Páginas

quinta-feira, abril 26, 2012

O SOLDADO MORTO E A LAMENTAÇÃO DA AVÓ


Eu não sabia nada de ti. Não gostei nada de te ver partir assim. Disseste que escrevias e eu fiquei à espera. Dias e dias de espera e saudade. Um dia sempre chegou o teu postal em que me dizias ter feito boa viagem e que tudo estava como devia estar. Escreveste tão pouco, meu querido neto. E no fundo das letras vinha uma espécie de carimbo, só com a palavra Afeganistão. Isso é terra ou é gente ou coisa pior? Ninguém me sabe dizer nada e eu vou ficar aqui, esperando por mais notícias. Uma vizinha deu-me a entender que essa coisa do Afeganistão não lhe parecia boa coisa. E então chegou a malvada carta da tropa em que me diziam ter morrido em combate, honrando o país. Qual país? Eu bem sabia que aquilo de África já acabara e que aquele Afeganistão não era boa coisa, não, bem dizia a pobre vizinha. Agora é isto. Agora tu sem seres tu. Veio cá um correio da tropa e trazia a urna de metal,  pequena, de criança. Peguntou-me o homem se queria que deixasse aqui o corpo ou na Igreja. E eu perguntei num grito «Qual corpo?» E ele disse, levando a mão à testa: «O corpo do seu neto, morto em combate no Afeganistão.
Foi para dentro, fui ver como cabias ali, e não havia senão as tuas pernas  dentro das calças e os sapatos calçados. Isto não se faz nem a um combatente. Vou fazer um velório florido, os teus restos repousarão numa urna como as outras, de madeira. E será nesse caixão que descerás à terra do nosso pequeno cemitério, honrado na morte e no gesto, como os demais.

domingo, abril 08, 2012

O REFLEXO SUBMERSO

fotografia de Alexandre Baganha

A mão não é asa, é parte de um olhar que desce, não se sabe de onde nem a quem pertence. A luz transforma-se, tanto é corpo diáfano como um sonho acordado na capela Sixtina, o sopro de Miguel Ângelo no ponto exacto de toda a criação, dele ou de Deus, é igual. Mas tudo isto se passa com o olhar pendido, mão meio suspensa, reflexiva, quase a tocar a água deste espaço sacro, arredondado, do qual, numa espécie de meia-lua antes de o ser, parece emergir a mão — a mesma, talvez outra, quem sabe? — dedos quase toscos, humanos, aspirando a livrar-se do fundo como caverna alagada pela chuva. Dedos em sombra, breves, mortais, no atrapalhado gesto de subir em nome da salvação. A sombra da mão que desce, que parece querer afagar o espaço ou a própria água, curva-se e aponta as hastes para cima, agrestes, não doces nem etéreas como a aparição na direita alta do campo. Então poderemos pensar que a mão, suspensa mas pulsante, projecta na pedra a forma oposta à sua beleza que indicia bondade. Se estamos a falar do real, o paradoxo é o seu modo de ser — e aqui vemos um dos triângulos da sua equação a duas incógnitas e um sujeito: os dedos naufragados podem ser, com mais probabilidade, imagem virtual dos dedos concretos, asa descendo, corpórea, para uma água de que não temos a certeza de existir e que o lado esquerdo do campo, obscuro, sempre nos sugere, entre a sombra e a humidade latente do visível. Nunca há conclusão para nada, mas sabemos que se houver água dentro da sombra e se os dedos da mão mergulharem nela, logo destruirão todo este equilíbrio, cantata de Bach, e os dedos submersos, transformados em manchas ondulantes, logo serão absorvidos pela sua verdade carnal quando a mão acabar aquela sucinta prece e voar para fora de campo. A fotografia que restasse dum olhar assim, teria um lado esquerdo sombrio, agitando a meia-lua antes de o ser, luz sobre pedra e água, tudo imóvel, por fim, uma certa claridade material à direita.

ROCHA DE SOUSA