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segunda-feira, março 30, 2009

DO VISÍVEL EM ESTADO PÓS OPERATÓRIO

As paredes da casa eram forradas por pinturas em escaiola, janelas e portas forradas de cantaria, vidros apertados por caixilhos aos losangos, um leão de ferro como batente da altíssima porta, altíssima e dividida e alinhada por esquadrias já muito desguarnecidas de tinta, castanho de lepra, tudo encerrado, mesmo as lados internas atrás dos vidros, fracturas aqui e além, velaturas de água toldada de ferrugem abatendo os valores cromáticos dos falsos mármores, bela imitação, em todo o caso, de certos tons rosa, cinzas lascados, lisura que sobrara dos abandonos todos.
Esta imagem, realista até ao limite da sua objectividade cortante, configurava a parede do fundo da enfermaria, o que não podia ser no bom juizo das pessoas, e eu era pessoa, mas via, confrontava, ora estava dentro de mim, como um feto no ventre da mãe, ora me via deitado, quase confortável, sem dores, um tubo a sair-me da boca, o que era justamente o oposto, mistrura de oxigénio e anidrido carbónico, um sabor a plástico, portanto o tubo vinha de fora para bafejar os meus pulmões e não destes para éter da sala.
A certa altura, não sei quando, se de noite, se de dia, reparei numa mulher que se deslocava pela frente da fachada em escaiola, direita, com chapéu acastanhado, um vestido em pétala de rosa pálido, cintura descaída como nos anos trinta, tecido todo a flutuar, um cinto do mesmo tecido do vestido mas na cor do chapéu. Ela usava luvas rendadas, acastanhadas também e até meio do braço, a pele muito branca, levemente aquecida, os olhos em sombra sombrios, assim as sobrancelhas escondidas nos cabelos soltos sobre a testa. Destacavam-se os lábios pintados com um baton rosado, embora mais escuro do que o rosa da tinta do vestido, fío de asa, lenta queda da borboleta, a vida pouca. Gritos ao longe. A mulher parou, rodando a cabeça num medo antigo, e foi encostar-se à parede e ali ficou parada, um joelho levemente avançado, imagem desfocada do cinema, talvez a imagem não fosse de mulher agora, perto de mim, e sim do real outrora, aparecido, parecido, como se esta existência não o fosse, se calhar nem tudo o que se pode ver seja existente e palpável, embora nos toque o fundo dos olhos, vogando para o fundo do cérebro e aí se conclua em cópia do já visto.
Os gritos. Os gritos rolando do fundo do espaço, batendo neste lado da enfermaria, palácio revertido do século XIX. Gritos estranhos, certamente, pois ali só se viam os médicos sentados em torno de uma mesa redonda, falando entre si, falando mais concretamente do que o som dos gritos, falas altíssimas, a prova do que nos dizem pelas esquinas, o facto desta gente não nos respeitar, médicos, enfermeiros, auxiliares, mesmo na enfermaria dos cuidados intensivos onde as vozes sonoras deveriam descer ao nível do murmúrio, como se estivéssemos na ante-câmara da morte, ou, indevidamente como Didi e Gogo, à espera de Godot, sob a árvore encrespada.
A mulher dos anos 30 parecia um cartão hiperrealista encostado à parede, um lance de escadas ali perto, distorcidas, existentes assim, anunciando a verdade aterradora do nosso irrecusável estrabismo. A mulher parecia um cartão plano, a imagem em alta definição, estava encostada à parede como um cartaz à espera, o volume perdido, a coxa fingida, também a ondulação do vestido, volúpias ornamentais e eróticas, o tom carnal da pele fina. Os médicos falavam todos ao mesmo tempo, pareciam mais gordos, trocavam cartas, bebiam café, e ali perto eu podia ver alguns monitores a trabalhar, televisões minimalistas cujos ecrãs negros, atravessados por linhas verdes e azuis, mostravam a palpitação de números em cima e em baixo, cento e vinte e três, cento e vinte e cinco, sete e trinta e cinco, trinta e quatro, tubos vindos de certa vasilha transparente, com líquido transparente, que mais parecia uma garrafa com o gargalo para baixo, tubos de plástico, pingo, pingo, pingo, o tempo contado pelos pingos, pelos gritos, por um pressentimento de gestos terminais. Então pensei na eutanásia e os médicos continuavam a rir e a falar, as gargalhadas rolavam pelas lajes como bolas de bilhar fora do tabuleiro, da ideia delas acontecia lentamente a travessia de ferros cromados, de pinças, pingos, objectos metálicos de brincar. Os médicos bebiam água por copos de plástico (talvez) em escassos goles. Mas que diziam dentro daquela massa sonora de ruídos? Falavam tão alto que eu nem conseguia escutar, perdia fonemas, palavras, conteúdos. Ah. Estomafálico, laríngua, redonfilia e anaudrato de fénico.

