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sexta-feira, novembro 28, 2008

O BAZAR LABIRÍNTICO DA VIZINHA PATRÍCIA





Pisei o degrau da entrada e fiquei estarrecido por me achar de súbito num interior com- pletamente cercado de uma variedade incontável de objectos vulgares de consumo, coisas utilitárias de metal e de plástico, de madeira e tecidos industriais, máquinas de café, chaleiras, bóias floridas em pleno Inverno, baldes de folha, zincos, candeeiros aprisionados na sua estética das duas assoalhadas, esfregonas, escovas, faqueiros, pentes, cortadores de unhas, espelhos com molduras barrocas, pequenos móveis para casa de banho, sanitas, tampas de sanitas, gambiarras de três e seis lâmpadas, velas finas e gordas, vermelhas, amarelas e brancas, tintas de esmalte, fichas eléctricas, sachos de jardim, tapetes para o banho, fio de nylon, maçanetas para portas fingidamente antigas ou recorrentes, pássaros de brincar, prateleiras de vidro, toalhas turcas, brinquedos a corda e com pilhas, machadinhas de madeira e ferro temperado, tabuleiros para chá, tijelas, quebra-nozes, panos para a louça, acendedores de gaz, trinchas, pincéis, pratos de barro e em cerâmica da Secla, chávenas de café, banheiras de menino, meninos para meninos - «Vizinha!» Latas cairam lá para o fundo e ela apareceu do fundo de uma floresta inenarrável. Vinha a defender-se do aperto das coisas e eu olhei para trás e já não vi a porta, só paredes em volta de materiais diversos, do chão até ao tecto e no próprio tecto. Vinha devagar, obesa, sorridente: «Então vizinho, que é que vai desta vez?» Pensei que, naquele labirinto forrado de bugigangas, não havia lugar para pedir só uma coisa e uma coisa menor. Reagi à crescente sensação de claustrofobia e pedi: «Queria um rolo de nylon, daqueles pequenos e uma lata de tinta plástica, branca». Ela sorriu de forma mais larga. «Por acaso, desta fez não tenho nada disso».

quarta-feira, novembro 26, 2008

RESGATE DE UMA PINTURA DOS ANOS 70


Como já se percebeu desde o início, a minha obra, nas várias disciplinas aqui citadas, nunca foi ordenada por arquivos, códigos identificadores, acervo de artista. Há séries tratadas e estudadas, mas há também centenas de obras plásticas dispersas pelo país e pelo estrangeiro, sobretudo vendidas através de galerias, cujas propriedades não se encontram catalogadas, nem a indicação de qual foi o comprador, além de minúcias técnicas por vezes muito importantes. Certas pessoas que têm estudado a minha produção como printor desde os anos 60, conversando comigo, ofereceram-me reproduções de peças cujo rasto eu perdera (embora me lembrasse da sua forma), facto este que, além de insólito, se ficou com frequência a dever a teses de mestrado e de doutoramento. Dirão os que lerem estas notas que esta indisciplina é inaceitável, seja qual for o verdadeiro valor das obras. Mas ao certo, o meu projecto não era do de tornar pública uma carreira, ter confiança em tudo o que fizesse: se figuro nos dicionários da pintura portuguesa é porque alguém cumpriu o seu dever. Por mim, seria difícil andar esgaravatando o meio, as influências, entre galerias e editoras, a fim de edificar um edifício pluridisciplinar que acabou por estar suspenso por aí.
Esta peça fazia parte de um conjunto trenário, em acrílica, e decorria de uma outra série inspirada nos desastres rodoviários e outros. Toda a minha obra plástica, ou grande parte dela, releva (ou ainda releva) da conturbação do mundo, espaços estilhaçados, desastres principais, como sempre achei por bem nomeá-los. A par de outros, com a mesma orientação, mas conotados com outras catástrofes, as interiores, as da condição humana. Talvez este blog, até ao seu termo, possa delinear um percurso multidisciplinar e assinalar notícias (sem cronologia) de muitas obras, de uma diversidade de projectos consertados em torno destes polos de coerência.

