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quarta-feira, junho 03, 2009

OS DOIS LADOS DE UMA ALDEIA NA PAISAGEM

Amanhece depressa e a luz arrasta uma brisa ainda fria, mansa, que parece descer da serra. Há um quilómetro na estrada, em curva, donde se avistam as casas meio descaiadas de certa aldeia sem nada nas proximidades. Abrando a marcha, faço o carro passear junto à berma, e isso lembra o trote leve de um cão doméstico que só conhece o dono e só a ele obedece. Quando as velhas casas surgem, um pouco à direita, o que vejo corresponde ao que me contaram, as casas e lá para trás, numa longa encosta, milhares e milhares de eucaliptos: a aldeia está silenciosa e aparentemente deserta, enquanto os eucaliptos bebem a água restante nos veios freáticos. Isso tornou-se banal, é um capitalismo fundamentalista e apressado, imenso, que vai dando no que deu.
Perto da aldeia (velhas construções devidas às dobras agrícolas) os meus passos desconjuntam-se pelo efeito das pedras, da cevada seca ou coisa assim, a terra a desfazer-se e eu a escorregar no que sobra do derrame, pequenas derrocadas após derrocadas, o estalar das hastes secas, as casas a balouçar lateralmente.
Decido parar, olhar em frente através da máquina de filmar, filmar mesmo. Afasto as pernas, faço o acerto das condições de registo, os brancos entretanto, e disparo a objectiva, longamente e em plano fixo, preso ao quadro daquela paisagem talvez comprometida, belos trechos de argamassas deprimidas, muros sujos ou a cal sem brilho, janelas desfeitas, telhados quebrados (em cunha) assim tombados no interior da primeira casa.
Ao terminar este primeiro plano, olhando em profundidade a imagem penosa que parece indiferente à minha aproximação, decido confrontar-me com o lugar. Grito então, com as mãos em volta da boca: «Está alguém aí?» Ninguém responde. «Não está ninguém por aqui?» Uma situação afinal ridícula faz-me ensaiar passos em volta, procurando perceber a natureza e a dimensão do sítio. Agarro a câmara como uma arma de fogo, erguida e perto dos meus olhos ardendo, apontada ao interior de paredes com anverso e já sem reverso, ruínas atrás de ruínas, um rosto fendido, quase plano, sem cabelos nem nuca. Uma volta, depoia outra, tudo não passa de um erro perceptivo, como na história da laranja inteira sobra a mesa, metade da laranja afinal, cuja convexidade estava inteiramente volta para o observador. Alguém comera a outra metade, depois de um corte diametral, e assim deixou a parte que pertencia ao futuro.


Não há aldeia nenhuma, a matéria plural dos telhados desandou em parede oblíqua, currais além, um provável celeiro, nada disso é isso ou foi assim. E tudo o que parecia uma composição lógica, pelo jogo dos planos e pelo escondimento de outros, é apenas uma vaga aparência no registo mental, as casas não passam de uma, duas para fins não humanos, madeira e pedra, a encosta coalhada de currais de qualquer exploração pecuária, eucaliptos em volta, pequena reserva suína entretanto perdida, os eucaliptos ali, todos, donos do território, na sua base jazendo grandes vasos baixos, barro da região sanguínea, mãos outrora talhando carne ou moldando argila dúctil. Vejo teias inteiras de telhados caídos após alguma tragédia indeterminada, um chão sulcado de detritos negros, bem secos, panos com rasgões de acaso, cadeiras da tabúa, sem costas ou sem pernas, mais paredes oblíquas, uma delas apontada a nordeste, painel de adobe riscado a branco e a esconder outros usos, porventura mais produções. Talvez não tenha sido senão uma precária arrecadação, deste lado, não daquele. No enfiamento desse sinal inútil surge um forno construído a preceito mas também rachado pelas derrocadas dos alpendres, bem feitorias de que restam indícios empobrecidos, por vezes claros, coisas absurdas no embaraço das peças visíveis, entre madeiras e telhas e cacos de uma cerâmica rude, feita por ali, memória de artesãos da louça e da pedra, porventura das telhas moldadas à mão, aquecidas ao sol para secar, só depois enfornadas a prestações, horas e horas de vida dada a tudo isso, presa em todas as tarefas inerentes, mãos antigas capinteirando várias estruturas, portas feitas, portas fechadas, nenhumas portas por fim.


Mal acabadas as habitações, estábulos, currais, galinheiros, e já um sopro de perda. Já um primeiro bafo da contracção demográfica, a avó morta, os filhos desaparecidos, os pais emigrados no roteiro sinuoso do trabalho, pouco e mal pago, ou também as rotas da fome, fuga ao vazio, ali se come qualquer coisa, além dormindo longe, mais uma sopa em troca do arranjo de uma enxertia de fábula, e o medo em mentes escurecidas, casas ruindo, ruínas rudemente transformadas em aldeias como esta, que não é aldeia nem nada que se pareça mas fez a vida e a esperança de alguém. Tudo parece longe. Longe e diferente, quando se contorna uma fachada ainda branca e a vemos, do outro lado, esventrada, mostrando a implantação de quartos onde se imaginam nascimentos, risos, vozes, ou as velhas gerindo a tecitura das roupas, rezando na própria enxerga patilhada com dois netos, um dia de sinos tocando aflitos na cidade do outro lado do mundo, incêndios sem medida, procissões, relíquias, passos de dança, devagar, meninas com flores, olhos vaidosos de quem acredita nos Santos e na Ressurreição.
Vou levar daqui uma simples pedra trabalhada pelo homem. Quem a achar no meu quarto de moribundo terá certamente mais discernimento para avaliar quantas gerações de bichos e bichos homens estarão atrás dela e a quantas outras ela sobreviverá.
As pedras não morrem como nós. Transformam-se durante milhares de anos, em muito longas mutações.






está alguém aí?

fotos de Rocha de Sousa