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terça-feira, outubro 02, 2007

A PREPARAÇÃO DE TODOS OS SONOS

Lembro-me perfeitamente dos dias em que a minha avó insistia em passar a ferro, tomando conta das roupas secas e dos lençóis. Era uma mulher aparentemente frágil mas de uma grande força física, de uma bondade indescritível. Falava sempre a meio tom e dizia-me que, depois de partir, eu ficaria com o relógio dela, na obrigação de o manter sempre a trabalhar, pelo que me ensinou diversas vezes os modos de limpar a máquina, o cuidado com os óleos e as duas poderosas chaves. Era eu menino e já me treinava naquela missão, fazendo muita força para que as chaves rodassem até prender as cordas. «Avó, e se o relógio pára, mesmo com com corda»? E de cada vez que eu fazia esta temerosa pergunta, ela responndia: «Ó filho, vais depressa chamar o sr. José relojoeiro e ele destrava o empanque». Por mim, ficava perplexo. «E é preciso ir depressa porquê?» És um neto muito falador: então não te expliquei já que enquanto o relógio trabalhar eu estarei viva no céu. Se parar muito tempo, será como se eu estivesse doente, pronta para morrer de novo e de verdade».

«Avó, o senhor José diz que tem que levar o relógio porque se partiu uma corda e é preciso substituí-la. Vão ser pelo menos seis dias. Como é que se faz?» E ela, passando a ferro os toldos do jardim: «Não te preocupes. Eu estou viva e ainda vou durar alguns anos, mais do que os seis dias de que o senhor José precisa».

fotos de rocha de sousa

Esta camisola foi toda feita pela minha avó. Visto-a no Inverno. Só não me conformo com o facto de ela ter morrido dois dias antes daquele minúsculo prazo de arranjo do relógio. Não sei onde ela esteve nem se ficou muito doente. Fui a correr à oficina do senhor José e gritei-lhe que a minha avó tinha morrido, embora estivesse de boa saúde. Ele olhou-me fixamente, com os olhos brilhantes e os dedos afagando devagar as barbas. «Tens que ter paciência, menino, a tua avó sempre gostará de ti e tomará conta dos teus dias». E eu: Para que isso aconteça é preciso que o senhor arranje urgentemente o relógio». «Porquê?» «Porque ela me disse. Se o relógio estiver parado muito tempo, a avó acabará mesmo por morrer, longe, naquela terra para onde a levaram.» «A tua avó já morreu, não volta a morrer, mas Deus chamou-a para ela ajudar melhor a família» «Não, senhor José, se ela morrer agora, por causa do relógio parado, vai morrer mesmo, vai morrer para sempre».

4 comentários:

naturalissima disse...

Fiquei sensibilizada com esta bonita história.
As fotografias dão um toque especial... Gostei muito tio meu.
Pouco tempo me resta para melhor comentar. O tio sabe como tenho andado.

Agradeço a vista que me fez na "LIBERDADE"

Um beijinho aos dois pombinhos ;-)

M. disse...

Uma ternura.

jawaa disse...

Menino feliz por essa avó tão doce. Vai sempre aconchegá-lo no frio do Inverno, ainda vive consigo. Ela sabia.
Curioso, meu pai também estabelecia uma qualquer relação entre os relógios e a vida; não queria nenhum parado em casa.

fernanda f disse...

Muito lindo este episódio da sua vida e muito ternamente descrito.