cor, quando já era capaz de sonhar outras coisas além das coisas, fui para uma arrecadação no quintal, abri a caixa e puxei pelo lápis preto. Era mais negro do que os da Escola, fiquei vagamente contente e abri o cadcrno de papel cavalinho e piquei o branco do papel com o bico afiado do lápis. Piquei várias  vezes a superfície branca a lembrar-me do bico das galinhas picando a terra onde não havia nada ou apenas restavam pequenas sombras por cada ataque da ave tonta. No papel, de cada vez que eu batia o branco horizontal, depressa ou devagar, também produzia sombras  exíguas. Não me ocorria nada, nem das coisas lembradas nem dos objectos próximos. E foi então que ergui a cabeça, havia canas lá em cima, troncos suportando as canas, deixando ver vagamente as telhas do telhado. Ao baixar a cabeça, olhando sempre para ver o que estaria preso às paredes, lembro-me de haver reparado numa máquina escangalhada, cheia de  ferrugem,  pedaços de esmalte dobrados em tortura, tubos ou canos retorcidos como troncos de qualquer planta morta. Fiquei deslumbrado. Nunca desenhara senão pequenas flores e gatos lustrosos nas revistas, tudo igual ao que julgava ver e que os adultos diziam estar muito bem feito, imensamente parecido com os originais. Não sei bem porquê. Mas, ao contemplar o esquentador destruído, velho, sujo, feito de cinzentos e brancos e castanhos, achei tudo aquilo, em feio como todos falavam de coisas semelhantes, intensamente  mais bonito do que outras imagens tantas vezes por mim imitadas e que os outros reconheciam sem hesitar.
Foi então que começei a desenhar com verdadeira convicção e perto daquele encanto que nos invade completamente quando vemos certas coisas inexplicáveis, sentindo temor e fascínio perante elas. Percebi logo que já não estava a imitar, nem um rosto nem os tubos tortos, e que a beleza do meu desenho a preto, cinza e branco, depois aparelhado com alguns pedaços a castanho, tendo escolhido para isso o lápis castanho, vinha de um ver ao contrário dos olhares focados sobre cada pormenor, vinha de dentro do peito e não da cabeça, podia adiantar-se entre as mãos e o papel sem que os olhos fossem obrigados a repetir instante a instante a fixar o já visto e sempre procurado entre inícios.
Foi então, também, que  passei a perceber o que significava desfazer o já feito, como isso é preciso para trazer para o papel volumes e partes escondidas, o futuro e o passado de todas as coisas vistas, revistas, imaginadas entre outras, construídas numa espécie de acaso após várias destruições. E achei, mais tarde, o sentido dos destroços de aviões em fotografias da Life, durante a última guerra, além de perceber a importância da idade das coisas e das ruínas para me saber por dentro, olhando muito para além dos olhares maquinais de todas as rotinas.