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domingo, janeiro 25, 2009

DESTITUIÇÃO DE DOGMAS NA PINTURA


obras de Rocha de Sousa
Já se falou aqui das grandes transformações do pensamento plástico ocorridas nas artes durante todo o século XX, algumas pequenas guerras, exercícios de estilo e duelos por sucessivas discriminações. Entre figurativos e abstractos, por exemplo, as fracturas eram determinantes, base de mútuas exclusões: a teoria em volta das composições que simulavam o real tinham, afinal, apontado para essa imposibilidade ou desnecessidade, conotando os objectivos da pintura, antes de tudo, com a vida própria dos seus elementos estruturais. A manipulação da cor, em superfície e segundo uma ordem imaginada, matemática ou aleatória, apontava sobretudo para a corporização do objecto, para a determinação da sua essência: essa forma adqurida pelos meios básicos deveria ser, primeiro, o espectáculo expressivo assim consolidado.
Há nesta dinâmica despojadora sequelas da longa ilustração religiosa dos temas sacros, a memória de uma composição pesada e laboriosa, engano permanente e faustoso entre a memória do real e as liturgias do catolicismo. Essa inspiração, desde há muito ligada ao poder e ao sagrado, equivocou os fins plausíveis da representação, verdade transitoriamente vencedora e assaz difícil de desmontar, por corresponder de perto às regras erráticas da visão. Operando por esta via, com variantes de dessacralização, as Academias forçavam a instauração suprema do talento, entre a cópia de imitação e os efeitos que sublinhavam o milagre do ver. Essa orientação sempre absorveu um comportamento assente no dogma, regras inamovíveis, teoremas conceptuais, também o grito ilusoriamente invencível, a falsa questão do triunfo dos mais fortes.
Nada disso é assim, tendo razões históricas, e mesmo fundadoras, para o ser. E da guerra entre movimemntos, escolas ou estilos, passou-se a uma inevitável abertura ao convívio, à partilha dos valores estéticos contemporâneos. O espaço das inovações artísticas, agitando o efeito das coisas dinâmicas por natureza, é um plano onde se pode agir, na actualidade, com liberdade assumida, com respeito pelas ideias alheias. Um museu de arte moderna, segundo o pensamento estruturante da última metade do século XX, tanto pode conter núcleos da nova figuração (pop e representação expressionista, entre outras) como pode aglomerar e relacionar os processos conceptuais e a chamada arte abstracta. Qualquer pessoa minimamente relacionada com estes fenómenos tende a visitar um museu de forma aberta, mesmo quando prefere os modos de formar minimalistas e menos a natureza de base no visível que caracteriza os novos realismos ou a figuração expressionista. É destes percursos, no olhar responsável que configura harmonias entre diferenças e semelhanças, que falam hoje as duas pinturas publicadas; serão abstractas e algo expressionistas, ao olhar simplificador, mas a nossa cultura em torno das memórias obtidas na longa absorção do real pode perfeitamente ligar-nos à contemplação das imagens na capacidade de as fecundar em indirecta referência a certos aspectos da realidade.

sábado, janeiro 17, 2009

EXERCÍCIO SOBRE OBSTRUÇÃO DO REAL

exercício de rocha de sousa

Agora até me ocorre misturar as vielas de Lisboa, e o lixo, e as paredes descascadas, com a visão em negativo daqueles quadros. Quadros, alucinações, todo esse surdo amontoado de ruínas e cenas diversas que vieram não sei bem donde. Gente escura, oleada, e as meninas leitosas, fora de época. Cabeças penduradas de janelas, entre flores. Como certas lendas de 1900, varandas coloniais e cemitérios de automóveis. Terra em volta, ferros e coisas de que se pode ainda falar com alguma propriedade, outras emergindo dos buracos da história e as mornas, um arrastar de pés descalços, os muceques. Umas vezes tudo parece tolerável, apesar do cheiro imaginado e da náusea, essa agonia que escorre dentro de nós ou molha a nossa pele num clima opaco. A argamassa intercalar, que separa cenas, que apodrece ilustrações, fizeram isso por ela, trataram-na como cartilagens e carne. Isso perturba-me, confesso. Procuro borboletas, aquelas que via na margem do rio Loge, no sentido de reinventar a beleza sobre o feio, saio de campo, penso numa certa rua de Ambriz, ou mais velha, em Lisboa, e consigo por vezes ficar preso num fogo de deslumbramento inquisidor, códigos e segerdos em cada porta, nas esquinas, nas sepulpturas dos militares entre paísagens ásperas, lugares como os morros de Nambuangongo. Eu sei, aquela pintura não anuncia nenhuma cartografia. A memória africana vem de outra latitude, desaba constantemente sobre muitos trechos de cada composição, entre cubatas, colunas de betão e toscas balaustradas de velhos senhores bem disfarçadas sob as grandes abas dos telhados, ciência benigna de perceber as intempéries. Pé direito muito alto, por outro lado, a parede amarela, até no primeiro andar entre janelas com portadas e ripas, pássaros em gaiolas brancas, fogo aqui e além, vozes antes do sono, nenhum bicho de porte aflitivo ali chega, sem perceber as chamas e as saltar por conta de tanto espaço. Nem mesmo os elefantes com insónias se aproximam das fazendas, deambulam pelas lagoas, nós estamos confinados aos charcos de lama onde deslizam, numa chiadeira, os machibombos da Carris, daqueles que costumavam atravessar-se na Estefânia, encurralando o trânsito, ali como em dezenas de praças da cidade. Autocarros, eléctricos, pardais à solta em Sete Rios e os carros das distribuições, a qualquer hora, entalados na rua do Sol ao Rato ou lá para os lados da Madalena. Acabaram com as docas podres do Poço do Bispo, os ferros, as areias, as barcaças oxidadas. Crescem casas. A multidão de um daqueles quadros guardados na Embaixada de Moçambique pode muito bem ser a malta dos concertos que ensurdecem meia cidade, árvores morrendo de pé, sobreiros decepados no Alentejo, nem jardins, nem Feira Popular. Tenho quase a certeza de que os ratos vão aparecer nesta Oran, cidade que também fora despida de árvores e já não albergava pombos. É a peste. Estes autarcas são duros de roer quando querem, na sua incompetência institucional, embelezar algum recanto de uma rotunda: acham logo palmeiras, africanizam calçadas em salpicos, contra o lado meridional da desaparecida cidade do pintor Botelho. Deixaram arder fragatas. Dizimaram milhares de jovens. Venderam mal as especiarias. Correram com os jesuítas e agora há por aí, entre arqueólogos e antropólogos, montes de santeiros alternando com fadistas.

Eventual trecho de um livro sobre o sentido da criação, Obra de Ninguém