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domingo, outubro 26, 2008

A REINVENÇÃO DA LENDA DAS AMENDOEIRAS


____Antes de entrarmos para um lugar de morte, ainda que branca, levemos flores desta árvore ser imóvel mas carregado de vida, na sua beleza homogénea, restos de uma primavera algures. Fotografei esta planta, sentado numa esplanada, no sul, à beira de um rio plácido que reflectia um canavial e uma antiga ponte romana. A árvore estava a poucos metros de mim, mas era o único ser que sorria, fresco, contra a apatia de meia dúzia de pessoas rodeadas de sumos e cervejas. Já tinha olhado para esta figura mondrianesca, na fase básica da primeira representação, mas não dera pela singularidade do seu espectáculo, vendo o que parece mais imperativo ver na normal decorrência do quotidiano, quase nada do que, no fundo, era a única metamorfose significativa (e até simbólica) que se abria, clara, a uma verdadeira precisão selectiva e comparativa do ver, ali. Então disparei a máquina fotográfica, para que aquele momento não se perdesse, e, sem mais vazios ou imagens recorrentes, deixei-me passear pela copa florida da árvore plantada por engano na orla daquela esplanada. É nesses casos, como noutros, que a nossa imaginação, sustentada pela memória e pelas contínuas dinâmicas do nosso cérebro, desagua no largo espaço da consciência e reinventa jardins em volta, por exemplo, ou quadros impressionistas, ou as lendas da cidade, da sua princesa sequestrada por um rei mouro, apaixonado, que plantava um pouco por toda a parte milhares de árvores capazes de florescerem em branco, assim, para que a sua amada lembrasse a neve do país donde viera. Mesmo assim, ao que se crê, a outra lenda trágica de certa mulher fugindo da almedina da cidade e embrenhando-se nos campos numa corrida paroxística, parece, para muitos estudiosos ou visionários, duas notícias da mesma história: a princesa nórdica não teria morrido de saudade, teria apenas enlouquecido quando descobriu que as flores brancas não eram neve e que a pedra avermelhada da fortaleza (sua morada, seu cativeiro) pareciam anunciar a conquista da praça pelos cristãos. E assim foi, com efeito, mas a mulher amada pelo comandante mouro, evadiu-se por uma porta secreta, correndo para Ocidente até mais não suportar. Os soldados que a perseguiam clamavam de longe, olhando em redor: «Ó da louca! Ó da louca!» E então, com a passagem dos anos e o desvanecimento da presença árabe naquela paisagem, os camponeses foram consolidando o baptismo do lugar em que desaparecera a fugitiva:chamaram-lhe ODELOUCA. Ainda existe. É bordado por um pequeno rio. E, curiosamante, esse rio engrossou e vai agora, com uma barragam que controla os benefícos da sua força hídrica, fornecer mais luz às populações locais, na época da tecnologia. As tochas dos soldados que perseguiram a mulher pintável como no «Grito», de Munch, nunca chegaram a ser encontradas.

