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quarta-feira, outubro 15, 2008

NOTÍCIA DO SANGUE ROUBADO, PRAÇA MAIOR


A rapariga estava deitada num divã estreito, a um canto de uma cave de paredes sujas e cartazes rasgados. Havia papéis no chão, roupas salpicadas de sangue, uma mesa rolante, de esmalte falhado, com o tabuleiro superior cheio de instrumentos cirúrgicos, em monte, entre bocados de algodão molhado numa espécie de tinta azul. Metais a revelar cortes no corpo de alguém, fios vermelhos escorridos, compressas, um suporte junto da parede com o seu gancho e o depósito para o soro ou transfusões, um tubo descendente, a terminar numa entrada de torneira na artéria principal, junto da dobra do cotovelo do braço direito. Mas o vaso do líquido não tinha soro nem sangue, estava municiado até meio por um líquido estranho, azul, matéria não muito fluida, na aparência, e que se podia ver a deslizar pelo tubo. A rapariga tinha uma máscara ou aparelho de respiração, toda a sua cara perto da boca parecia trucidada e transitoriamente comprimida com adesivo branco. Tendo as pálpebras fechadas, a pele parecia também azulada, ou suja de carvão, dos olhos até às maçãs do rosto. E o braço esquerdo, arroxeado, estendia-se ao lado do corpo, agulhas presas como no outro membro superior, dois tubos caídos, a breve trecho cravados num recipiente de vidro, o qual se mostrava como receptor de sangue da jovem mulher, aliás o que já acontecera com outro objecto semelhante, cheio de líquido vermelho, escuro, um pouco de espuma à altura do garagalo fortemente tapado, tranca e arame em volta.
Os meus olhos ardiam. Sentia ardor no peito enquanto fixava tudo isto, ainda sem perceber o que via, como via, porque via. A mão esquerda da paciente, roxa, esverdeada, parecia ter-se ani-mado um pouco. Era isso, movia-se devagar, tacteando a bata verde claro, parecia uma aranha trôpega a querer subir, enrolada nos tubos. Assombrado, reparei que a outra mão, essa apoiada sobre o peito coberto de tubos, se movia também, aflita, tremente, como se procurasse desfazer-se da agulha e dos apertos, metida e empeçada nos outros tubos sobre o peito. As mãos, parecendo rumar à zona do coração, fechando e abrindo os dedos, espasmos lentos, encontravam-se enfim no peito raso, desacertando os dispostivos de recolha de sangue e da tranfusão do composto azul forte. Havia agora derrames de das duas matérias, tanto no peito como no lençol da cama, mãos como gritos, tubos crescendo, arrastados da obscuridade pela subida dos braços, pelos movimentos em desencontro e trajectos cruzados, linhas azuis, outras de maior calibre, deixando passar bolhas de sangue. Tudo era já um motor cheio de próteses, plástico enrolado, sujo, arrastando panos, bolas azuis de algodão, outras encharcadas de vermelho, mais tubos, mais braços esguios que pareciam ter vida própria e prendiam cada vez mais as mãos cobertas de próteses, nem vida nem morte, galáxia de dor e máquina de roubar vidas, sei lá, eu via, via, a boca seca, o grito calado, um arfar não sei onde, todo o peito da mulher rasgado em buraco, buraco escuro donde emergiam outras formas, metais de afastamento e prisão de partes de orgãos, as mãos numa só, dedos rectos, quebrados, todos os tubos como vermes, vermes que subiam, que desciam, que entravam na cova descosida - cova onde as mãos se afundaram de súbito, soltas, sem vida, ao acaso, por fim num gesto doce, docemente, até à imobilidade.
Na praça, junto ao rio, os barcos acabam de ancorar. Deles começa a jorrar uma multidão de gente em contra luz, lesta, escura, abrindo-se depois no patamar onde passavam os transportes públicos. Sentado na esplanada, sentia-me dorido, culpado não sei de quê. Rostos pálidos, amarelados ou anémicos, passavam em fila, ali bem perto. E havia jornais, um jornaleiro à antiga,
transportando uma tonelada de papel. Comprei um qualquer. Falava-se da crise global, do fim da ditadura dos coronéis, das mães que se juntavam na Praça Maior para resgatar entes familiares, maridos e filhos. Gritavam palavras de ordem. Queriam acabar com a urgência, o medo, a ausência das famílias.

Uma pequena nota no jornal, à esquerda, em baixo, dizia apenas: Ana Orwell, jornalista, desparecida há dois meses, foi ontem encontrada no subúrbio sul, morta, aparentemente por lhe terem feito o transvaso de todo o seu sangue e desinfectado o corpo por injecção de uma mistura anti-decomposição. A polícia investiga este caso singular na mesma hora em que as mães da capital exigem a abertura das valas comuns, na esperança de encontrarem os restos mortais dos seus familiares e amigos.

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Sinopse do filme «A morte de Ana Orwell», do autor deste blog,
sob eventos trágicos do fim de uma ditadura na América do Sul

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