sexta-feira, novembro 21, 2008

TALVEZ UMA DESERTIFICAÇÃO ANUNCIADA


Este livro, alegoria inquietante povoada de gente envelhecida e alguns traumatizados da guerra, começa por nos sugerir um espaço invulgar, entre próteses arquitectónicas improváveis e a quase prosaica imagem de um centro de acolhimento votado sobretudo à terceira idade. Como que saída de um passado indeterminado, não propriamente longínquo, A CASA mergulha numa paisagem exterior sem limite, após jardins mal tratados e vedações atrás de vedações, acrescentada, através dos tempos, de novos pavilhões geminados ao estilo inicial, na urgência de uma demografia trabalhosa, gente meio perdida, pessoas solitárias e sem memória, ali procurando conferir ao resto das suas vidas um resto de dignidade ou de conforto. Mas a imagem do mundo infiltra-se nesta multidão acossada por muitos problemas de saúde, de abandono, restos de retratos amarelecidos, talvez segredos de família, porventura afectos guardados em vulgares caixas de cartão.
O quotidiano desta população, na sua diversidade e grupos mais relacionados, enche de tumultos iniciais estas páginas, numa relação complexa entre cada pessoa, cada saudade, e as regras de serviço, as enfermeiras e auxiliares que fazem por dar uma continuidade razoável aos velhos, a meio das refeições, tratamentos, conversas patéticas, e também a presença ainda forte (mas abalada) dos «hóspedes» mais novos e cuja mente parece gravemente afectada pelas sequelas da guerra ou pela batalha das grandes cidades.
Narrativa visualmente apelativa, antropológica, marcada por uma sociologia do sofrimento, este romance faz-nos reconhecer ideias e perdas contemporâneas, aproximando-nos da condição humana no quadro de uma espécie de desertificação anunciada.

sábado, novembro 08, 2008

O DESTINO OU O QUEBRA-NOZES ESQUECIDO


O quebra-nozes ficou estendido, imaculado, sobre a mesa. Que faz aqui o quebra nozes? Não sei, há anos que não vejo esse instrumento, devia estar guardado numa das gavetas da cozinha, presumo. Nesse caso, e dada a natureza do objecto, seria natural que tivesse sido abandonado lá, por desatenção, onde de resto falta qualquer indício de cascas, ou de miolos, ou nozes inteiras em algum sítio adequado, não é? Pois sim, aqui é a sala de jantar, a mesa costuma ter uns pratos ao centro, flores, ornamentos. E só temos, meio aberto e limpo, o quebra-nozes? De facto, parece uma nova decoração, algum devaneio, uma ideia atípica. Tem a noção do que está a dizer? Porquê? Porque encontramos duas nozes, aliás velhas, num racanto da arrecadação. Mas qual arrecadação, qual coisa, eu tenho aí um armário do próprio andar, cheio de coisas sem préstimo, latas, um azeite creio que rançoso, caixas da aparelhagem, nada mais, há anos que perdi o hábito de vasculhar nesses sítios, as gavetas empenadas, o vão bolorento onde assenta a placa do lava-louiças e do fogão, ou mesmo aquele espaço além, no recanto entre portas, as malas de sempre, cheias de pó, tenho lá paciência para subir ao pico do guarda-loiças, loiças velhas, rachadas, uma salva de prata que foi a única coisa que sobrou para mim, a única lembrança da avó, coitada, santa, irrepreensível, cheia de sardas nas faces descaídas. Sei lá dessas coisas? Mas o senhor é inquilino desta casa. Inquilino já nem sou. Fiquei por aqui, ao deus dará, lendo outra vez alguns livros e jornais antigos, jornais do tempo da revolução, deixo tudo em monte, até copos e pratas usados há cerca de um mês, sofro de reumático, tenho artroses, a reforma mal me chega para o pão, te-nho a água e a luz cortadas, sabem como é, sabem como estes sacanas tratam os velhos, e ainda querem subir as rendas, abater a varanda donde já não se pode ver a rua, nem a rua nem os vizinhos, sem o pássaro na gaiola, os pardais a apanhar restos, sei lá das nozes, nunca comi nozes na minha vida, pareciam miolos de rato, esse quebra-nozes, se é daqui, vem do tempo da minha mulher, que deus a tenha em descanso, gostava de comprar coisas novas, muitas coisas, ainda podem ver aquele móvel castanho, rachado, bem cheio de roupas e caixas de cartão, algumas com chapéus dos casamentos e assim. Vamos lá calar, o senhor quer é dar voltas ao destino. Destino? Mas os senhores não vêem o meu destino? Esteja calado. Conhece aquela mulher? Não sei bem, não vejo bem daqui. Ó António abre a luz e traz a mulher para aqui. Conhece ou não conhece? Ah, minha boa Teodolinda, que é feito de ti? O senhor sabe bem melhor do que ela: não vê aquele dedo entrapado? Aquele dedo foi o senhor que enrolou num lenço e partiu com o quebra-nozes.