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segunda-feira, setembro 21, 2015

EDITOR EM EXTINÇÃO, LETRA, PAPEL & ETC | HOJE, 21 DE SETEMBRO, TOMO CONHECIMENTO DA SUA MORTE


VITOR SILVA TAVARES | VER NO FIM

Encontrei este homem, então director editorial da Ulisseia, no Café Monte Carlo. Eu tinha chegado recentemente de Angola e trazia um recado para ele, um livro também, enviados pelo desaparecido Aníbal Fernandes, angolano de gema, filho de Sá da Bandeira. Havia uma «senha» para este encontro, porque eu não conhecia, na altura, o homem da Ulisseia: ele tinha certo livro sobre a mesa e eu transportava na mão outro livro do mesmo autor. Abraçámo-nos e rimos. O gajo era porreiro, embora tocado por uma subtil e sorridente teimosia. Estivera em Benguela, fora director do jornal O INTRANSIGENTE. Sabia de Cinema e de Literatura, era formado nas cadeiras da Brasileira e senhor mais ou menos lasso, como diria Camus, dos bairros como a Mouraria, onde creio que nascera, entre as preciosidades que começavam a desaparecer ao ritmo dos anos 60, com emigração, comunistas clandestinos, gente fina da esquerda inteligente, populares do Bairro Alto e da Lisboa underground, bem à moda do que Paris ainda debitava, e os Almadas, os modernistas, os surrealistas, os primeiros retornados da arte abstracta, "Obra Aberta", o novo cinema, Godard, Truffaut, Resnais, além dos da América, Kazan, Lumet, entre grandes ícones, Brando, James Dean. Mas isto era para gente comum. O editor da revista "&etc", com formação em notário e tudo, grafitava escritas novas, gente que se esgueirava por fora do institucional. O França não cabia ali, mas era respeitado, andara com os ventos do surrealismo e as gares do Almada, fizera a Sorbonne, em Paris, tinha um hífen no nome, ainda é vivo quando escrevo.
Aquele homem ali em cima chama-se Vitor Silva Tavares e sempre trabalhou de esguelha, no modo mais raro, do lado dos malditos, encolhido na sua cave e conhecedor da malta do cinema novo português, dos "Pachecos", "Comunidade" sempre citada como o monumento da nossa Literatura ao contrário, nada de neo-realismo, nem de visionários premiáveis, as "Lídias", as "fofas", as ouvidoras da prática nocturna, avatar, o Vitor cinéfilo, falando lasso, quem dera o Truffaut o ouvisse. Estava-se quase no 25 de Abril, a cave do "&etc" enchia-se de jovens génios a zunir escada acima, escada abaixo. O nosso amigo, que ressuscitou tipografias do início do século XX, vivia a promoção de um futuro indefinido, sob as imagens tutelares de Marx e Lenine, os equívocos da direita ocidental e da esquerda totalitária, sendo a cultura maior nas esquinas das luzes. Mas a empresa Engrenagem & etc nunca reunira uma assembleia geral, na melhor das democracias. Vendi a minha quota por 1 escudo, sem papel nem nada, e disse ao Vitor que um dia trabalharia para a renovação de tal dinheiro, o mundo não ia acabar só moderno, como dissera Gillo Dorfles: ponto final situado na arte abstracta. Burgueses é que não, mas todos, estudantes de algibeiras leves, não fazíamos outra coisa do que ler Existencialistas e fazer os trabalhos de casa, burgueses afinal de uma pobre classe média com pais longe, em casas velhas, provincianos da orla do comércio e do comércio da cortiça em vias de exportação na condição de prancha, matando assim, para travar os comunistas e outros, a grande indústria transformadora desse material verdadeiramente singular, a pele do sobreiro. 
Agora estou velho e raramente vejo o Vitor Silva Tavares, o homem que me encomendou os meus primeiros trabalhos nas artes gráficas, para a Ulisseia. O Público publicou hoje aspectos da vida desse esperto editor: gostei de ler, gostei de o ver posar, já o ouvira botando falas memorialistas na televisão, a propósito do Luís Pacheco, eterno e bem resistente escritor de pequena obra, apesar de coroada pelos velhos amigos das vielas e dos Cafés, «Comunidade» em papel manteiga e livrinho, Contraponto (a exemplarmente austera editora), «A Libertina passeia por Braga», ou quase, um soldado de mão nas virilhas, maldita condição humana. 
Aqui está, Vitor, nunca condecorado, nem sequer a reconhecer-se editor, o homem de uma certa cultura, dos bairros populares, resistente à emigração e às licenciaturas. É bom haver casos destes entre nós, feitos de uma exemplar capacidade do contraditório, sabendo os nomes, os filmes, os novos poetas, inventores do "português suave", vinho tinto verdadeiro, sardinhas, os gajos da memória fundamental, lusitana sem nacionalismo, as margens do Tejo, a luz fria da noite no quente da tertúlia que baralhava as cartas da política caseira, Salazar e a cadeira preguiçosa, lá no forte solitário, em pedra, as tropas indo e vindo para nada.
Pois agora, meus amigos, o Vitor escreveu. Escondido, com coisas soltas, dizia que isso não contava, era preciso refazer as coisas. Toma. Sai um livro de poesia, acho que caído aos pedaços para uma caixinha que alguém guardava, e as palavras viveram. Ricardo Álvaro, poeta, andou de volta e pediu um poema ao homem da Engrenagem. «Sei lá», disse ele. «Estão por aí. Púsias em qualquer buraco. Púsias, aí está, e todo o envolvimento de quem não quer saber o que os jornais tratam de gerar, incluindo a Cruz de Santiago. Porta fora da aula da poesia, é o que é.» Esta é a história de um livro de poesia que é um sobressalto em algum ramerrame da paisagem editorial portuguesa e do editor que o escreveu. Vitor Silva Tavares. É também a história de quem não queria falar do seu livro. Não por isto, nem por aquilo, mas porque não. O editor não queria despir a pele. Não teve de o fazer.
Há uma certa verdade em tudo isto que reinventa as sombrias vidas dos talentos em perda e das indústrias pusilâmines da chamada cultura de ponta. Sem ponta, afinal. A fingir de rica e de luminosa. Vão ver: Púsias ali.

