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terça-feira, julho 29, 2008

VELHAS PORTAS, A BELEZA DO APODRECER


Quando a indústria de transformação da cortiça entrou em colapso no seu maior centro, Silves, já muitas portas de armazéns e de acesso a depósitos da matéria prima, tinham, junto ao chão, este aspecto arruinado, com buracos que facilitavam a entrada das águas das chuvas e os ventos de pó que atacavam a cidade em certas alturas do ano. Estas imagens são actuais (2008), são restos de arranjos inutilizados, fósseis, fibras secas, ferros de aperto afinal inúteis. Se nos alhearmos do chão, que nestes enquadramentos não se vê, o que nos é oferecido pode merecer o nome de paisagens, algo que soçobrou e adquriu o eterno estatuto de ruína. Há formas de morrer assim, como tantas vezes a arqueologia nos dá a ver, conciliando aparência e conservação.



Pela tardinha, num dia nada próprio do verão, divaguei por estes sítios e mais uma vez convencido da beleza difícil destas imagens, coisas, memórias, rostos velhos escondendo buracos negros ou vazios de armazéns outrora floridos, cheirando a frutos secos, amêndoa, coberturas retorcidas do milho. Por vezes quase me sentava no chão, entre os carros estacionados e a porta a enquadrar no ponto escolhido.
A certa altura, uma jovem fresca e bem aprimada de corpo, parou e perguntou-me:
«Mas que raio, o senhor acha isso bonito?
Eu levantei-me, sem ter perdido o disparo, e perguntei, por minha conta, à rapariga:
«Gosta de crianças, acha-as em geral bonitas?»
«Sim, claro que sim», respondeu ela.
«Conhece gente idosa, velhos, alguns como aqueles que se sentam debaixo das alfarrobeiras? Haverá, entre essa gente, o exemplo de uma beleza na velhice?»
«Sim, claro que sim» voltou ela a responder.
E eu:
«Pois saiba a menina que ando por aqui a fotografar estes belos velhos, velhos e silenciosos»
E ela:
«Ah, que giro. Giro mesmo. Visto assim, tem toda a razão».
Até esta porta ardida ganha, em beleza e despojamento,
os plásticos queimados do italiano Burri

fotografias de Rocha de Sousa

domingo, julho 27, 2008

APETRECHOS DE FÉRIAS: RESPIRAR E LAVAR

Em pleno século XXI, retornar a meados do século XX, num lugar diferente do habitual, para exercitar os neurónios do repouso, pode acontecer usarmos este apetrecho, com ele regando as flores e tomando, pelas seis da tarde, um copioso banho, os pés nus sobre as lajes do quintal.

Estas plantas, que rodeiam o quintal, têm uma duração de vida maior do que a minha, vão sobrar para os outros, e espero que os outros, mesmo retraídos pela escassa cultura da globalização, ainda tenham à sua disposição aquela mangueira, ou similar, e sobretudo que ainda exista água para usos domésticos indiscriminados.

Com máquina de lavar roupa ou não, conservo sempre este cabo, já lasso, onde gosto de ver roupa lavada, íntima, descomprimida, a dormir na espera do seu modo de vida sobre a pele humana. Parece que estou a ver imagens dos anos 40 e do tempo da guerra, em que se fazia sabão em casa, numas lindas caixas de madeira de pinho. Toda a gente devia aprender isso na Escola. Toda a gente devia treinar a lavar roupa nas pedras que marginalizam o rio, em pleno açude.

quinta-feira, julho 17, 2008

AS COISAS QUE NOS PASSAM PELA CABEÇA


As coisas que nos passam pela cabeça
quando um aviso de bala
crava no céu o primeiro estampido
e é depressa alarme de morte.
Logo o capim se quebra na queda
e todos em volta subitamente gritam,
todos e ninguém,
ali e além,
a vomitar mil chamamentos,
em brados imensos, de ferro ao acaso,
tudo no ar, entre ventos, por alguém,
tudo por nós, em suma,
contra o inferno inteiro e raso.
*
Cheira a urina no cheiro do capim quebrado
assombrando o resto de nós.
Pétalas no chão já esmagadas
e talvez, em murmúrio, ainda perfumadas,
sangradas,
morrendo com o peso do nosso medo
que nos queima os dedos
ao acaso dos outros dedos cravados no gatilho,
até a arma, ela própria, se calar.
*
As coisas que nos passam pela cabeça
quando o ar se torna límpido, de súbito calado,
devagar a sombra das árvores
no absurdo silêncio da guerra,
e os homens além, ou ali, riscados pela terra,
impossivelmente a chorar sobre o capim,
dizendo num sopro, baixinho, sim, sim,
Eu sei que sim, mãe.
*
Rocha de Sousa
memórias de Angola

