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terça-feira, julho 24, 2012

CIDADE MORRENDO DE SILÊNCIO E AUTOMÓVEIS


Cheguei tarde, pela tarde, à cidade ainda iluminada pela luz dourada do sol que acendia as paredes e os vidros das janelas. Era, por vezes, um fogo escondido no horizonte, claridade a lamber o empedrado das ruas que apontavam ao poente, silenciosamente.
O Verão caíra sobre os telhados de cerâmica em cana, abas reconstruídas depois dos anos setenta, salpicadas, para dentro de outras casas térreas, de telhas carcomidas e velhas, acinzentadas, breves, por vezes juntando remendos de alumínio moldável ou restos de cal escorrida.


Abri a porta, entrei na sombra, atirei as bolsas para cima da cama e abri devagar uma fresta das portadas interiores da janela, linha de luz ao alto, e confiando no meu ainda escondimento naquele entardecer de fantasia, oco e silencioso, vazio de gente, só portas e persianas fechadas um pouco por toda a parte, os carros estacionados como bichos abandonados e dormindo.
Cheirava a pano, parecia de algodão, a mobília continuava escura, estranha, monacal ou como cenário absurdo da morte de alguém àquela mesma hora, ali mesmo. O soalho rangia, estalava breve e sem alarme, passando pelos espelhos sombras de mim no imprevisto dos ângulos e da lenta virtude dos passos.
Fui passar água pela cara e senti a barba já incómoda, o tempo na pele desalinhada pelos dias. Dias secos. Dias quentes, abafados pela noite dentro, um Agosto parado, vazio de chamamentos. A porta que ligava o corredor ao quintal apresentava um quadrado de luz ou de parede no seu terço superior. Mas dispensei esse percurso da curiosidade, sobravam horas, uma semana, talvez, o corredor serviria para outras viagens de amanhecer. Decidi dar uns passos pela rua fingidamente medieval, colhendo a hipótese de tomar um café no bar ali perto, que tantas vezes me torturava de música metálica pelas festas de Julho. Fechada a porta carregada de publicidade e um letreiro oferecendo o estabelecimento para venda, sale.



Tudo isto me surpreendia cada vez mais, a imobilidade das coisas, as janelas e as portas como que definitivamente encerradas sobre a incerta memória dos mortos, ou gente ausente, ou meninos por nascer. Velhos dedicados, nenhuns. Gente porventura deslocada, pessoas que haviam partido de férias ou desempregados cujo destino se apresentara de novo na emigração, sem retoma das origens, homens laterais e sem nome. Como a cidade ainda se apresentava lavada e pintada dos anos de glória revolucionária, após se terem deitado fora as colónias e os haveres que nem lhes pertenciam, tudo amarelecia com esta luz cada vez mais baça, perdido o fulgor do ouro e da cintilação arabizante. Ninguém espreitava dos lugares de espreitar, vidros, esquinas, jardins de bancos pintados mas completamente abandonados, talvez aceitando a monotonia do pó dos outros dias de isolamento e ausência. Cafés e esplanadas tinham fechado. As esplanadas mostravam alguns toldos abertos, mas levemente tocados de brisa, exactamente como se vê no cinema depois de uma evacuação de qualquer pequena cidade californiana após um risco de desastre natural.

  

Não acendem as luzes, o rio espelha a noite próxima, os pequenos barcos de madeira estão mal tratados e parecem agrilhoados nos ancoradores de margem ou de esguelha, sem cordame, fundados na lama da maré baixa. E nem os velhos, que conversavam num grande banco de ferro junto ao alto muro de uma fábrica corticeira há muito destruída, se veêm. No ano passado, havia menos velhos, mas estavam por lá meia dúzia deles, cacarejando as dores e as lembranças. 