Morreu de facto, enfim, esse grande amigo. Como lhe prestara esta sentida homenagem decidi não escrever outra legenda (agora a confirmar a extinção). Foi notíciada a morte de Vitor Silva Tavares, o criador de &etc, entre outras coisas. Só sei também, como alguém escreveu entretanto, que ninguém voltará a fazer livros como Vitor Silva Tavares os fazia. E sei também que já não vou ter oportunidade de ler o seu único livro, Púsias.

Rocha de Sousa

domingo, setembro 20, 2015

O HOMEM FAZ DA CULTURA O SEU RETRATO E PERDE-SE DE TUDO EM POUCOS MILÉNIOS


Foram muitas as formas que o Homem tomou, a par de outros animais, até alcançar as configurações de várias raças. Na marcha da humanidade, esse ponto de chegada cobria partes significativas da geografia do mundo em grandes continentes. Os povos seguiam longos trajectos na busca da vida e dos modos de progredir dia-a-dia, faziam-se em persistente nomadização, pausas ponderadas, ritualizadas, com manejo de certas escolhas na manutenção dos meios de conservação dos atavios e das peças da comida arrancada à Natureza.
Milhares e milhares de séculos mais tarde, a evolução da espécie ganhava núcleos bem caracterizados como grandes grupos a cuidar de mais tarefas, comunitariamente, numa fase sedentária, inovadora, capaz de produzir lugares de trabalho ou de raiz urbana. 
Mas a grandeza e as manifestações incompreensíveis que alcançavam o  espaço em volta começaram a assombrar os humanos, tendo eles de misturar esse medo com o trabalho de sobrevivência sempre presente, por vezes em revelação de urgência. Os ventos, as tempestades, as catástrofes devastadoras, tudo isso obrigava a fugas para as montanhas, havendo que refazer nas encostas e nos vales outras culturas de bens, os primeiros esboços de lugares urbanos. 
Outros povos encontravam esta azáfama, imitavam-na, tentando apropriar-se das ideias e mesmo dos materiais trabalhados. Das escaramuças assim acendidas se passava a brutais confrontos de povos nação, fios de luta e conquista, maus sonhos que afligiam as populações, forças guerreiras cada vez mais dominadas pelo fabrico de armas, em pedra primeiro, em metais depois, pelos milénios fora, sempre até aos mais sofisticados meios e combate, em terra e no ar ou no mar, de mistura com a concorrência entre exércitos, na conquista e saque de muitos bens, pessoas e ricos ornatos, consoante a era desse crescimento feito de misérias e riquezas, de compromissos e acusações religiosas.
Assim se fizeram e desfizeram civilizações. A cultura dava-lhes um rosto e uma densidade de espiritualidade e sabedoria. Artes e Ciências. Liturgias e deuses anelados no tempo, todos parecidos em duas ou três salvações eternas, entre preceitos  dogmáticos.

Em cima, ao alto, um nicho sem nome, aconchega figuras brancas, angelicais, eventual símbolo das religiões mais mansas -- e daí olham um horizonte indeterminado de despojos, destroços, corpos exangues, ferros, restos de máquinas que foram explodindo ao longo do tempo e dos conflitos e talvez da derradeira guerra global, templos e cidades perdidos em ruínas e depois perdidas as próprias ruínas pelo ódio à sua memória. Um corpo grita em silêncio. Um corpo jaz num resto cúbico, fino dourado coberto pela luz solar enviesada. E aquele homem de há meses, dois ou três anos apenas, simétrico na dor, os meninos mortos e apresentados em ângulo, bandeja de braços sofrendo o sentido daquele número que a pele da vítima ostenta.






