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segunda-feira, outubro 29, 2012

ANOS 60, PORTUGAL, MILHARES DE EMIGRANTES

O EMIGRANTE
Pintura de Rocha de Sousa

Sou um mau curador da minha obra, como se pode deduzir por este blog, no qual eu desejei publicar quase tudo o que fiz em termos de artes plásticas. A verdade é que nunca entendi a arte (a pintura, neste caso) como um campo isolável da vida, das pausas, das derivas, de outras linguagens. Por isso tornei a pesquisa plástica em ponte para outros campos, na fotografia e no cinema, na crítica de arte e na literatura, campo a que me tenho dedicado nos últimos tempos por razões multidisciplinares e de mobilidade condicionada. 
Desta forma, o blog construpintar02 absorveu muitas obras do meu percurso, mas ao ritmo das inevitáveis idiossincrasias, oportunidades, insertos de reflexão e artigos a propósito, aberturas ao processo do olhar e do ver, a problemática da percepção. Por isso o tempo e os factos abordados não respeitam cronologias, antes e sim pluralidades.
Desta vez, com uma viagem no tempo, proponho a publicação de um quadro meu de há décadas, comprado na galeria Judite Da Cruz por um coleccionador americano que vivia em Inglaterra, anos 70, portanto. Este quadro, de técnica mista, fazia parte de uma série sobre personagens do mundo quotidiano, desde os emigrantes que partiam, sobretudo para França, até aos banqueiros, entre muitos outros. Daqui, aliás, é que surgiu a ideia, mais tarde, de realizar a série Personagens Ilustradas, anos 80. Durante muito tempo, procurei o sentido da mensagem, a qualidade dos fenómenos  da realidade humana, a sua condição, os seus Desastres Principais. Tendo um eixo, em todas as hipóteses formais, que ligava o percurso ao longo dos anos, as variações para os restos da catástrofe das guerras e o seu significado político-social, marcas de compromisso com os olhos cheios de imagens e propondo-se como denegação do minimalismo e da cegueira.
O quadro aqui presente (cujo documento eu perdera) foi-me enviado pelo comprador, tanto tempo depois, agora de Nova Iorque. Ele queria falar comigo, o que falhara em Lisboa, e queria, no arranjo da sua colecção e empréstimos a museus,  dispor dos dados curriculares do autor, natureza daquela fase e sentido do próprio quadro. A figura renasce de uma capa que fiz para um livro de Nuno Rocha, França, a emigração dolorosa. Por baixo do rosto e de restos de letras de imprensa, há um mix cinematográfico de mãos escondendo as cartas chegadas de longe ou apontando para a bruma das pontes vencidas até à Estação de Vitória. Na parte inferior da composição, a paisagem rasa e abandonada, sob um céu baço, do Alentejo mítico que também emigrava, embora naquele tempo as saídas (30.000 por mês) eram sobretudo do Norte de Portugal, Trás-os-Montes, Beira Alta, Minho.
Os quadros que são capazes de falar tanto tempo depois nunca morrem. Eles não são uma questão de estilo. São sobretudo expressão, voz, permanência de certas autenticidades.