Casas velhas, em ruínas, dezenas e dezenas de casas assim, dispersas pela paisagem mal tratada do barrocal algarvio. Muitos anos depois de abandonadas por camponeses que haviam perdido o tino do seu trabalho, do que se pedia ao solo e o solo dava, ou do que se semeava mais além e tudo os ventos varriam, entre enchutrradas e animais rolando e morrendo nas encostas pedregosas, com menos fio de terra e poucas árvores, depressa o sol e a seca, homens cinzentos, indo e vindo, empurrados pela escassez dos elementos de que precisavam, quase sem pão, o Henrique que o vendia vinha menos, queixava-se do preço da farinha, da falta de créditos, mas era o último elo de ligação dos camponeses reféns do seu projecto incompleto, para o qual todas as precisões se esgotavam. Henrique trazia, além do pão, algumas coisas de utilidade imediata, como o petróleo para os candeeiros, remédios encomendados à farmácia da aldeia, tão longe e tão pobre a aldeia, velas, pilhas para algum pequeno rádio, sementes, algum azeite. Apitava e desapitava à partida, voltava quando calhasse. Os Messias pediram-lhe que lhes enviasse uma carrinha com tijolos e telhas, das redondas, poque parte da sua velha casa tombara no pino do Inverno. O burro não servia para isso, coitado, mal podia andar pelos serros da cercania de Alferos. Os burros haviam sucumbido ao longo das útimas décadas, velhos, cansados, com doenças pulmonares, entre outras. Eram enterrados como pessoas, nomeados em cruzes de madeira, o que, aliás, também acontecia com os cães e os pássaros de estimação. A fuga daquele lugar que nem sequer vendia o que malmente conseguia produzir. As casas desabitadas, vandalizadas ano após ano tornaram-se jazigos de almas penadas e pequenos bichos acossados.
Estas ruínas formam um quadro arqueológico recente, cerca de cem anos, mas parecem mais remotas, vandalizadas por caligrafias dos meninos da cidade, bufando tinta spray em tudo quanto era muro disponível, ou mesmo indisponível, como acontece nas próprias cidades, por cima de cantarias modernas já com restos de carvão, tintas, cartazes rasgados, bonecos e letras afinal velhas e também de sentido desfocado na dissolvência do que parecera civilização.
Os ciclones eram raros, raros o gado desde então, pessoas solitárias apanhando lenha, cultivando alguns legumes e rezando aos santos dos altares domésticos a favor dos meninos e dos velhos perdidos na serra. Ventos sim, vieram depois, com a escassez de moeda e de sonhos, orvalho pelas manhãs de Dezembro, ou em Janeiro, ou mesmo em Fevereiro. Não havia nem ovelhas, nem cabras, nem gatos ou cães pastores, companheiros leais que ajudavam nas lides do dia-a-dia. Restam galinhas, os ovos das galinhas, o pão do senhor Henrique, o resto foi desaparecendo das tábuas, prateleirias toscas mas rijas, ficavam por vezes um ou dois candeeiros a petróleo, algum azeite, uma pinguinha de vinho. E pouco mais em panos. panos de uso nas limpezas supérfluas. Lavados em pouca águas, estendidos ao sol, em duas lajes. Os panos. Velhos são os panos
5 comentários:
Abraçando este belíssimo texto, são as palavras que só o Rocha de Sousa sabe dizer.
São as iamgens que o Rocha de Sousa sabe olhar, sentir e registar.
Passeios destes, onde se respira ar de outros tempos, onde as almas nos tocam, silêncios que nos embalam, pássaros que cantam estações, ventos que nos levam à saudade... valem sempre a pena.
Imagens a preto e branco fazendo arrepiar a alma.
BELO, Rocha de Sousa.
Aproveito para agradecer as paragens que tem feito no Naturalissima. Deixa lá sempre algo especial e importante para mim e para os que lêm.
Um beijo
Daniela
Um esbocete fiel de um retrato perdido, mas não há muito.
Este texto tem um leve gosto a nostalgia, hábitos duma comunidade regional que cada vez mais se perde na aposta ambiciosa do futuro tecnológico e pouco promissor.
Histórias que se esboroam na efémera travessia da vida, tal como as paredes das belíssimas casas que decoram esta peças, este autêntico pedaço de alma portuguesa.
Este país de velhas histórias e tradições obsoletistas manter-se-á jovem desde que vozes como a sua perdurarem.
Vozes assim nunca serão velhas, velhos são os panos que desgastam limpando o brilho da memória.
Um abraço,
Miguel
O que posso dizer mais, depois destes dois belos e oportunos comentários?
A voz das palavras traz o som dos vendedores, o chocalho do gado, as rezas dos homens e a nostalgia de um tempo perdido.
Ficam as ruínas e os homens que não se calam.
Belas fotografias!
belas fotos
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