O mundo construído foi produtor de saber e de cultura, dados nos quais a civilização não terá nome -- e, verdadeiramente, perderá a própria existência. Perder a civilização e as suas culturas para destruir os seus próprio restos, entre mortes, águas nocturnas, e assim pedindo aos outros, as mãos estendidas, novas terras, novos deuses, tudo ao vento de nada, a mente opaca, a memória vazia, isso confere à humanidade um rápido estado de extinção.


os refugiados na actualidade, tentando salvar-se
da guerra na Síria e do horror espalhado pelo Estado Islâmico

segunda-feira, agosto 24, 2015

FALECEU O PINTOR JUSTINO ALVES - AUSTERO E SÓLIDO

Justino Alves

Morreu o pintor Justino Alves, membro "honoris Causa" da Academia Europeia de Belas Artes. Faleceu aos 74 anos. Este sóbrio pintor, com obra pública e privada, representado em muitas galerias colecções públicas e entre colegas, museus nacionais e estrangeiros, manteve-se sempre fiel a um tipo de construção  abstracta, geométrica, por vezes evocativa da Natureza e do seu mundo vegetal. Ora entre a textura em formas blocadas, ora traçando lisas superfícies de lisas plantas encantatórias, Justino não se entregava à especulação sobre o mundo imaginário, o sonho, as dimensões oníricas. Contudo, a sua pintura primava por uma ordem legível ou intuída em oferta ao contemplador.



Com gente, plantas, espaço, relação trenária cromática, Justino viveu a arte sobretudo nesta medida. Morre agora, como que descansado de uma obra de hoje, sintética equilibrada.

quarta-feira, agosto 05, 2015

MORREU ANA HATHERLY, POETISA QUE DESENHAVA PELA PALAVRA


ANA HATHERLY

Sempre gostei da experiência poética, científica e vivencial, de Ana Hatherly. Não vou fazer a sua história e antecipar tanta saudade. Conversávamos muitas vezes, entre encontros de acaso no bairro onde habitávamos, Campo de Ourique. Ela oferecia-me os seus últimos livros. E, não há muito tempo, eu próprio fazia o mesmo, com obras minhas. Foi uma das poucas pessoas que me leu com surpresa e respeito. Era tentadora a experiência visual da sua poesia concreta, o modo de juntar o visível com a escrita, coisificação inusitada.
Mas, já lá vão muitos anos, Ana fez na galeria Quadrum uma performance que nada ficou a dever à da Gina Pane. Com os cabelos soltos e um traje colado ao corpo, Ana Hatherly enfrentou doze grandes painéis, erguidos em papel de cenário, começando gestualmente a rasgar as superfícies, entre ritmos apaixonados, lentos e de revolta, talvez na marcha de uma vida vencendo as barreiras ou abrindo a visão em profundidade. No outro dia, olhando os rasgões do túnel assim aberto, apetecia atravessar esse espaço, como ela fizera, entre as paredes desvendadas, reiterando a impressão de tudo, no maior dos silêncios, ou abrindo o imaginário aos símbolos e mitos da vida, pelo sulco dos  "desastres principais",


guerrilha entre parênteses
ergue-se da constante chacina
procurando outra coisa
outra causa
o outro lado do ver.

Ana Hatherly, O Pavão Negro (2003)
“Eros frenético” (1968), “Anagramas” (1969),

segunda-feira, julho 06, 2015

VIAGEM ENTRE A SOMBRA E A LUZ


Vivemos uma hora difícil, de miseráveis conflitos e recessão cultural, em praticamente todos os domínios da civilização planetária, talvez da globalização amalgamante dos nódulos que sinalizam o pensamento e a memória. E assim, dia a dia, dentro de espaços cada vez mais fechados na densidade urbana, habituamo-nos a cerrar os cortinados, mesmo os mais leves, para nos defendermos do 14º andar do prédio vizinho, frontal, obstrutor do espaço da nossa janela. O que nos acontece de opressão, neste caso, acontece a milhões e milhões de pessoas por todo mundo. Os meninos defendem-se a brincar com os seus aparelhos eletrónicos, visitando por vezes o mundo inteiro, com as suas guerras e naufrágios sem conta, ou jogando partidas encantatórias de futebol ou de lutas jurássicas. Quando viajam dedilham os ecrãs, enfiando os olhos na passagem de luxos asiáticos ou meninas opulentas, em bikini. Ler é cada vez mais difícil, apesar das escritas se banalizarem por convocação de bonecos disparatados. 
A miséria é mais difícil de explicar, decorre abaixo da própria rua, ou atrás dela, ou escondida nos vãos entre os contentores do lixo e as altas paredes das torres a que chamam arranha-céus.



Dantes, quando os pintores procuravam representar aparências da realidade, os efeitos de relação entre a luz e a sombra podiam lograr instantes ilusonistas como o desta singela fotografia. As fases da paralisação do visível, passavam intensamente, sobretudo na Renascença, por fabulosas imitações da prática perceptiva, embora cada autor se aproximasse cada vez mais de um certo modo de formar, de um estilo, de processos, temas e assuntos desde logo assinados através das características da expressividade — um quadro de Leonardo seria sempre identificável pelo seu modo de ser e de aparecer e nunca pelo tema trabalhado. Há muitas pinturas representando a Última Ceia de Cristo (imagem mitológica que se enquadra na vida daquela figura messiânica); há de facto muitas peças dessas, de autores diversos, acabando por se tornarem do mesmo modo reconhecíveis. Outros. Alinhando pelo mito e pelas muitas fábulas concertadamente enquadradas, diferentes entre si, semelhantes entre si.



Os nossos olhos são aqui desafiados, perante uma certa desordem, a descobrir a verdade (ou essência) das duas linhas claras à esquerda, já que poucas dúvidas terão na roupagem amarelada à direita, em  claro-escuro, acerca do assunto, da luz diurna e da qualidade fotográfica.



