Páginas

sexta-feira, maio 22, 2009

RECADO PÓSTUMO OU O MENINO DE SUA MÃE


Olha, mãe, já me disseram tudo e entregaram-me as tuas coisas, na ideia de as levar para casa. Qual casa, mãe? Já nada tem préstimo, são coisas de circunstância. Algumas servem de recordação, fios, agulhas, as botas de lã que deixaste para os meninos. Não chegaste a fazer as minhas. Deixa lá, se calhar fica para outra ocasião. Descansa, está tudo tratado, vais amanhã connosco para a Ermida. Sabes, ainda estás tão viva como eu. Já vim preparar a partida para baixo e as pessoas não param de telefonar, daqui e de lá. Não, não tens que ficar aborrecida, toda a gente sabe que já não podes responder. Deixa, eu respondo. Sim, sei perfeitamente que estavas a ser bem tratada no hospital, gostavas da tua vizinha de quarto, a tua velha amiga, até parecia que se conheciam desde crianças. A pobre senhora chorou por ti, nunca mais te viu desde que mudaste para os cuidados intensivos. Sempre te mandou beijinhos e mostrava as botas de lã que tu lhe tricotaste. Agora temos que descansar os dois e pensar um pouco no futuro. Claro que estou bem, mas gostaria de continuar a visitar-te. Os primos, lá em baixo, já trataram de tudo o que se relaciona com a tua chegada. O pai deve ter saudades de ti. Como a situação e a lei permitem, e como era tua vontade, ficas junto dele. Dois corpos enlaçados, lembras-te? Desculpa por teres sofrido durante tanto tempo, apesar das semanas em que ficavas boa e fazias botas de lã, para o Inverno, e ajudavas na cozinha, sentada, tratando as batatas e o feijão verde, atitude muito apreciada pelo pessoal do pavilhão. Seja como for, sabes melhor do que eu as dificuldades dos médicos. Chamaram-me, falaram-me de uma semana, duas, foi só esperar, e tu e eu e os teus amigos, todos esperámos com serenidade. Quando não te vi na cama, fiquei ali, numa espera suplementar. A enfermeira veio conversar comigo, quase em murmúrio, e disse o que havia para dizer.

Amanhã, quando ficares sossegada, pensa no pai, as ossadas dele ficam a teu cargo. Pergunta-lhe como se sente. Dá-lhe um abraço meu. Daqueles que eu lhe dava quando chegava de Lisboa, em férias.

quinta-feira, maio 21, 2009

«O ESTRANGEIRO», MEMÓRIA DOS LIVROS


Nunca somos quem julgamos ser,
olhar brevíssimo ao espelho.

Nunca sabemos quem procuramos
na falência dos dias
e no descuido de várias impaciências,
cedo ou tarde quando amanhace.

Na montra apertada do mundo
as horas não marcam o tempo
e tudo o que depressa arrefece
depressa o sol aquece.

Assim, na ilusão do espelho,
cada procura ansiosa do ver
se desfoca em suor e nos mente.

É gume ou faca.
Alguém grita sem língua nem boca,
de repente.
Olho suspenso,
agonia dele ao aviso aparente da lâmina,
estridência dos reflexos e do sangue,
tudo se exalta e tudo se recria,
inevitável,
responsavelmente,
Meursault respirando azul
ou um rosto que desconhecemos, baço,
e a cadência dos passos lassos,
surdos e quentes
e um brilho súbito
contra a paisagem
ou a areia incandescente
reflectida no olho suspenso.

O sol na lâmina, insuportável,
a faca faísca branca, o sol a pique,
e um tiro maquinal,
breve, seco,
sem alma nem razão,
tão absurdo como a realidade em volta.

Um vulto branco, tombado, talvez alguém.