 

Resigno-me a saber, algum dia, qualquer notícia com verosimilhança. Vou dormir cedo. Junto da minha casa dou de perto com uma parede alta inteiramente coberta pela sombra e pelo cheiro de plantas que sopram o seu sono dos dormitórios como aqui parece estar a acontecer. Valerá a pena voltar para a casinha de Lisboa, na inércia de tudo por outro lado, à espera que o SNS me deixe morrer?

terça-feira, julho 17, 2012

A EDUCAÇÃO SUJEITA A NORMAS INOMINÁVEIS


AO SENHOR MINISTRO DA EDUCAÇÃO DEVE DIZER-SE 
QUE AS REFORMAS DA EDUCAÇÃO NÃO SE RESOLVEM
COM CIRURGIAS AMALGAMANTES  NEM COM
ZEROS DE HEMOGLOBINA EM SERVIÇO

Quem é que compreende que um professor com 24 anos de serviço, um mestrado apropriado, efectivo desde 1990, trabalhador empenhado em tudo o que faz, seja notificado que vai ficar em "horário zero", tendo ainda sido obrigado a concorrer e plasmado a uma vinculação de degradação inominável?
Parece que se vive no mais radical teatro do absurdo, nada disto é justo, e o que fazem a seres humanos largamente entregues a este difícil campo profissional não tem o menor sentido. Alguém contou em lágrimas esta situação e outras, de colegas (pais e filhos) atirados para a mesma condição com trinta anos de serviço efectivo. Um casal de filosofia, cuja mulher é jurista e pediu transferência de serviço de Coimbra para as Caldas, visto o marido se ter efectivado aí, teve como resultado a negativa, um famoso zero entre assimetrias sem valor de qualquer espécie, normas no mínimo estranhas. Há escolas  que foram compelidas a não contabilizar nem o serviço nocturno recorrente, nem o profissional. E, contudo, muitas escolas, algumas com duzentos alunos menores já inscritos, vêem-se na contingência (pelo menos ética) de receber e distribuir trabalho, visto que o seu mundo está pleno de apelos e correspondência docente e não se desertificaram nem à força.
Aqui se pede desculpa de qualquer impropriedade técnica, mas o que importa é que o país tenha um Ministério da Educação comunicante e esclarecedor: este trajecto não é o da austeridade, antes se assemelha a uma contabilidade cega ou a um jogo de xadrez onde alguém sofre de cegueira e move as peças sem rigor nem objectivo.
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Metáfora fotográfica de Rocha de Sousa

quarta-feira, julho 04, 2012

QUEM GANHA O QUÊ NA VIL TRAGÉDIA DA SÍRIA?

uma lembrança de Homs

O rumor sobre a Síria adensou-se. E os que esperavam  por um erro dos rebeldes, desculpavam (como se falassem de mentiras) todo o avanço bélico de Assad. Havia quem rejubilasse com as explosões provocadas com carros armadilhados,
vejam, vejam, não passam de terroristas.
Mas, sem nada perceberem do horror instalado, mais apontaram  dedos e slogans à oposição do regime por haver capturado soldados fiéis ao poder, exercendo sobre eles actos de tortura, ou por vingança ou para a obtenção de certos dados estratégicos sobre a guerra.
O Presidente Sírio, sem oratória de relevo, limitou-se a dizer, já tarde, que o país estava a ser atacado por uma conspiração internacional. A propósito do que foi a história, e dos príncipes e dos seus desastres principais na área da actual Europa, o Conselho Nacional Sírio, principal plataforma da oposição a Bashar al-Assad, deu uma conferência de imprensa no dia 1 de Abril (2012). Foi com base nesse acontecimento, em parte falhado, que Bassma Kodmani, admitindo que o tempo de Assad se estava a esgotar, disse que, nesse caso, os «amigos da Síria» tinham toda a legitimidade para decidir avançar com uma intervenção militar e «resgatar os  sírios» da ditadura. O jornal Público, no dia seguinte àquelas afirmações, avançou com um título no mínimo perturbador: «Se o mundo não fizer nada, vai ver uma guerra civil transformar-se num conflito regional.»
Contudo, depois deste tempo todo e da destruição impiedosa de cidades sírias inteiras, a começar por Homs, o que resta, entre desertores e o êxodo do povo para a Turquia, é um país praticamente arrasado, milhares de mortos, paralisia e lixos dantescos onde os corpos se perdem e decompõem.
Quem é que responderá por isto?
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texto inspirado num tratamento dos problemas daquela área no livro narrativas da suprema ausência,
de Rocha de Sousa, em revisão.