terça-feira, outubro 21, 2008

RESTOS DE UMA CERTA LITURGIA DA MORTE




Está aí alguém? A quem pertencem estes objectos? O silêncio em redor parece uma leve e lenta cantata dedicada ao homem, à mulher ou à criança que já passaram vivos nesta catedral a céu aberto, feita de terra revolvida por algum vandalismo nunca identificado. Vidro fosco, vaso de barro, o oleiro quando? E as fotografias? E os retratos desfocados difusamente, outrora naquela redoma?
Eu conto, eu conto: eles vinham pelo domingo, domingueiros, grandes ramos de flores ainda orvalhadas, roupas negras, a criancinha enfiando os pés, a mão pendurada dos dedos crespos da mãe, passos pequenos, arrastados, e um medo da noite em pleno dia, manhã cedo, domingo de cada vez. Curvas de ferro lá atrás, já ninguém as imita, o ferreiro desdisse há muito a sua arte sem procura e nem sequer se aproximou dos mármores de Lagos, quando a moda chegou, andavam todos a fazer de finos, pedra polida, molduras como nas abas dos palácios, cruzes meio rendadas, o nome afundado em desenho inciso e letra preta. Já não sei quem era, não. Ó daí? Não há guarda, nem coveiro, nem operário de lajes? Mas eles vinham. Os que não morreram pela pneumónica vinham aqui, de lenço no nariz, enterrar cinco ou seis pessoas por dia, largar a terra, fechar o ferro ou as redomas com os retratinhos, flores de seda branca, alguns a aparelhar calcáreos trazidos de longe, tudo sem voz, nem ordens, as famílias ao portão lavadas em lágrimas. Ó da guarda? Ó porteiro? É um desalento deixar tudo assim, com montes de flores mortas atiradas para o lixo. E essas ainda são dos vivos, alminhas do Senhor, crentes na sua último morada, lavada, branca em volta, rosmaninho no ar ao cair da cerimónia, após o ruído surdo da terra encarniçada atirada para a tampa da urna, barulho oco e rolado, como se as tábuas não contivessem ninguém. Senhor António, onde está o coveiro? Precisamos dele amanhã. Foram-se todos, parecem mortos incapazes de responder, foram para a vila beber o seu mata bicho, que é como diz o Jasmim coveiro, três bgaços antes de cada cova, são vacinas, travam os bichos invisíveis atravessando a terra para o vazio onde ele cava, bichos de outras covas onde apenas sobram ossadas, pêlos, pedaços de roupa. Três bagaços por cada cova, incluindo os amanhos das cruzes e os potes das flores e o afeiçoamento dos grãos do terreno. E olhe lá, é que tudo ficava bonito depois desse trabalho, os jarros no vidro ou no barro, o chão elevado, alisado, alinhado, lembrando os velórios em torno das camas de ferro pintado, mas branco, velhas avós esticadinhas, metidas por inteiro nas roupas, um lenço de renda na cara. A urna esperava no chão, em baixo, ordeira, até ao amanhecer quando o Joaquim da funerária vinha acomodar a falecida na cova de madeira, sem tinta no fundo, ora cheirando a pinho, ora cheirando a nogueira, um Cristo de metal cinzelado jazendo no tampo, quatro pegas do mesmo jeito, duas a duas de cada lado. Vejam lá como as coisas são: eu sou ajudante do Joaquim há mais de trinta anos, já vi as mudas, os modos, tudo perfeito e engalanado. Mas quando estes ferros enferrujaram e nos disseram que os deixássemos assim. mesmo caídos, o tempo passou até esquecermos tudo. Já não se vê o nome desta gente, nem nas montras redondas, tudo baço, tudo amarelado, cheirando a terra e óxidos. Que raio de coisa. Mas vamos lá, vamos até lá cima, à capela, pode ser que os apontamentos do senhor Matias estejam contados e o lugar das ossadas também; isto é como tudo, somos uns para os outros, eu posso ver e perguntar porque vivo nesta viva há muito tempo, e é preciso que as coisas estejam aprontadas quando as famílias descerem da igreja, ali pelas pimenteiras. Ora aqui está uma cruz de pobre, abandonada, era do José do Nascimento, já não se percebe a data porque eles juntavam números e letras de outra maneira, assim como aquelas que tenho na matrícula da minha motoreta. Bem, tristezas não pagam dívidas. O José jé deve ter aí companhia, vejo muitas letras . Também não há mais ninguém dessa gente, nem os tipos que vinham sempre do barrocal, ao domingo, como se trouxessem água para encher os bebedores dos pássaros. Ora, ora a verdade é que nem pássaros voam por estas bandas, o que dá que pensar. Mas de dia, numa manhã assim, cheia de luz, as paredes brancas de cal em redor, porquê? Eu gosto de ver, gosto de me sentar nas pedras, deixando passar até aos meus olhos a sombra que se estende depois do sol ter estado a prumo sobre aqueles mausoléus. Parece mentira, parece mesmo, mas a verdade é que a morte é branca.
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texto e fotos do autor deste blog