Espuma dos dias, o mar de Maria.
Um ruído doce de águas, além,
e a espera, a natureza sem nome,
coisas, apenas coisas em volta,
talvez estilhaços do espelho
que nunca reflectiu nada
nem ninguém,
gaivotas voando em volta.
Um vulto tombado.
Um céu azul.
Areia clara.
A espuma do mar.
Quase nada.
Quase tudo.



fotos e poema do autor deste blogue

sábado, maio 16, 2009

VISITAÇÃO DA VIDA ENTRE MEMÓRIA E FILME




Quando nos aproximamos dos outros parece que nos encontramos com o nosso rosto ao espelho. E, no entanto, quem nos olha de frente olha-nos sem nos reconhecer. Pode olhar-nos sem nos ver nem a si mesmo. Ser por dentro é, na verdade, recapitular instintivamente os vultos que repousam naqueles planos difusos do ser, do ser na memória, de milhares de imagens que entram e saiem em cada minuto da nossa vida e destróem ordens antigas para construir novos espaços, intrigas, planos encadeados, equívocos, derivas insanáveis na viagem maior que nos consome perante a irrecusável anunciação da morte. Mas a morte também nos visita em vida, como num filme. Vemos imagens que talvez nos perteçam, a par dos outros, com os outros, e então imaginamos estar num mundo de espelhos, quebras polidas e arestas pela colagem dos sonhos entre si. Hopkins, quando tratou este assunto, trocou as voltas ao filme, o filme da vida e o outro, trabalhando até ao limite a mistura das imagens do real com as imagens falsas do cinema. São falsas porque decorrem de pequenos frames em corrida de dominó. Dominó na própria paragem do gesto ou nos longos planos fundidos capazes de nos levarem a uma espécie de visão suicida que tantas vezes emerge afundando-se de novo, no fundo do inconsciente. Aquele deserto americano é a fábula dos nossos desertos interiores e das estepes do futuro.















0s fantasmas somos nós,
todos nós somos heterónimos
de outros,
entre carros diferentes,
semelhantes ao andarem
sobre rodas.
Vemos o que julgamos
não ver.
O homem que escreve,
ouve os soluços
de alguém que se perdeu de si.
Um tiro na têmpora e acaba-se
o mundo.
Abutres, cabeças de bonecas,
figurantes da morte,
os carros são personagens
que estimulam o prazer
e a morte.
Em boa verdade,
nunca chegam ao fim
das estradas poeirentas.
A alma da vida
passa por isso, na distância,
bonecos misteriosos
e contraditórios
de um filme.
No filme,
o que reaparece, parece,
fala do nossos inconsciente
ou das imagens
esquecidas de nós em nós.

domingo, maio 10, 2009

CASAS EM RUINAS, SINAIS DE GENTE PERDIDA


Casas velhas, em ruínas, dezenas e dezenas de casas assim, dispersas pela paisagem mal tratada do barrocal algarvio. Muitos anos depois de abandonadas por camponeses que haviam perdido o tino do seu trabalho, do que se pedia ao solo e o solo dava, ou do que se semeava mais além e tudo os ventos varriam, entre enchutrradas e animais rolando e morrendo nas encostas pedregosas, com menos fio de terra e poucas árvores, depressa o sol e a seca, homens cinzentos, indo e vindo, empurrados pela escassez dos elementos de que precisavam, quase sem pão, o Henrique que o vendia vinha menos, queixava-se do preço da farinha, da falta de créditos, mas era o último elo de ligação dos camponeses reféns do seu projecto incompleto, para o qual todas as precisões se esgotavam. Henrique trazia, além do pão, algumas coisas de utilidade imediata, como o petróleo para os candeeiros, remédios encomendados à farmácia da aldeia, tão longe e tão pobre a aldeia, velas, pilhas para algum pequeno rádio, sementes, algum azeite. Apitava e desapitava à partida, voltava quando calhasse. Os Messias pediram-lhe que lhes enviasse uma carrinha com tijolos e telhas, das redondas, poque parte da sua velha casa tombara no pino do Inverno. O burro não servia para isso, coitado, mal podia andar pelos serros da cercania de Alferos. Os burros haviam sucumbido ao longo das útimas décadas, velhos, cansados, com doenças pulmonares, entre outras. Eram enterrados como pessoas, nomeados em cruzes de madeira, o que, aliás, também acontecia com os cães e os pássaros de estimação. A fuga daquele lugar que nem sequer vendia o que malmente conseguia produzir. As casas desabitadas, vandalizadas ano após ano tornaram-se jazigos de almas penadas e pequenos bichos acossados.