Será óbvia a aparência pictórica desta imagem? O olhar chegará depressa a essa conclusão perceptiva? No âmbito da mobilidade visual, esta reprodução fotográfica pode parecer de um quadro, mas a tecitura das manchas deslocam do ilusório tal percepção. Um rapazito de imaginário fecundo, ainda disse que a paisagem mostrava um monte rochoso, do fundo do qual jorrava uma talha de água. Destruída essa leitura pela explicação em pormenor do que ali se passa, tecidos diferentes ondulando dobras doces, e um outro pano brotando deles e mostrando-se num envolvimento em curva, como água plana ao precipitar-se, compacta, no vazio, num jeito que lembra a dobra da queda de água de certo leito pedregoso.
Mas não deixa de ser verdade que o rapazito reinventou bem o real, porque esta imagem, neste mesmo enquadramento, poderia ser transformada numa pintura de média dimensão e ainda muito mais aproximada do assunto indicado, mesmo respeitando a ordem compositiva.

quarta-feira, junho 10, 2015

A LUZ DESACONTECE NAS CABEÇAS HUMANAS


Já nem é preciso falar de Portugal: a velha e sonsa Europa, sobretudo a do Norte, não sabe de História, nem de geografia, nem do sítio onde tem o rosto, aqui mesmo, no nosso país, os olhos fixando o grande oceano que outrora atravessou em vários sentidos. Arranjaram quem nos apertasse nesta União com tratados empedernidos, poderes enviesados, uma austeridade que não é espartana, nada disso, é sobretudo vampírica, egoista, todos de costas voltadas na mentira dos dias e dos anos, a finança a mandar nos deuses e Sísifo condenado ao transporte da grande pedra -- um destino, a alucinação e o non sense de um futuro manietado para nada, a parede amanhã, ou seja, os espaços sem fim que nunca poderemos percorrer.
Há dias, consciente do meu corpo envelhecido, quase inerte, deixei-me apanhar pela televisão. Pensei: vou ver. Olhei mas quase não vi nada. Estavam a dar publicidade, em vertigem da imagem e do som, coisas curtas, salvações, benefícios obviamente falsos, produtos gananciosos, e carros, muitos carros, vícios consumistas, conduzidos por belas mulheres ou medusas encantatórias, os cabelos feitos de serpentes coleantes, cegando tudo em volta. Revoltei-me, senti medo e nojo, mudei de canal: também havia um carro parecido com as naves de Flash Gordon. Uma mulher incandescente deslocava-se pendurada dessa máquina, tudo suspenso no espaço"interstelar". O «carro-nave», assim anunciado, rugia acima da  capacidade humana; e eu achei, mais uma vez, que a pornografia também se pode imaginar assim, pelo que resolvi procurar outro canal: o ecrã estava negro e logo apareceu um ponto vermelho ao centro, aumentando de escala, acompanhado por um som estridente insuportável, alcançando uma forma azul circular, sobre a qual, então à escala de toda a janela do televisor, se iniciou a propaganda para incidentes de incapacidade eréctil. Olhei para o comando e pressionei um vulgar canal de serviço público (como lhe chamam): lá estava uma rapariga contorcionista, em cores de Alice no País das Maravilhas, a depelar electricamente certos excessos como pó de Talco, enquanto a câmara circulava do pé à coxa e um homem susurrava... não se esqueça, apenas uma hora antes do acto sexual. Desta vez não decidi nada: deixei o olhar pendurado no ecrã, pensando vagamente que daí a pouco esta proibitiva cartelização dos anúncios em todos os canais, coincidência arrogante e humilhante da mesma acção e até com critérios semelhantes no tempo ou na forma. Não sabia o que vinha a seguir, mas sempre imaginei que poderia ser o noticiário ou a primeira novela da noite. Mas não era assim. Este intervalo publicitário em todo o espaço televisivo português (teriam as populações do norte europeu razão?)