quarta-feira, outubro 15, 2008

NOTÍCIA DO SANGUE ROUBADO, PRAÇA MAIOR


A rapariga estava deitada num divã estreito, a um canto de uma cave de paredes sujas e cartazes rasgados. Havia papéis no chão, roupas salpicadas de sangue, uma mesa rolante, de esmalte falhado, com o tabuleiro superior cheio de instrumentos cirúrgicos, em monte, entre bocados de algodão molhado numa espécie de tinta azul. Metais a revelar cortes no corpo de alguém, fios vermelhos escorridos, compressas, um suporte junto da parede com o seu gancho e o depósito para o soro ou transfusões, um tubo descendente, a terminar numa entrada de torneira na artéria principal, junto da dobra do cotovelo do braço direito. Mas o vaso do líquido não tinha soro nem sangue, estava municiado até meio por um líquido estranho, azul, matéria não muito fluida, na aparência, e que se podia ver a deslizar pelo tubo. A rapariga tinha uma máscara ou aparelho de respiração, toda a sua cara perto da boca parecia trucidada e transitoriamente comprimida com adesivo branco. Tendo as pálpebras fechadas, a pele parecia também azulada, ou suja de carvão, dos olhos até às maçãs do rosto. E o braço esquerdo, arroxeado, estendia-se ao lado do corpo, agulhas presas como no outro membro superior, dois tubos caídos, a breve trecho cravados num recipiente de vidro, o qual se mostrava como receptor de sangue da jovem mulher, aliás o que já acontecera com outro objecto semelhante, cheio de líquido vermelho, escuro, um pouco de espuma à altura do garagalo fortemente tapado, tranca e arame em volta.
Os meus olhos ardiam. Sentia ardor no peito enquanto fixava tudo isto, ainda sem perceber o que via, como via, porque via. A mão esquerda da paciente, roxa, esverdeada, parecia ter-se ani-mado um pouco. Era isso, movia-se devagar, tacteando a bata verde claro, parecia uma aranha trôpega a querer subir, enrolada nos tubos. Assombrado, reparei que a outra mão, essa apoiada sobre o peito coberto de tubos, se movia também, aflita, tremente, como se procurasse desfazer-se da agulha e dos apertos, metida e empeçada nos outros tubos sobre o peito. As mãos, parecendo rumar à zona do coração, fechando e abrindo os dedos, espasmos lentos, encontravam-se enfim no peito raso, desacertando os dispostivos de recolha de sangue e da tranfusão do composto azul forte. Havia agora derrames de das duas matérias, tanto no peito como no lençol da cama, mãos como gritos, tubos crescendo, arrastados da obscuridade pela subida dos braços, pelos movimentos em desencontro e trajectos cruzados, linhas azuis, outras de maior calibre, deixando passar bolhas de sangue. Tudo era já um motor cheio de próteses, plástico enrolado, sujo, arrastando panos, bolas azuis de algodão, outras encharcadas de vermelho, mais tubos, mais braços esguios que pareciam ter vida própria e prendiam cada vez mais as mãos cobertas de próteses, nem vida nem morte, galáxia de dor e máquina de roubar vidas, sei lá, eu via, via, a boca seca, o grito calado, um arfar não sei onde, todo o peito da mulher rasgado em buraco, buraco escuro donde emergiam outras formas, metais de afastamento e prisão de partes de orgãos, as mãos numa só, dedos rectos, quebrados, todos os tubos como vermes, vermes que subiam, que desciam, que entravam na cova descosida - cova onde as mãos se afundaram de súbito, soltas, sem vida, ao acaso, por fim num gesto doce, docemente, até à imobilidade.
Na praça, junto ao rio, os barcos acabam de ancorar. Deles começa a jorrar uma multidão de gente em contra luz, lesta, escura, abrindo-se depois no patamar onde passavam os transportes públicos. Sentado na esplanada, sentia-me dorido, culpado não sei de quê. Rostos pálidos, amarelados ou anémicos, passavam em fila, ali bem perto. E havia jornais, um jornaleiro à antiga,
transportando uma tonelada de papel. Comprei um qualquer. Falava-se da crise global, do fim da ditadura dos coronéis, das mães que se juntavam na Praça Maior para resgatar entes familiares, maridos e filhos. Gritavam palavras de ordem. Queriam acabar com a urgência, o medo, a ausência das famílias.