Estas ruínas formam um quadro arqueológico recente, cerca de cem anos, mas parecem mais remotas, vandalizadas por caligrafias dos meninos da cidade, bufando tinta spray em tudo quanto era muro disponível, ou mesmo indisponível, como acontece nas próprias cidades, por cima de cantarias modernas já com restos de carvão, tintas, cartazes rasgados, bonecos e letras afinal velhas e também de sentido desfocado na dissolvência do que parecera civilização.




Os ciclones eram raros, raros o gado desde então, pessoas solitárias apanhando lenha, cultivando alguns legumes e rezando aos santos dos altares domésticos a favor dos meninos e dos velhos perdidos na serra. Ventos sim, vieram depois, com a escassez de moeda e de sonhos, orvalho pelas manhãs de Dezembro, ou em Janeiro, ou mesmo em Fevereiro. Não havia nem ovelhas, nem cabras, nem gatos ou cães pastores, companheiros leais que ajudavam nas lides do dia-a-dia. Restam galinhas, os ovos das galinhas, o pão do senhor Henrique, o resto foi desaparecendo das tábuas, prateleirias toscas mas rijas, ficavam por vezes um ou dois candeeiros a petróleo, algum azeite, uma pinguinha de vinho. E pouco mais em panos. panos de uso nas limpezas supérfluas. Lavados em pouca águas, estendidos ao sol, em duas lajes. Os panos. Velhos são os panos






fotografias de rocha de sousa

sexta-feira, maio 01, 2009

DIA PRIMEIRO DE MAIO OU O DIA DA MÃO


foto de rocha de sousa

Após o dia 25 de Abril de 1974, os cravos multiplicaram-se em todas as festividades e rondas da tropa. Ainda havia companhias de infantaria na sua quadrícula de Angola, Moçambique ou Guiné. Muito antes disso, em 62 e no mesmo dia, gente meio fardada e barba crescida agarrava nas armas automáticas e abria arduamente picadas quase escondidas no capim e nas matas dos Dembos, perto de Zala. No fim dos anos 40, em Portugal Continental, as armas jaziam nos quartéis da Guarda Nacional Republicana, homens duros, com mãos quadradas, que faziam o seu giro de vigilância a cavalo, um par de cavalos, dois homens pesados e lentos olhando para diante. Mas nesse tempo o 25 de Abril só servia para esperar pelo 1º de Maio, dia do trabalhador, ideia de uma esquerda longínqua, aliás proibida em todo o país. Os trabalhadores não trabalhavam e juntavam famílias em grandes barcaças, em rios como o Guadiana, o Arade, e outros tantos, a sul, levando consigo mulheres e filhos e farnéis, um ou dois harmónios, facas de defesa e sobretudo de dividir pão, fruta, febras ainda por cuidar. Rio abaixo, bem carregadas, lá seguiam as barcaças, entre risos e o tac-tac dos motores, água ondulando no movimento, canas partidas flutuando na traseira do mundo. Todos ancoravam nos pequenos portos das hortas, quintas bordadas pelos caminhos fluviais, cheirando a frutos e flores, moços e moças logo bailando ao pôr pé em terra. E por ali se acomodavam famílias sonhando com mais vida e mais cortiça, em particular no rio Arade, estrada que levava os fardos com rolhas até ao mar e aos cargueiros fundeados além.


Era assim o primeiro de Maio, dia dos trabalhadores, data emblemática da mão que os representa das mais diversas formas, agarrando coisas, acenando para longe. E cada vez o 1º de Maio foi principalmente um sonho, uma recordação, dia das mãos dadas como depois de Abril de 74, dedos agarrados à imagem do futuro, multidão nas ruas de Lisboa, mãos nas mãos, o abraço e o dedo apontado, cartazes, bandeiras, liberdades. Mãos. Nunca mais a mão solitária. Foi assim e já as armas aperradas no outro Continente baixavam canos e os soldados gritavam pelos barcos de volta. Mãos acenando no regrasso, como na partida, mãos retornadas em salvação.