Se as pessoas aguentavam este massacre ao longo da noite, esperando eventualmente o início de um novo programa (e sem protestar por telefone ou por tribunal, evocando possíveis leis aplicadas à comunicação social), então toda a gente desacendia a sua luz dos olhos ou da própria consciência.
Apesar de tudo, fiquei à espera. No canal em que estava sintonizado, a publicidade continuava com toda a sua agitação num tempo irreal, exactamente a par dos outros canais e até subcanais. E de súbito apareceu o título de uma novela. Não começou logo: foi  preciso anunciar primeiro os negócios ou produtos que davam apoio «À PRODUÇÃO». Fui atacado de ansiedade, parti um copo antes de conseguir beber água e deixei-me ser atacado pelo genérico (péssimo) da tal novela, qualquer coisa no género de «ÁGUA SALGADA». Encostei-me. Semi-cerrei os olhos. Os actores funcionavam razoavelmente, a fotografia parecia-me bem, mas a banda sonora encarniçava-se contra mim, tornando-se notada em todas as sequências, e até cenas, mas esteticamente (pela natureza das músicas usadas) canções esganiçadas, a contar a história da história visível, comendo o ruído local, matando os esperados silêncios num olhar demorado em espanto, por exemplo. Lembro-me desta mistela feita pelos brasileiros. Mas nós temos uma cultura e uma aprendizagem próprias.
Fui à cozinha buscar outro copo. Comi, de passagem, uma fruta e voltei para a sala. Peguei no jornal. Li "o caso da pulseira do Sócrates". Espiolhei a tragédia da Grécia, com aqueles homens rígidos negando tudo, apertando, ameaçando em surdina (imaginei) que os gajos estavam a pedir uma saída da zona euro. Por causa da palavra lembrei-me do filme  "Stalker" e da famosa «Zona» de eventuais mistérios da tirania dos homens e de Deus.
Na televisão continuava a novela. A família não se entendia. Uma rapariga viera do Dubai saber da filha roubada à nascença. Encontrava, não econtrava. Impingiram-lhe uma a fingir. Depois foi o horror de tal pecado... não sei bem, porque talbém havia um filho roubado, morto havia já dezasseis anos, talvez não, uma troca de meninos, o filho da moça ainda estaria vivo, era preciso procurar. E procurar com gente vil, com quem ela já separara as águas, e assim por diante, os maus, os bons, uma salsada de argumento, a passar diante do nosso pasmo, perto de uma hora -- e sem cortes de publicidade!!!!
Mas a lógica não tem aqui cabimento, talvez uma ponta cínica de estratégia. Depois de mais vinte minutos de propagandas e dietas e carros, outra novela. Fui à procura de notícias: Só havia mesas cheias de marretas a discutir futebol. Futebol que concorre com a publicidade. Nunca houve tanto futebol e suas intrigas como o que acontece agora nos canais televisivos portugueses, desacendendo a luz da cabeça e do bom senso. 
Mais tarde, o canal que me puxara pela adrenalina apareceu com uma novela brasileira, a terceira da noite. Era um exercício curioso, com um argumento meio sério, meio comédia, a lembrar a literatura fantástica sul-americana.  Um pouco a medo, segui  o episódio em curso, atendi a certos estímulos, mas, após cinco minutos depois do começo, um corte de publicidade. Berrei. Dez minutos depois, a ficção brasileira voltou. Não era erro de edição. Era a inteligência e a ganância da equipa sei lá de quem. Peguei outra vez na belíssima interpretação da personagem principal. Estava a seguir, com curiosidade, como ele agia e como eles moviam os meios. Corte. Publicidade outra vez. Fui à casa de banho molhar os olhos. Voltei: todos os canais estavam enleados na publicidade. Levantei-me, a caminho do quarto. à saída da sala, os brasileiros entraram em campo. Se calhar (pensei) isto agora tem a temporalidade capaz de respeitar os blocos sequenciais e os racords até aos pontos inamovíveis.
Pois enganei-me. Durou tudo muito pouco e a publicidade passou a fazer-se em ordem a cenas das várias novelas e dos próximos episódios.
Eu acho que é preciso legislar sobre estas coisas. Meter um director de programas em prisão preventiva, por exemplo.

     Desacendem a luz em todos os planos da realidade nacional, é preciso chamar a polícia e elevar à condição do século XXI as coisas da arte e do saber.

sexta-feira, maio 29, 2015

CIVILIZAÇÃO MORRENDO ÀS SUAS PRÓPRIAS MÃOS

parte de uma aldeia portuguesa onde morreu há pouco tempo
o seu último habitante


Belíssima e patética imagem, a deste trecho no limite de uma velha aldeia portuguesa, no norte, onde já houve crianças e vida comunitariamente bem resolvida, numa vida feita de essencialidades e de trabalho organizado e partilhado por todos. Foi ficando desabitada, como o próprio país, agarrado fanaticamente ao litoral e às praias em desaparecimento; nesta ilha por fim de pouca gente, restando então um só habitante, que sobrevivia da terra e haveres comprados de quando em quando; um homem de quase 90 anos morreu há cerca de dois meses, segundo julgo saber. Melhor seria que fosse ele o único a ir para o Panteão.