Uma pequena nota no jornal, à esquerda, em baixo, dizia apenas: Ana Orwell, jornalista, desparecida há dois meses, foi ontem encontrada no subúrbio sul, morta, aparentemente por lhe terem feito o transvaso de todo o seu sangue e desinfectado o corpo por injecção de uma mistura anti-decomposição. A polícia investiga este caso singular na mesma hora em que as mães da capital exigem a abertura das valas comuns, na esperança de encontrarem os restos mortais dos seus familiares e amigos.

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Sinopse do filme «A morte de Ana Orwell», do autor deste blog,
sob eventos trágicos do fim de uma ditadura na América do Sul

domingo, outubro 12, 2008

ALUCINAÇÃO: COR, METAMORFOSE E MEDO


Estás com um tubo na boca, isso já entendeste. Tens seis agulhas espetadas no pescoço. Urinas sem perceber, um ardor que desaparece por baixo da cama. Se calhar começaste a ter medo. Mas medo a propósito de quê? Lembras-te daquela voz feminina que informou alguém de que estavam no «piso do bloco»? Havia mármores, tubos ao longo das paredes, perto do tecto, mas a luz era escassa, vias mal, tinhas a cabeça entalada entre almofadas industriais e só podias espreitar, pelo canto do olho, um canal fino, transparente, pelo quel escorria, leitosamente, o que poderia tratar-se de soro. Soro fisiológico, com produtos adicionados, invisíveis. Sim, claro que o espaço em volta havia escurecido, tornara-se azulado, e havia enfermeiras lendo fichas, cabeças coroadas de claridade, pendidas sobre o branco da mesa. Tudo parecia tranquilo mas o ruídos das vozes, apesar de trocadas em murmúrio, era insuportável, ensurdecedor. E a parede já sem tubos transformara-se naqueles tabiques interiores, antigos, revestidos por uma pintura ornamenteal dita escaiola. Havia pedreiros e pintores especializados nesse efeito aristocratizante, a fingir superfícies marmóreas, assaz raras. Depois apareceu aquela mulher. Tinha um pequeno véu na aba do chapéu estilizado e leve, vestia como nos anos 30, fato diáfano, rosa velho, uma cinta da mesma natureza, azul cinza, delineando a anca emergente. Orosto ficara em sombra, uns lábios pintados com suavidade, numa cor também rosada, a pele pálida, as feições inertes, tudo inerte na sua pose ao fundo. E, no entanto, a sua nitidez era maior do que o recorte das pessoas próprias daquele contexto. Pensei num fantasma. Numa visão do Além.
As alucinações em estado pós operatório são aparentemente mais reais do que a realidade.
Um bom tema para estudar as questões da nossa percepção do mundo.
A pintura aqui exposta, surgiu das mãos de um amigo que não reconheci. Ele disse que entregava a pasta à minha família. Antes de se despedir disse devagar: «olha, usei vermelhos, pretos e alguns cinzas. Sei que são as cores tuas preferidas e aliás ajudam a perceber os tons em volta.» O homem sorriu, parecia irónico, e eu não podia falar nem perguntar-lhe de onde nos conhecíamos.
Quando me foi possível libertar a boca, dois dias após aquela tarde, falei com a enfermeira e perguntei se estivera ali um colega meu, com uma pasta de cartão. «Não esteve cá ninguém, excepto a sua família. Mas tem aí, junto da mesa de cabeceira, uma pasta de cartão. Não sei quem a deixou assim, nem do que se trata. Quer que abra?» Atordoado, ainda consegui dizer: Não, deixe estar assim. Vejo quando estiver melhor».