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segunda-feira, março 08, 2010

ATRÁS DO FUMO, UM RETRATO SEM ESPELHO

começava assim:
Estou amarrado a uma cadeira, amarrado psiquicamente, fumando sem tirar o cigarro da boca. E a cinza cai sobre a roupa, desfaz-se em levíssimos flocos de nada, salpicando dessa forma a cor pardacenta das calças. A minha mão esquerda está pousada aí, por momentos incapaz de se mover: devagar e silenciosamente, coladas à pele, têm surgido, multiplicando-se, muitas margaridas da morte, essa espécie de sardas irregulares e por vezes assustadoramente grandes -- pétalas assim, de um sépia brando, para o dizer sem tanto alarme, um sinal da velhice que se aproxima de mim, figuras por vezes aguareladas na possível anunciação do colapso ou marcando o momento da vida em que somos mais sábios.
Há dois ou três anos, ao contrário da minha ausência nos espelhos, para onde olhava por vezes sem formar a percepção do meu rosto, começei a deter-me nos lugares onde esses misteriosos objectos me fitam, imobilizando a face e os olhos. Queria rodar os olhos e ter consciência visual disso, mas só dava por eles sempre parados, atrasada irremediavelmente a minha percepção de me apropriar, enfim, dessa imagem. Agora, como acontece com a pele das mãos, outros sinais e mudanças vieram alterar a identidade anterior deste rosto que eu espreitava num rápido reconhecimento. De frente para mim, o que vejo, surpreendido, é outra pessoa, é outra face, embora a experiência de dezenas de anos me diga que ninguém pode, neste instante, subtrair o retorno da minha imagem à consciência que consegue ainda reconhecer-me: cabelos escassos e oleosos, a testa cheia de rugas de medo ou de alegrias entretanto perdidas, os olhos infinitamente mais pequenos, rodeados de bolsas de pele e líquido, as pontas assimétricas das sobranelhas empeçadas. Manchas sanguíneas, por outro lado, vieram insinuar-se na face direita, já bochecha, onde cresce (desde a infância) um sinal enfim transformado em protuberância lisa, esférica e quase mole, rodeada de pelos que os instrumetos de rapar a barba mal tocam, deixando-os crescer como nas verrugas das bruxas. Os lábios ficaram finos, irradiando rugas a partir dos cantos, e se abro a boca mal descortino os dentes, recuados, pequenos, conservados com o apoio de coroas e próteses desse tipo.
Os desastres principais tanto nos arrasam por dentro e por fora, apagando grandes áreas da nossa memória, como toda a população deste continente, na faixa central, ao desaparecer, afogando cidades nos oceanos ou eixando velhos a morrer de fome, em Lares atulhados, porque os serviços sociais faliram e só os ricos ainda sobrevivem em jeito de velhos aristocratas fingindo fortunas com a venda das pratas e das jóias, cadeiras de estilo e móveis D. João V. No entanto, quando passeiam pelo jardim público, fidalgos a fingir, aparecem sempre impecavelmente vestidos, penteados, e com alguma corrente do século XIX pendurada entre o colete e a calças.
O meu irmão é um pouco como esta gente, e é velho exactamente, e finge a agilidade que já não tem. Foi para África há muitos anos, tantos que nem sei quantos, e entretanto, depois da população desse continente, na faixa central, ter desaparecido por completo, emigrando ou morrendo, fico a pensar nele, no irmão teimoso e apaixonado, de quem nunca mais recebi notícias, uma simplas carta, um recado trazido por alguém, como acontecia há muito tempo. Quando a tecnologia soçobrou, telefones, computadores, energia eléctrica, houve esta sensação entre membros da diáspora: uma ausência aterradora de sinais como no silêncio da morte.
Desprendo-me da cadeira, num esforço enorme. E deixo cair no cinzeiro a ponta queimada do cigarro, o filtro molhado de saliva, um cheiro levemente agressivo na ponta do nariz. Espreito para fora, para uma rua despovoada, que poderia perfeitamente acolher a poalha do meu cigarro.
E não vejo de facto ninguém, as pedras da calçada húmidas, o céu compacto e sombrio. Olho para a direita, para um lugar onde me abasteço de tabaco e outra bugigangas, jornais sonolentos ou continuamente intriguistas, simulando a verdade onde até os espelhos lhes mentiriam. A Matilda, dona da tabacaria, do poste de jornais, da venda de lotaria e revistas da TV, entre muitas outras coisasa irrepreensivelmente inúteis, parece estar recolhida, em os taipais fechados. Oxalá não esteja doente. Preciso dela e dos recados da filha, menina fútil mas que me trata como um avô, daqueles antigos que ajudavam a família e contavam histórias de maravilha.
Vou para dentro, encosto o vidro da janela e leio, impaciente, algumas linhas do que escrevi ontem:
Portanto a urgência de dizer. Dizer apesar dos limites, contra ou por dentro das convenções. Mesmo quando não se refazem, as convenções podem sobrepor-se ou misturar-se. Fernando Pessoa dizia imagens com palavras e usava as convenções, inteiras ou distorcidas, adequadas à forma expressiva de cada heterónimo, poetas diferentes que o habitavam, emergindo misteriosamente para a vida.
A globalidade e os desastres principais apenas nos lançam para um mundo cujo futuro que, parecendo tecnologicamente avançado, afinal se desenha cada vez mais nos termos de uma perspectiva redutora. Perplexo, rasgo alguns dos meus papéis. Acendo outro cigarro. Olho para a janela e penso: quefará a Matilda a esta hora?

texto e fotos de Rocha de Sousa, autor do blog