A fotografia, mesmo a fotografia que procura (pela aproximação) expor a verdade do real, mente tanto como a pintura. Para exprimir esteticamente os objectos que olhamos de passagem nas horas do quotidiano, enfrentamos o problema de mentir para dizer a verdade que a todo o instante se esconde de nós. Posso olhar-me ao espelho e pensar em restituir a figura, com outra forma, ao plano a que chamamos da realidade. Mas a própria imagem ao espelho já não é verdadeira: o braço direito, no vidro, é legível como sendo o nosso braço esquerdo em projecção vertical. Eu penso que é pensável o pensamento plástico. (Francastel). Mas também penso no pensamento sobre o real, a despeito de todas as armadilhas e distorções que a percepção visual nos atira ao caminho das representações. A propósito de tudo isto, continuo a julgar que a abertura alucinante da arte a todas as formas de se configurar, invertendo imagens, inventando a mentira no interior da própria verdade, não está (nem deve erstar) inibida de se reconhecer na necessidade do realismo. É impossível copiar a realidade como se a cópia respirasse, para citar a célebre frase de Claude Roy a propósito de certos quadros de Picasso: «eles estão vivos porque respiram». É uma daquelas afirmações que nos faz, de súbito, perceber tudo. Como a que Magritte escreveu sob a representação ultra-realista de um cachimbo: «isto não é um cachimbo».
Tenho vivido sempre a dialéctica dessa equação: a de olhar para um trecho da realidade e não o ver como definitivo. Lembro-me sempre de um jarro que havia na minha casa, sobre uma mesa de abas móveis junto da janela, na cozinha. Quando entrava naquela dependência pela porta do quintal, o jarro poderia estar posado com a asa para o meu lado direito, a mão tocava-lhe com imediata facilidade. Mas quando entrava pelo lado da «copa», a mesma posição do jarro era-me dada com a asa para a esquerda, o que, sendo eu destro, me obrigava a uma escolha mais complicada: ou usar a mão esquerda com mais cuidado, ou usar a direita, movendo-me para a ter pelo menos de frente para o arco de vidro e poder manejar o objecto, em segurança, com a mão direita. A visão indicia, de facto, certos comportamentos, ajuda-os ou compromete diversas evidências.
Nunca me ocorreu uma ideia apenas ligada à natureza do real e por isso não me espantava nada com os desenhos lógicos (ainda não reféns da percepção) que os meninos da escola realizavam como qem escreve. A vida que desejamos aprisionar no sentido de um quadro ou de uma escultura escapa quase toda para um espaço invisível e dela fica-nos apenas nas mãos a sujidade das tintas e na tela a pressa aterradora da imagem que já não pertence a ninguém.
Tudo isto por causa daquele copo com água, do qual ía beber, e agora, fotograficamente, não passa de uma transparência. Vou à cozinha buscar outro. O jarro ainda está fresco, a água pronta para usar com as mãos e a boca, a asa de vidro voltada eficazmente para a direita: se entrar pela porta do quintal.
Um comentário:
Um artista, mais do que qualquer outro, deve saber "ver" para lá do real aparente. Ou como Juan Gris disse um dia: «a qualidade alcançada por um artista parece depender - na linha do seu compromisso visual - da quantidade das suas experiências acumuladas: »
Em suma, um cenário ou qualquer panorama visual não pode restringir-se a um único olhar ou perspectiva. Principalmente porque cada um de nós, tem dentro de si um Universo vivencial capaz de equacionar as mais diferentes percepções.
Foi bom "ver" a outra verdade, através do seu "copo", mestre.
um abraço,
Miguel
P.S. Estou a imaginar o Aldemiro, espreitando por cima dos óculos e coçando a sua barba branca dizendo: * « É preciso distingiur as coisas.o longo e necessário exercício de imitação serve justamente para sustentar as variações purificadoras, susceptíveis de produzirem efeitos surpreendentes sem qualquer negação da verdade. »
* Extraído do livro: " BELAS-ARTES E SEGREDOS CONVENTUAIS " por: João Rocha de Sousa
Postar um comentário