Todos riram quando entrou na sala, vinda do escuro, uma enfermeira obesa, passinhos curtos, gestos obscenos para os outros em volta. É o Conde que está a chegar. Morreu a condessa e a cidade ficou gelada, atrapalhada, coisa tonta numa República. O Conde tinha ficado em estado de choque (no fundo tinha outra mulher escondida com ele atrás de um biombo em cores desbotadas). A Condessa caiu. Não podia ter visto nada mas caiu, de morte súbita, como um vulgar jogador de futebol. Foi então assim, no tapete persa (que disparate, ser persa), fez plof ou plaf, consoante a roupa, e o Conde morreu, sentiu-se mal, esteve metido em contingências de enfarte, e o INEM vai depositá-lo aqui. Já sinto o cheiro a flores e a condição de morto assesssor nesta enfermaria transformada em câmara ardente. Há flores numa mesa. Falsas, certamente. Os risos ultrapassam agora os gritos. A enfermeira gorda (obesa) acaba sentada no colo de um médico vigilante, que não vigia nada, e ela beija-o furiosamente, pernas largas, peludas, transsexuais, obviamente impróprias para lidarem com as meias brancas, enrodilhadas sobre os sapatos brancos, desses que fazem lembrar o ténis sem qualquer razão. Antes as pernas das jovens tenistas, fortes, mansas ou tensas, longas trementes, luzindo o ardor da luta ou do prazer.


Quando o Conde chegou não vinha deitado numa maca. Vinha bem estendido numa espécie de cama, com texto de pano orlado por galão dourado e vários médicos seguravam nos prumos em talha barroca, uma roda chiava por baixo de tudo, cheirava a rosmaninho, tudo como numa procissão das flores. O Conde estava vestido com um bonito fato bege dourado, barbeado, cabelo com gel, um bigode em espirais, uma boquilha com cigarro apagado, as mãos cruzadas sobre o peito, segurando as luvas brancas e uma requintada bengala estendida até aos joelhos. Sapatos de verniz, bordeaux, cada bico para seu lado. A enfermeira gorda (obesa) não ligava nada ao que se passava ao lado da sua imensa anca, excepto os dedos do outro, enquanto a mulher dos anos 30 retomara a sua forma tufada, leve, breve, dirigindo-se para a cova funda donde viera. Mas não era um fantasma, nem uma lembrança pueril.O médico chefe levantou-se e cumprimentou-a, o que é sinal de que a via como eu, aliás confirmado no beijo que lhe deu (curvado) na mão enluvada. Tudo de caminho, delicadamente, e ela disse duas ou três palavras, e as palavras (que pareciam angulares) não chegaram aos meus ouvidos, enrolaram-se no pavilhão, deslizando pelo vinco da cartilagem. Cento e vinte, cento e trinta. Um coração, ou ícon aceso, um zumbido das máquinas por cima de tudo o que estava dependente do chão, camas, cadeiras, monitores, cabeças, luzes de presença, uma legenda de saída. E enfim, na cama ao lado da minha, o Conde deitado como chegara, os olhos líquidos ao alto, as narinas farejando o infinito.

