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terça-feira, abril 06, 2010

A CONDENAÇÃO DO PASTOR PELO REBANHO


Esta história, que talvez contenha conteúdos de parábola extraídos dos terrores medievais, envolve a via atribulada de dois irmãos atirados de súbito para a orfandade, situação terrível e injusta que só podemos relacionar com os insondáveis desígnios de Deus. Só Ele, porventura, saberá dar sentido a esta trágica solidão das duas crianças, confrontadas com a morte súbita dos pais numa cheia dantesca. Só Ele poderá explicar a razão das escolhas, porque razão, ao mesmo tempo, se salvaram milhares de vidas, algures, do outro lado do Mundo.
Vivia-se uma época aterradora da limpeza moral intentada pela Santa Inmquisição, e as praças das cidades ou aldeias, com forte assiduidade, eram palco da execução de penas capitais, na morte pelo fogo, de gente condenada segundo códigos algo obscuros, atrás de denúnciais cruéis, muitas vezes presumivelmente falsas, actos de vingança ou perduráveis querelas. Tais condenações visavam criaturas tidas como bruxas, geralmente velhas, e homens ou mulheres acusados de actos impróprios, heresia, insulto aos símbolos sagrados, luxúria, entre outros.
Num casebre da aldeia de Clov, vivia uma família de camponeses, pai, mão e dois filhos. O mais pequeno não tinha ainda dois anos e o mais velho, sério, concentrado e responsável, rondava os sete anos. Era gente pobre, trabalhadora e honrada.
Tempo depois da morte dos pais, na casa sombria e húmida, viviam aquelas crianças, e tudo era tratado pelo moço mais velho, naturalmente, com alguns apoios dos vizinhos que moravam mais perto e sentiam compaixão por aquele destino. Não recolheram os miúdos para suas casas porque o mais velho, o José, nunca aceitara sair dali.
Certo dia, pela tardinha, um senhor da Igreja, vestindo de forma comum, que parecia ter grande vontade em ajudar os pobres e por isso escondia a sua origem, aproximou-se da casa das duas crianças orfãs, tendo conversado ternamente com o José e afagando as carnes e os cabelos do menino no seu canto acolhedor.
Dias depois, este mesmo senhor da Igreja, disfarçado de homem comum, voltou a visitar a casa das crianças, e chegou carregado de alguma comida e muitos doces. Afeiçoara-se aos orfãos, sobretudo pelo mais pequeno, a quem dispensava carinhos intensos, beijos longos, afagos insólitos, e até colocava o menino ao alto, sobre o seu peito descoberto, reclinando-se depois na cama, com ele, como a mãe fazia. O José, de início, olhava para tudo com grande enlevo, lavando louças e roupas, entre outras tarefas que o senhor por vezes lhe indicava, incluindo saídas para fazer compras longe dali. Foi nessa fase que o José, desconfiado, surpreendeu o homem todo nu, na cama, e com o menino enrolado no interior das suas pernas peludas. Foi posto na rua com um berro, voltando a casa quase ao anoitecer, com prudência, e logo correu ao ouvir o choro do irmão. O irmão encontrava-se meio vestido, sentado no chão, à sua frente um prato de papas entornadas nas roupas, apresentando os lábios em ferida.
Tempos depois, reposta a tranquilidade na sua casa e na vida do irmão, José deixou o menino na casa de uma vizinha, a cinco minutos dali, e foi assistir às matanças da Praça Maior. Queria espreitar e perceber tudo o que lhe diziam outros rapazes. E viu, assombrado, as fogueiras, ouviu os gritos, cheirou a carne queimada. Havia uma agitação contraditória em redor, carros chegando, guarnições militares, um palco com tecto, todo forrado em tom púrpura, e no qual, atrás de uma mesa longa, bispos, oficiais, juízes, todos se afadigando entre papéis, gestos, audições. Juntos, vistos de frente, até pareciam uma representação luxuosa da última ceia de Cristo. Ao olhá-los assim, frontalmente, o José, de repente aterrado, reconheceu num bispo da mesa o homem que lhe visitara a casa e que abusara do irmão. Era uma descoberta grave, o outro sentado no lugar de Cristo, conduzindo os trabalhos e bebendo goles de vinho. O bispo era, sem tirar nem por, o religioso sem farda que os invadira a casa da inocência e praticara as piores heresias.
José, atordoado com os fumos da carniça e aquela gente que já condenara um amigo dos seus pais, correu numa direcção aparentemente errada: queria falar com outro homem bom, mestre escola, que sempre dialogara com os pais e comia muitas vezes lá em casa, parecendo haver uma estranha cumplicidade entre todos. O encontro, depois da fala soluçada, era mais do que uma denúncia, era um acto desesperado de vingança ou de reconquista de uma dignidade ofendida. O professor soube rapidamente quem era aquele «santo» homem, o Bispo, Bispo Coordenador, Encomendador dos Processos em Curso. Foi longa e sombria esta história, pois os membros da Inquisição, quando eram acusados de terríveis delitos, acbavam sempre perdoados e por vezes nem os deslocavam daquele «campo de operações». Desta vez, houve uma diferença. Um dia, no final de horas de condenações e mortes na fogueira, apareceu um Cardeal, com pomposa comitiva, mostrando estranhar certas coisas e acabando por exigir a consulta de todos os documentos relativos aos processos. Perante uma tensão dos outros, ele puxou pela espada, colocou-a diante da face, e mostrou as insígnias que lhe conferiam aquela autoridade. Andava a mando do rei, como hoje andam alguns inspectores, pelas indústrias e comércios. Nunca se soube como, mas a verdade é que ele depressa descobriu o comportamento do bispo e as suas recentes luxúrias com uma criança de menos de dois anos. Houve uma reunião do «Senado» daquela divisão, onde se fez pública forma do acto enfim conhecido, e mais se propôs que a Igreja começasse a dar o exemplo: o juiz leu a decisão dos seus pares, condenando o bispo à morte pelo fogo, naquela mesma tarde.
O feitiço voltou-se contra o feiticeiro. Hoje nãoo acontecem tais cometimentos, até porque, desde o século XX, que todos os casos descobertos nas fileiras da Igreja andaram longos anos encobertos e a justiça demorava uma década para resolvar um simples caso de homicídio. Por vezes, alguns padres foram suspensos, convidados a sair, votados a penas de solidão, mais do que o Chefe religioso maior, Pai de todos, aquele que bondosamente costuma apresentar desculpas aos povos e sociedades lesadas por remotos crimes, entre famílias acabrunhadas, entre a fé e o horror. Há outras e muitas desculpas a apresentar, mesmo a título póstumo, está bem de ver, considerando civilizações arrasadas em nome de Cristo, as terríveis Cruzadas e de novo, de melhor forma, a própria Inquisição, ou os bloqueios grosseiros perante a ciência, de que Galileu é um exemplo da maior referência. Tudo isso, em boa verdade, serve de pouco. Mas os símbolos marcam muitos os actos desde bastante cedo. Convocar o espírito da Civilização e o próprio Deus para estes litúrgicos pedidos de desculpa talvez viesse iluminar um pouco a época, apesar dos segredos que vão sobrando nos subterrâneos da História.
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O rebanho, nos nossos dias, não se basta com a fé do pastor e as
ovelhas são mais o símbolo da comunidade e da sobrevivência do
que gente empurrada para castigos sem explicão.