Um amigo meu, dos dias longos, perguntou-me: «O que te leva a matutar tanto nessas coisas, a terra sem gente, a população deslocada, as aldeias  mortas?»
Faz tudo parte da mesma coisa: o mundo inteiro, sob o impacto da globalização e das lutas absurdas a par das que matam grandes instituições que fazem consumir inutilidades e amarram os homens à restrição, pelo consumo, dos meios de compra.
«Mas isso não será natural? Muitas civilizações morrerem por si ou acabarem com elas?»
Isso mesmo. Mas não era necessário que tivesse sido assim. O mundo poderia, por uma lógica dos bens e dos consumos, ter-se transformado num oásis de todos. Algumas descobertas foram, desde logo, postas ao serviço da diferença pelo poder, pela divisão entre os povos, logo viradas contra si mesmas. O fogo, o uso da água, o carvão e o petróleo, as invenções produtoras de comodidades alucinatórias e desde logo poluidoras da atmosfera e das espécies vivas -- já em crise, no limite, quando se perceber como os automóveis têm de parar, o sol tem que ser usado, o vento, os mares, na busca (em vias do apocalipse) de travar a morte da vida, toda a vida, quase ao ritmo dos filmes catástrofe que os artistas souberam anunciar, ainda que para gastar mais dinheiro sem pedagogia e alimentar os favores da raiva e das mortandades, cheiro das mortes que avassalam territórios imensos.
«Acho isso tudo um pouco pessimista.»
Não julgues. Pensa. Como combates a transformação arrasadora do clima, um pouco por toda a parte? Ou se te inquietares quando proibirem o uso de carros a gasolina, à escassez da água, à perda de milhões de vidas, entre velhos e por alianças, numa derrocada esquisita do chamado equilíbrio demográfico.
«Isso nem me parece  defensável na pior literatura de ficção científica.»
Olha lá: gostas de futebol?Fazem o mesmo ao mesmo tempo.
«Claro que sim.»
E achas justo que todas as televisões do mundo gastem mais de 30% de tempo de emissão para cobrir violentas partidas de futebol, com 70.000 a 100.000 espectadores? Porquê e para quê esse excesso industrial e as corrupções envolvidas?
«Estás a exagerar.»
Quem exagera é o Médio Oriente, Israelitas, Palestinos a quem é negado o seu próprio Estado. E por ali, um novo Estado autoproclamado, o Islâmico, que retorna à antiguidade, pratica os mais brutais assassinatos colectivos, covas ao longo de estradas, inimigos raptados e degolados, levados em vídeo a todo o mundo?
«Os americanos provocaram muitas assimetrias com as guerras no Iraque.»
Pois sim. Ninguém estará impune. Mas os cristãos, há mil anos, empurraram para o sul a civilização árabe, e foram longe, omde eles se acolheram, mouros em massa, para os matar e saquear na onda de fanatismo das Cruzadas.  A vingança do Estado Islâmico, mil anos depois, não tem sentido. Nem o modo como se imaginou a Europa de hoje, utopia da solidariedade, e vê o que fazem, o poder e a arrogância dos povos do norte, a tendência, já antiga, do mando germânico, o pecado do dinheiro, a recepção dos emigrantes de África -- aquela que os habitantes nativos diziam: África é dos africanos. Agora fogem dela. Nativos eram todos os nascidos lá duradouramente.
«Não percebo nada do que estás a dizer. O que te leva a dizer essas coisas?»
A situação por que passa o planeta, o cheiro da morte. Pouca gente sente porque quase toda a gente se deixa seduzir pelo consumo, pelos jogos de "vanitas", pela cultura de massas, tudo o que vai afundando o que foi, até há décadas, a grandeza do espírito humano.
«Andas a ver muitas histórias.»
Não vejo histórias, nem quase nada, porque a comunicação visual está conspurcada. Telemóveis, encerrados como armazéns tablets, computadores, colossais cadeias de televisão. Televisão que suspende um conteúdo de vinte minutos para emitir durante trinta chispas de publicidade ruidosa, intolerável, proibida -- e o pior é que todos os canais das várias emissoras fazem exactamente o mesmo, ao segundo. Esta cartelização, durante 24 horas, é crime reconhecido e ninguém faz nada: chega a haver mais tempo de publicidade do que tempo de conteúdos, os quais, por sua vez, deixam muito a desejar. Chama-se a isto delapidar a consciência, a razão, e a capacidade criativa dos sentidos. E é o que acontece um pouco por toda a parte: as cidades são mais lixo, luxúria de inutilidades modistas, má arquitectura e maus espaços colectivos, hipermercados que caiem com um sopro de vento, desmantelados pelo interior da origem dos seus produtos e jogos de dinheiro. Tudo se perde assim, entre barbas de séculos anteriores e ganga, muita ganga, calções, pernas das primaveras a fingir, sem transportes, sem equilíbrio dos ruídos, sem cinema; ou com cinema de caixa, onde meninas de calções e sapatilhas comiam pipocas sem parar, imunes ao barulho imenso com que os projeccionistas bombardeavam belos filmes. Os Cinemas de centros comerciais e coisas assim deviam ser destruídos ou fechados. Se se respeitam as igrejas e outros templos, porque razão a sociedade banaliza e conspurca os locais onde se contempla a arte, todas as artes, vendo, ouvindo, conversando. E já é tempo de se combater o "Desacordo" ortográfico com que se está a destruir a língua portuguesa, tão falada pelo mundo. 


Quem é que se salva deste tsunami humano, gritante, moribundo, fugindo ao seu próprio excesso