quarta-feira, março 18, 2009

COMENTÁRIO A UM ACHADO DOS ANOS 60


Como sou desorganizado por natureza, não disponho de nenhuma coordenação bibliográfica que diga respeito à minha obra, inicialmente emergente nos anos 60. Este texto que poderemos ler a seguir, da autoria da jornalista e crítica de arte Manuela de Azevedo, é uma peça de grande preciosidade, não pelo elogios que tece à minha primeira exposição na galeria «Diário de Notícias», aliás com uso de vocabulários hoje perdidos quase por completo, mas pelo que dá a ver sobre aquele tempo, algum provincianismo envolvente, algum carinho. O importante, sobretudo, está no surpreendente plano da desmontagem da obra, da sua revelação exterior e interior, dos valores que defendia, da implícita dinâmica daquilo a que se chamava, antes das semióticas e estruturalismos, mensagem. A mensagem, no sentido lírico-retórico, feita de alguns fios românticos, depois aberta às relações perceptivas com a realidade envolvente. Os vocábulos das ciências da linguagem escrita e da teoria da comunicação, transitaram para o domínio das artes plásticas e mudaram os modos de ser, formaram os intelectuais da arte, críticos, orientadores, comissários e curadores.
O texto de Manuela de Azevedo, se nos alhearmos desses mimos próprios do tempo e da pessoa, é um assombroso exemplo de leitura da obra de arte, dos sentidos e projectos de um autor: a técnica pictórica, a simbiose figuração/abstracção, aspectos de natureza expressionista, os títulos e o seu papel, as técnicas e as colagens em desenho. E ainda uma noção exacta sobre toda a morfologia, tipo de sensibilidade, temperamento do ser e do exprimir.
Decidi alinhar estas palavras, assaz escassas quanto à substância do texto de Manuela de Azevedo, um texto que me adivinha desde aquele tempo até hoje, já muitos anos depois da sua morte. O muito que se aprende ainda hoje com a alquimia dos textos remotos e do pensamento plástico outrora, a coerência de alguns autores, a sua viagem, tudo isso emerge ali: porque aqueles meus quadros não negam os de hoje e até lhes conferem suporte. Acrescentaria que muitos visitantes de exposições e críticos me classificaram de ilustrador, como se isso matasse a pintura, e em certa medida ligado à Paula Rego da primeira fase. É verdade que sempre gostei dessa parte da obra de Paula Rego: só que não foi nesse lago que bebi a minha invenção. A velha fotografia, anterior à exposição da Paula Rego na Galeria de Arte Moderna da SNBA, esclarece muita coisa.

VIAGEM AO FUNDO DA INICIAÇÃO EM PINTURA

WAR
anos 60: primeira exposição, registo a preto e branco

imagem difusa da inauguração da exposição aqui referida

reconstituição de uma pintura da primeira exposição
de Rocha de Sousa Galeria Diário de Notícias, Chiado

