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segunda-feira, junho 28, 2010

PELA MANHÃ DO MEU INQUIETO ACONTECER


fotografias de rocha de sousa


Tenho a mão pousada na mesa
e vejo os dedos começarem a desaparecer.
Parecem esbater-se sob a névoa ali dispersa,
já não existem porque já deixaram de ser.
O lápis cai, perdi a mão direita.
Ao passar um dos braços restantes pela cara
não há nada para sentir e um horror espreita
dentro de mim, morro de forma rara
por fora e por dentro, sem cabels nem pernas,
como aqueles corpos cobertos de flores ternas
e cada vez menos visíveis, sepultados sem dor,
queimados, enfim, por um lume em torpor,
sem dor,
claramente sem amor.
Eu também, depois de me ter desaparecido o torso
embora o coração ainda bata
e este olho tombado na cadeira de lata
esteja quase a desprender-se do cérebro e sem esforço.
Agora morri.
Não sei quem escreve por mim e devagar sorri.
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excerto de «Talvez Imagens e Gente num Inquieto Acontecer»,
livro de Rocha de Sousa, em preparação

quarta-feira, junho 23, 2010

AS LETRAS E AS ARTES, PRÁTICA E EDIÇÃO

tácnica mista rocha de sousa

Esta espécie de ilustração foi trabalhada em pintura, fotografia digital, colagem e fecho. Irá recobrir uma boa parte da capa de um livro. Trata-se de uma edição de Maria João Duarte, a partir da sua tese de doutoramento. Este livro será apresentado como qualquer outro, mas não deixa de apresentar conteúdos ainda hoje bem pertinentes: a oposição à ditadura, em Silves e no Algarve todo. O núcleo físico onde «decorre a acção» é a cidade de Silves, muito traumatizada pela PIDE e em face (nos anos 50/60) dos núcleos políticos emergentes na indústria da cortiça, ali onde se concentrava o maior centro produtivo do mundo, na transformação e exportação. Fui testemunho desse esplendor e dessas tensões, quando o governo passou a exportar a cortiça em prancha, logo que tirada das árvores, ofercendo ao estrangeiro uma riqueza em bruto para manejo bem lucrativo. Os donos das terras de sobreiro enriqueceram ainda mais, os trabalhadores ficaram mais ou menos ao Deus dará.

O livro chama-se «Silves e o Algarve, uma história da oposição à ditadura». Esta imagem, partindo de muitos dados visuais de Silves, nos seus diferentes aspectos, multiplicados e reassociados, entrecruzando-se numa atmosfera de quase ruína, tarde vazia, gente recolhida, monumentalidade de restos das fábrica -- e, sobre tudo isso, contra o céu, uma insólita visão que absorve a metáfora sobre o lado monstruoso e vigilante de algo que nos amordaçava, prendia, e por vezes fazia desaparecer. Hoje o sonho é claro, e as ruas não têm este clima terroso dos anos 50. A autarquia tem dotado a cidade de uma panóplia de bens e serviços aceitáveis. A memória dos patrimónios antigos convive com a arquitectura da zona histórica e da baixa em termos urbanos e lúdicos, junto ao rio. Obviamente, já não há as grandes fábricas de cortiça, nem os 6.000 trabalhadores daquele tempo, nem sequer a Câmara pôde segurar o excelente museu da indústria cortiçeira, obra museológica de importante sentido divulgador e pedagógico, premiada internacionalmente. Esta cidade, aliás, padece de coisas ainda sinistras: reconstruiu um teatro dos anos 20, há cerca de um ano fechado; adaptou uma edificação de marcas arabizantes como Institudo Superior de Estudos Árabes: faz algumas exposições e está às moscas, apesar da sua beleza e do seu aprazimento. As modificações da margem do rio Arade funcionam, como as psicinas e as instalações para feiras industriais, comercias, ou da agricultura. Ninguém pode imaginar verdadeiramente a que degradação chegou esta importante cidade da memória árabe e do sorriso que conquistou, entre omissões, nestes últimos anos.

quarta-feira, junho 16, 2010

AS IMAGENS QUE MORAM NO CAMINHO DA FÉ




A velha senhora estava a rezar o terço no filme que secretamente fiz desse gesto. O segredo da arte, no vídeo ou no espaço do medo, é semelhante ao que se passa com o mistério da fé. A senhora dizia palavras para dentro de si, nomes e verbos cujo vago sentido se projectava no interior da cabeça. Aqueles dedos, envelhecidos mas estranhamente decididos, permaneciam imóveis, só se moviam, invisíveis, quando a oração levava à escolha de outra rigidez redonda. Nesses instantes, a memória já guardada abria-se em imagens curtas, superfícies lisas, convexas, brandas, entre outros registos, talvez contrários, a dois milímetros do lado côncavo, milenário, de um fragmento de crâneo. Ou isto ou algo de semelhante, vagamente a cores. As memórias assim, feitas de presenças ininteligíveis, ou quase, serão restos da memória toda, lixo também, cortes neuronais sem princípio nem fim? Essa realidade virtual, certamente absurda, pode servir para fins que desconhecemos, como os pingos de tinta, sobrepostos, a que conferimos autenticidade estética, porventura plástica, sem os limpar do universo da pintura em redor. Essa escolha parece por vezes maquinal, um acaso sublimatório. A arte acolhe e coisifica cada instante assim, procurando dar ao visível meios de decifração do inominável. É a curta entrada de ar nos pulmões quando sofremos uma paragem cardíaca logo superada pelo fio da electricidade restante. Então podemos voltar ao lado sólido e redondo do real, dedos a contar mais uma Avé Maria, por exemplo, no encobrimento das emoções, a razão como que suspensa, motor parado, o sangue a correr sem se sentir, impulso aparentemente arbitrário que enche toda a rede vascular dos corpos. Nas veias que serpenteiam só o manto cutâneo daquela pele enrugada, tocada pelas pétalas sépia das margaridas. Na Avé Maria que não passa de um pretexto para ordenar a simulação sisifiana do destino humano, paragens e andamentos fortuitos, cansaços e imagens sem nome, duas avé marias no corredor da garganta, imagens atrás dos olhos, olhos fechados ou abertos, tanto faz, eles voltam-se ao contrário para receber as mensagens do cérebro. Mãos postas. Um rosário faiscando. O filme. E entretanto, num espaço milimétrico, outra imagem, diferente, sem referências, caída para o lado da retina numa cintilação deslavada e abstracta. Um frame do ser? Um pingo da alma?
Aqui fica, para quem me ler ou ouvir, a importância transcendente das pequenas e inúteis deixas do ser, partículas do invisível, o lado inconcebível da vida como segredo que se desvenda na retoma da aspiração do ar, suicídio interrompido, talvez princípio da fé contada em avé marias e da arte em restos de tinta volátil. Ou o mais remoto instante que parece legitimar a infinitude de cada percepção atrás do limite.