terça-feira, janeiro 13, 2015

DEUSES LAMINARES DEGOLAM MUNDO GLOBAL




os mortos, depois de mortos, 
nem sequer ficam sós


Ninguém sabe se Deus existe e de que morte padece o homem, o crente do nada. As fantasias que tecemos à volta das nossas percepções, a qualquer hora do dia, são apenas um enquadramento do visível a tornar-se real. Tudo é tanto que precisamos baixar a guarda, deixando mergulhar as mãos, a sua prece, a sua espera. Mas as coisas em geral são reanimadas, um jornal aparece na mesa, os dedos enfim tocando na notícia, inquietos, ou daí a pouco voltando essa primeira página, fazendo aparecer a seguinte, quase sempre o olhar a deixar-se seduzir pelo rosto à direita, vendo os bocados da composição.
Hoje podemos fitar longamente aquela fotografia: quatrocentos e cinquenta mil curdos em fuga, atravessando a fronteira da Turquia, deixando atrás de si um rasto de corpos decapitados e crianças esmagadas, cemitério ao sol e sob o brilho das adagas dos islamitas radicais — um Estado absurdo, religiosamente alucinado em pleno século XXI, contra velhas fronteiras, outras etnias, o Ocidente inteiro. As novas tecnologias abriram para todo mundo a realidade em tempo real, as explosões e as ruínas, as guerras em efeito dominó, metade do Iraque em estilhaços, a Síria destruída, o Irão vigilante, a Ucrânia violada por ímpias invasões de rebeldes de carnaval, Putin sorrindo entre as enormes portas douradas que se abrem à sua passagem. A Rússia anexou a Crimeia, acompanhou mais dois roubos de território  a leste. Combate-se por lá, de forma estúpida e logística encerrada em camiões humanitários mandados por Moscovo, filas deles, todos forrados com lona branca. Sem letras. Sem números. Sem nota de origem nem títulos de guarda.
Esta grave crise internacional, ricochete das várias bolas de neve que simbolizam as diversas promiscuidades da globalização, internacionalidades sem fronteiras, transportes de todos os tipos atravancando o espaço das vias, vem rodando a roda dos negócios ou negociatas, roendo o perfil dos princípios e ajudando a sepultar valores, vidas, indústrias, culturas. Tudo o que povoara o mundo nos anos 60, a Europa sobretudo, gente como Sartre, Camus, Huxley, Bergman, Tarkovsky, Antonioni, entre muitos outros, os poetas, os músicos, um solene respeito pelo grande património gerado nas épocas mais longínquas, tudo isso começou a desfazer-se em vagas silhuetas, obras descartáveis, novas tecnologias resvaláveis e sobretudo um abaixamento dos níveis avançados, em excelência, durante quase todo o século XX, desastres rasgando  os caminhos reais do futuro. E agora, à entrada desse futuro, as crises anunciam, cada vez com maior despudor, o insucesso dos grandes projectos e o valor de sustentação vindo das metas superadas pela ciência ou pelas artes. Podemos agora imaginar Picasso substituído através de aleatórios desenhos soprados em tinta pelas bocas de pequenos robots, de forma ocasional ou em telecomando. Tais alternativas, a par dos minimalismos obsessivamente radicais e outros inusitados modos de formar, abrem à criação plástica um verdadeiro universo imensamente tolerante para com o gesto e a mancha, instalações perecíveis, novos mitos, outros génios sem conta, tudo cada vez mais descartável ou preso a grandes cadeias produtivas focadas na indústria das artes, como conservas de raízes, marcas, sinais, coisas intercoláveis, capazes de tornar a variação do espaço habitado uma paisagem infinitamente massificada pelas escolhas do efémero.