texto da jornalista Manuela de Azevedo, anos 60

É uma exposição cheia de encanto e frescura, esta que Rocha de Sousa apresenta na Galeria «Diário de Notícias» e que ontem foi inaugurada com elevado número de convidados, entre os quais muitos artistas jovens, como o expositor, que é Assistente na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. São apenas onze os trabalhos que apresenta, neles se fundido, com admiráveis resultados, aquelas doces tonalidades da escola francesa, em que Nuno Siqueira é um dos seus felizes representantes, e aquelas formas deliquescentes de osmoses psicológicas que trazem dentro de si algo da «pop» e do grafismo oriental. Por outro lado, fazendo de temas dramáticos, como «Mutilações», uma expressão suave da «vie en rose», Rocha de Sousa consegue uma aliança estética que é a melhor marca da sua personalidade. Acrescente-se que é um pintor que não encobre as qualidades da sua pintura, sob o pretexto da sujeição a correntes estéticas a que não é estranho o nome de Gorky, se se considerar que há em ambos - e este será o seu único ponto de afinidade - uma espécie de abstracção orgânica e outra espécie de exame da natureza humana. A fantasia das formas, a delicadeza das tonalidades, contrastam e harmoniosamente se aliam a um desenho de verdadeiro senhor do «métier».
Além da pequena e encantadora colecção de óleos, Rocha de Sousa traz a esta exposição - uma das mais representativas apresentadas nesta temporada da Galeria Diário de Notícias -a importante colecção dos seus desenhos e colagens, em que se inserem, por vezes, traços delicados de cores baças. São de uma grande beleza, bem estruturados, no seu caligrafismo insinuando um abstracionismo apenas aparente mas cujo simbolismo é, entretanto, mordaz, como comentário. Toda a temática - e tanto as colagens-desenhos como a pintura mostram obedecer à «regência» do mestre maestro - é, aliás, caracterizada por essa mesma mordacidade crítica cuja leitura pode não ser sempre clara, mas que, enfim, classifica a força de interpretação daqueles que conseguirem penetrar nas séries «Intimidades», «Coisas consumíveis» ou «Modificações». É aqui, de resto, que mais se revela a qualidade de Rocha de Sousa, cuja invenção atinge, com frequência, um prodigioso dinamismo. Mas enquanto o desenho parece, sobretudo, acentuar o valor do ilustrador, pelo contrário, a pintura do artista, com o seu infusionismo, é, quase sempre, lírica e delicadamente sentida. Poderá dizer-se haver nela algo de neo-expressionismo?

Manuela de Azevedo

terça-feira, março 03, 2009

DOIS LIVROS DECISIVOS, ENTRE DEUS E ARTE














Estes livros, já divulgados na comunicação social, lançamentos respectivos e Faculdade de Belas-Artes, foram abordados em blogs e nos apontamentos que se seguem. O tráfico de influências não nos permitiu aceder aos patamares onde tanta gente dença de sucesso e noticiários.
***
Não é a primeira vez que trago a este espaço o escritor que repetidamente me louva com palavras amáveis de incentivo à minha produção escrita.
Dedicado também às artes plásticas que vem divulgando na blogosfera em Contrupintar02 e em Desenhamento. Rocha de Sousa prendeu-me pela sensibilidade da sua escrita em «Angola 61», a crónica de uma guerra em que participou, e onde eu pude encontrar descrições emocionantes de lugares e gentes com quem (por mim) partilhei grande parte da minha vida, na terra em que cresci.
Depois de ler «A CULPA DE DEUS», voltei a encontrar uma escrita séria e acutilante, mas leve e agradável no desvendar de «segredos», muros adentro do antigo Convento de S. Francisco em Lisboa, onde o autor também se entregou a uma vida de estudo e dedicação.
Este livro acaba de ser lançado no mercado e é um testemunho vivo de uma das faces da nossa Revolução dos Cravos, a revolução cultural que tarda em cumprir-se.

A CULPA DE DEUS

para um ensaio sobre o livre arbítrio
orion
Um bom escritor, quando as suas palavras possam parecer ainda reais, séculos volvidos, é sinal de que os seus olhos viam para além das aparências, tocavam mais fundo na alma dos povos.
Tenho entre mãos mais uma obra de Rocha de Sousa, um livro que vou digerindo porque não cabe numa relação só. Do que conheço da sua vivência - seus blogs, pintura, desenhos, fotografias, escritos - o autor está lá, nas sucessivas referências à pintura surrealista - Magritte. Magritte que, ao que sei, não se queria nessa gaveta - saltos pontuais mas repetitivos a fagulhas da guerra em África, referências a Camus e Sartre e Beckett, na pele de um narrador em procuura de resposta sem réplica da presença de Deus em quadros sucessivos de Hyeronymus Boch, como ele em virar de século.
A escrita é impetuosa, fluente, a parte formal lembra António Lobo Antunes. Não só. As referências ao período de guerra, o horror dos hospitais para dementes que - ao que conheço, não li toda a sua obra - Lobo Antunes apenas aflora e Rocha de Sousa descreve com todo o realismo, com a segurança de quem fez o trabalho de casa, com intensidade e sentimento.
Estou a ler «A CULPA DE DEUS» na hora certa: quando são reveladas as cartas de Maria Teresa de Calcutá - diga-me. Padre, porque há tanta dor e escuridão na minha alma? - e eu me pergunto se é lícito divulgá-las, quando ela tinha deixado expresso que as queria destruídas, embora o eu conteúdo venha acrescentar a minha paz.
Vou continuar a ler. Até aqui partilho as considerações sobre o livre arbítrio, as decisões que cabem a cada um de nós para que se cumpram os limites que impomos a nós próprios.
Aquilo a que chamo dignidade.
Jawaa
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Ler estas passagens umas após as outras é acompanhar o narrador com o Jerónimo, procurando nos lugares onde o sofrimento humano nos transcende, sinais de Deus, na presunção de que tais lugares serão potenciais reveladores da benção divina, o que por isso mesmo, na excelência da hipótese, se revelará estranhamente inútil.
RS