quarta-feira, julho 09, 2008

OS ODORES IRREPARÁVEIS DA VELHA CIDADE

O problema não se resume ao facto destas imagens revelarem aspectos de duas portas, situadas, de frente uma para a outra, na mesma rua. O problema decorre do cheiro pestilento que se sente junto delas, quer na proximidade da velha porta de madeira, quer diante da inutilizada porta de ferro, outrora forrada, na parte superior, por uma grelha envidraçada.
A porta de ferro correspondia a um daqueles lugares que se chamavam justamente «lugares» e nos quais, além de frutas e vegetais frescos, se vediam também mercearias, desde o petróleo para o fogão até ao jurássico «sabão macaco». O cheiro que vinha do fundo, da contraloja, não era muito próprio de uma loja com este perfil: porque se tratava de um «cheiro a canos», como explicavam as vizinhas, apesar do senhor António, dono do «Lugar», garantir a toda a gente que se estafava a limpar a casa de banho e a grelha que havia na cerâmica do pátio, zona a céu aberto onde se acumulavam velhos móveis, cadeiras partidas, alguidares, a casota do gato. E lixo para evacuar à noite.
A porta de madeira, muito velha, talvez mais velha do que a sua vizinha da frente, em ferro pintado, corresponde a um daquelas prédios tocados de ornatos nas cantarias, janelas simétricas, ao alto, paredes revestidas de azulejos da boa época desse gosto. Havia duas residências, simétricas relativamente à porta, e ambas, naturalmente, situadas no rés do chão. A residêndia da esquerda ficara devoluta dez anos atrás, pela morte da sua locatária, e nunca mais foi reabilitada. Do lado direito, havia também uma única locatária, com mais de oitenta anos. Embora desta outra porta, no lado oposto da rua, também cheirasse a canos, sobretudo quando era aberta, a Dona Clementina garantia, a quem a interpelasse, que podiam entrar na sua casa, estava toda lavada e não pairava por lá nenhum mau cheiro.
Durante muitos anos, como á habitual entre nós, este problema ganhou a importância de catástrofe urbana, meteu delegados de saúde, polícia, tribunal, e nada se provou. O «Lugar» foi definhando e o Senhor António faliu. Desactivada a casa, sem produtos nem pessoas, continuava a contaminar a rua nas suas redondezas, pelo que foi entaipada com tijolos. Obviamente, morta a a Dona Ricardina, os netos entregaram as chaves e tudo ficou encerrado durante anos e anos. Por estranho que pareça, quando se passa ali, o cheiro é determinante na mesma e obriga-nos a ensaiar círculos de afastamento.
Hoje, diga-se o que se disser, na maior parte de prédios como estes, em várias zonas da cidade de Lisboa, o cheiro pestilento já ultrapassa esta ou aquela porta, mas na maior parte delas, imensamente, eternamente, sem a menor das compensações

sexta-feira, julho 04, 2008

VOLTAR AO REFÚGIO DÁ-NOS DE NOVO A PAZ

Somos feitos de memórias e sem elas, sem a sua grandeza e a sua qualidade, não seríamos capazes de projectar verdadeiramente o futuro. No sonho ou na convicção das somas consistentes. Os nossos hábitos, no fundo, consolidam-se da mesma forma, ordenando-se pela colagem a coisas que nos lembram outras coisas,mudanças, estabilidades, rotinas, a dedicação a lugares remotos, doce aprisionamento, dia a dia nos sítios onde vivemos e onde acumulamos objectos, adereços, livros, roupas, fotografias, aí sim, entre retiros exíguos servindo para pensarmos ou rever as imagens do mundo, interioridades estranhas, conlitos, possíveis lutas de reunificação das energias. O presente é fugaz, em todo o caso, ponte que nos afasta dos factos a montante do nosso percurso, sobre o rio da existência, aproximando-mos assim de reconstruções possíveis, do real e do sonho a jusante.

GRANDES AMPUTAÇÕES DA GUERRA INÚTIL

ferida irreparável



O feiticeiro agarra uma criança pelas pernas, gira o corpo no ar, em movimendo de hélice, e larga de súbito o pequeno ser que se esborracha na parede da casa destelhada. As galinhas fogem, espavoridas, deixam penas por aqui e por ali, e os gurreiros saltam e gritam e arrebatam mais crianças das mães encurraladas. Há cabeças cortadas, rolando fofo no capim, e outros meninos a berrar como porcos na matança até quebrarem os crânios contra as paredes onde os esguichos de sangue começam a escorrer na vertical, em fios mais ou menos finos. As mães que podem fugir, depois de perdidos os filhos, ficam ajoelhadas, numa estridência de gritos, e os homens vendem a sua pele o mais caro possível. Alguns conseguem furar a barriga dos guerreiros, soltar- lhes as tripas, mas são logo dobrados para o chão à paulada e castrados com catanas. Uns negros muito negros rastejam na periferia das cenas, riem (satânicos) e juntam troncos que espetam no chão. E os guerreiros pintados, emplumados, gritam gritos de guerra, agitam no ar as cabeças degoladas, os sexos amputados, vindo ornamentar com esses despojos aquela espécie de paliçada erguida pelos seus companheiros. Estes arrumam tudo um pouco melhor, atafulhando as bocas das cabeças com os pénis grandes e moles. Os tiros estalam lá mais adiante, fora das casas destruídas, são festa e foguetes a fingir, a ordem do caos, um calor abafado em volta. Sobram crianças mal mortas e há fetos secando fora dos úteros esfaqueados, grandes poças de sangue, panos, tufos de capim e clareiras de areia cor de laranja, pássaros negros rodando muito alto, no céu cor de chumbo.
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Pequeno excerto o livro «Angola 61, crónica de guerra» obra publicado em 1999, pela editora Contexto, «uma crónica de guerra ou a visiblidade da última deriva». Livro que descreve toda uma realidade acontecida de facto no teatro de operações na zona dos Dembos, embora explorando a plasticidade do cenário, literariamente, e fornecendo coerência «fílmica» aos grandes movimentos, paisagem e personagens.