    poder e ser sem ver? o futuro o dirá


Nenhuma civilização, desde que a História se tornou ciência, e no momento do seu ponto mais significativo, resistiu ao descontrolo daquelas relações, depois de ser e ter, ver e fazer; todas elas, em tais circunstâncias, após cumes de iluminação, entraram em falência, começando a desistir de grande parte dos seus objectivos, deixando-se seduzir por maneirismos prosaicos e preguiçosos, pensando cada vez menos na conservação das obras ou dos pensamentos fundamentais da sua génese. Foi sempre assim, genericamente, fragmentando-se ou não, desinteressando-se das regras, do sonho e dos seus próprios contextos técnico-artísticos.
Essa terrível sinopse, além de apontar para longas análises e buscas sobre as mais importantes civilizações que nos precederam, corresponde afinal a uma grande parte dos desastres principais acontecidos na idade contemporânea. Desde as guerras mais remotas às duas grandes guerras mundiais do século XX, o desrespeito da entidade humana e dos seus direitos (hoje consagrados mas sem resposta), ultrapassou a medida, mesmo genérica, da vida em comunidade, abrindo processos de retrocesso um pouco por todo o planeta, entre latitudes muito diferentes, com dinheiros assimétricos, quase um século depois de terem sido destruídas em breves segundos, com apenas duas bombas atómicas, duas significativas cidades no Japão, país na altura ainda em guerra com as forças Aliadas, fundamentalmente os Estados Unidos da América.
Mas toda a cultura que se formara e condensara por volta do século XV, no benefício da expansão territorial e oceânica, salpicada das memórias antigas, conjugando tais imagens, tais ideias, tais benefícios do ver e da representação com outros planos de pesquisa e descoberta, atingiria o século XIX num plano de abertura ao planeta, aos utensílios e obras de arte, ou numa espécie de esboço para o que podemos chamar de primeira globalização. Isso fez-se na trajectória da ocupação de mais terras pelos novos impérios, contendas quanto aos direitos de chegada e usufruto, povos locais manietados à crença de um trabalho que lhes era retirado das mãos, rotas comerciais sinalizadas por fortalezas, interesses cruzados ou trocas que provocavam depois importantes circuitos por essa Europa fora, migrações de trabalho ou crença. As catedrais românicas foram passando ao gótico, entre configurações em altura, como se tais agulhas significassem a ligação a Deus e muitos soubessem que a fé católica, dominando as nações, precisava cada vez de maior presença, de maior fascínio, feita da raridade dos efeitos, talvez milagres — enquanto a submissão das massas de camponeses, a par dos artesãos, dos pedreiros, dos afeiçoadores da madeira, da pedra, do ferro, dominava a própria luz solar através de hábeis tratos de refracção pelos vidros de cor justapostos ao jeito das grelhas de chumbo, porventura na ambição de evocar os milagres dos santos representados ou estrelas, rosáceas, o movimento nos olhos de quem se imobilizava em contemplação.
Com o advento das comunicações à distância, por meios virtuais ou perto disso, essa época florescia de complexidade e de forças de tensão entre nações, entre os próprios continentes. Os génios voltaram então a ter nomes ligados à raridade do seu pensar e do seu fazer, pulsando imaginários acima dos generais que se recordassem das legiões de outrora, dos ocupantes e dos escravos que lhes preparavam sulcos de segurança pela terra fora. Agora, vencidas as distâncias marítimas e terrestres, aperfeiçoados os meios de comunicação à distância, tudo se estende em rede; tudo o que nasceu com a revolução industrial,  cujo doloroso parto perante muita da sua rusticidade nos meios mecânicos foi bem dolorosa, apesar da sua rápida abertura aos automatismos, às cadeias de montagem, à invenção de outras necessidades, umas após outras em ordem aos comércios, às trocas em massa. Falava-se em evolução tecnológica, depois de novas correlações, construção urbana, vias férreas e estradas asfaltadas, domínio dos ares, ainda maior que todos os outros quanto à velocidade, as máquinas futuristas, as armas propriamente ditas rondando fronteiras e grandes espaços onde se adensara a população, as classes sociais, a luta de interesses numa vasta competição em que os sonhos da expansão globalizante pareciam ranger políticas de ruptura, sistemas políticos paralelamente diferentes e semelhantes. Os génios modernos, no pensamento das variadas disciplinas do fazer, questionavam também a vida humana, a condição humana, vigiados de perto pelos falcões ávidos de máquinas  militares, incluindo navios de guerra, meios aéreos de velocidade supersónica e mísseis inteligentes. Uma enorme força surda, do alargamento do poder, como durante os dois grandes conflitos mundiais, com dezenas de milhões de mortos, parecendo placas téctónicas em vias de choque. Tudo suspenso  como nos instantes que deverão preceder o apocalipse. Tudo assim, apesar da violência do clima na Terra, o Homem como que subordinado ao efeito de inferno que alienara no espaço, pelos céus, oceanos e recursos de sobrevivência, a esquecer os recursos naturais limpos, não os fósseis e outros de química bem perversa.
Se as tecnologias permitiram cuidar da saúde humana, os lixos que produziam eram veneno, alastrando do ponto de abandono às plantas e aos rios freáticos. Como tal, outros fornos de aquecimento, a obstrução da vida pelas metrópoles cada vez menos modernas pela multiplicação anárquica das obstruções mortais, produzindo nas pessoas em geral dependências recessivas: a arte morria entre décadas, os eventos massificantes, alucinatórios, ocupavam em grandeza e quantidade baldios onde já se habitara a céu aberto, como nas praças e colunatas do século XX. A multidão, representando-se por milhões de desempregados e a depender de sistemas financeiros sofisticados em termos de corrupção, o dinheiro a circular entre esconderijos e brotando nos jardins dos multimilionários que a indústria produzia, ano após ano, respostas a necessidades fúteis, imaginárias, sobretudo como método insensato de levar à decadência (profunda) a todos os excluídos do processo que caracterizava esta outra Idade Média. Não havia castelos feudais mas havia uma nova espécie de feudos. E cidades inteiras meio abandonadas, com milhares de prédios rasgados em altura, por fim vazios ou explorados por alguns vagabundos: assim foi Detroit, entre outras, depois de abrir falência, procurando reagir às ruinas da grandeza através de estranhos créditos a par de pequenos negócios, vendedores passivos, dois dólares por dia, trocas tristes, olhares baços. Nesse lugar, como noutros, a magia cultural descia ao nível do vandalismo, paredes pejadas de graffiti a iludir degradações, vãos abandonados, como se a técnica spray, amplificada, pop ou realista, pudesse apagar todas as grandes memórias, os grandes edifícios, a Renascença e os artistas da sua pintura amplamente consagrada aos valores da religião e aos mitos do espirito. Artesãos e artistas já velhos ou solitários perdiam-se na miniatura da sua produção, apesar do fascínio da ideia milenar que pareciam convocar.




O Médio Oriente incendeia-se numa espécie de Primavera do amanhã, rapidamente confundida por fracturas entre a irmandade muçulmana, os árabes das fortunas do petróleo, os talibãs que matam para que o seu império seja um espaço sem cor, sem artes, cego e surdo, sem nada, mulheres tapadas. Al Quaeda polariza-se em mortes de alguém. Os islamitas radicais querem terra, contradizem Alá e degolam os inimigos vencidos, enquanto a novidade de 2015 já nos conta que crianças de dez anos, cobertas de explosivos que se detonam à distância, desaparecem no horror entre multidões encharcadas de morte e sangue. Falta só clamar pelos novos profetas e crucificar um Cristo virtual.