segunda-feira, março 02, 2009

A CASA DOS VELHOS E A MORTE ANUNCIADA


pintura de Possolo


Numa primeira abordagem, manuseando o livro, aparece-nos por entre os dedos «a casa», numa obra de colagem do próprio autor, também artista plástico de créditos firmados. Ela projeta-se num infinito negro, sem horizontes, telhados assimétricos, montagem sugerindo vários edifícios desalinhados em convívio forçado, querendo parecer um só.
O primeiro contacto perdura ao longo das páginas, «a casa» emergindo da escuridão em que pousa, esplêncida na construção em colagens de persomagens a que correspondem as tonalidades de carácter dentro da mesma cor cor neutra da velhice, plantada sobre os escombros.
Pela mão da juventude -- uma personagem em recuperação de ferimentos graves, eventualmente de guerra -- se percorre o seu interior. Primeiro em cadeira de rodas, depois equilibrando-se em canadianas, aqui e além assolado por fantasmas que permaneem vivos e presentes, aterradores, também as memórias dos primeiros ensaios de jornalismo, seu avô, seu pai nas lides corticeiras, o flash dos cabelos loiros da mãe, a relação fuugaz que estabelece com uma das empregadas mais jovens da casa.
Pertinente, actual, po todo o livro perpassam referências à pintura e a leituras, preocupações, a necessidade de pasar a mensagem da denúncia de situações escusas, infelizmente repetidas sem e com democracia. Destaco a descrição de uma biblioteca fabulosa, «tábuas e papel trepando por ocultas paredes de pedra e argamassa», todo um capítulo com referências que marcaram uma geração, a alusão ao Fahrenheit 451, de Truffaut, à Guerra dos Mundos. Brilhante o final do capítulo com um livro de capa dura que sobrava sobre a mesa atulhada de jornais antigos.
É admirável a pintura do comportamento de gente em declínio, em degradação física e mental a que todos estamos sujeitos, com pinceladas de afectos, a complexidade humana numa bela escrita densa, em que perpassa hna sensibilidade atenta, ponteada da cultura que caracteriza o autor.
Jawaa
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texto de síntese publicado no Bar do Ossian a propósito de um livro do autor deste blog e cuja
notícia já foi amplamente divulgada. Com uma carga de simbolismo por vezes arrasadora, a geração mais nova, traumatizada, ferida de angústia, alguém desperta para a imensidão dos espaços da Casa, imagens que lembram a impossibilidade arquitetónica do mundo e onde se acumulam sobretudo velhos, gente em tertúlia e tosses inquietantes, a morte, a demografia a decrescer, as solidões gerando perdas e olhares de suicídio, um clima, também, que nos lembra por vezes a tragédia contada por Camus em A Peste. A Casa não é Oran, não tem saída para além do bosque, perde dia a dia o seu ar institucional e as gentes, sobrando, na sua cama gélida, o narrador ferido, um jovem largos anos mais velhos, imaginando ver na moldurada redonda da lâmpada do tecto a face nocturna da lua, o Mar da Tranquilidade, em silêncio absoluto.
Sousa Carneiro