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segunda-feira, julho 13, 2009

A PASSAGEM DAS HORAS SOB A TEMPESTADE

grafismo digital de rocha de sousa

Estás só e curvas a cabeça, como sempre, a esta tempestade tropical que se aproxima. Cada vez é mais assídua mas ainda é vulgar, quase branda. Virá um dia a sacudir a mítica temperança do clima peninsular, varrendo estas terras que já perderam a relação regular das estações do ano. Isso sim, será inquietante. Tem cuidado, não mintas a ti mesmo: desde menino, desde o ciclone, que ficaste refém desse trauma devido à Natureza em violência. Não, não estou a exagerar, e tu sabes perfeitamente que só levantaste os olhos às verdadeiras tempestades tropicais quando estiveste em Angola, ao acaso de todos os casos. Esperavas por elas, com outros companheiros, no limite do morro, um abismo de floresta à tua frente, a cortina de água apagando horizontes, uns após os outros, branco cinza compacto cujo interior se iluminava sem desenho e muitos segundos depois chegava a ti o ruído de enormes pedras rolando sobre estradas de zinco. Podias fazer as contas, trabalhando com a velocidade da luz e a velocidade do som: a verdade dessa operação matemática estava aberta diante de ti e dos outros. Deus brincava com os sinais da sua Omnipresença e já sabia a data em que sairias dali, daquele soturno universo de florestas e covas sem fim. Então começavas, num olhar de minúcia, a observar o avanço (metro a metro) da torrente de chuva: ao longe, o verde-verde sombrio das copas das árvores, coladas entre si, desaparecia sob essa água tumultuante, entre salpicos em bruma, num lamento rouco, que mal se ouvia. Tudo começara a acontecer cerca de uma hora atrás. De súbito, sem aviso, um risco torto, divino, acendeu-se num traçado tortuoso, brutal, imenso, tal e qual como Deus escreve nas linhas direitas, acompanhado (numa fracção de segundos) pelo rasgamento simultâmeo de mil árvores colossais, imagem sonora dos troncos tombando, rolando, bramando em cavernas de montanha, ronco cavo, pedaços de som esfarelando-se num lugar qualquer, inacessível. As vossas pernas nuas recuavam um pouco, avançavam depois, e toda a gente começava a ver uma parede como a do Niagara rompendo caminho, engolindo metros e metros de fdolhagem, agora produzindo um ruído tão intenso como o som intermédio das descargas eléctricas, mas sem quebras de altura, primeiro ainda tolerável, quase brando, e pouco depois, a cem metros do vosso abismo, imperioso, contínuo, abafando as próprias vozes que te ladeavam. A dez metros ainda podias ver a tromba de água, ciclorama apocalíptico. Ninguém se ouvia mais, os primeiros pingos de água alagavam tudo, e tu correste como um coelho acossado, entrando em queda na casa de zinco, enorme, em que habitavas com os sargentos e oficiais. Toda a gente se encolheu nas camas, tapando os ouvidos num desespero, porque aquela carga a desabar sem intervalo sobre o zinco parecia mesmo a cólera do Deus impossível do Primeiro Testamento. Nunca viras nem ouviras uma coisa tamanha. Nada de nada parecida com o sopro ciclónico da jua meninice, aquele que levantou telhados e arrastou árvores inteitras pelo espaço adiante. Pouca coisa, mas o medo é próprio dos homens. A tempestade tropical, assim, vista de longe e bem de perto, é outra coisa, em particular sob o zinco amplificador, o mundo em poedaços. Afastava-se depois, neia hora depois, majestática e cada vez mais «mansa», apesar da artilharia que arrastava consigo e tornava todos os bichos invisíveis, mesmo que não tivessem ouvidos. Lembras-te quando tiraste os dedos dos ouvidos? Chovia longe, ouvia-se o pingar das goteiras, pequenas goteiras das folhas de zinco, uma impressão estranha de fogo na distância devida a uma luz já alaranjada que entrava pelas frinchas, aliás juntando-se a outra, talvez insinuada pelo som dos pingos de água ouvidos a desfazer-se na terra molhada. A medo, mas fascinado, foste até à porta. Havia gritos de grandes aves que se preparavam para levantar voo. E a chuva longe. E os relâmpagos vermelhos, amarelos, brancos, empurrando o som em largos círculos que já precisavam de cinco segundos para chegar ao vosso território. Em volta das casas e casinhas, zinco, madeira e lona, troncos e ramos de árvores, viaturas militares em verde azeitona, brilhando como nunca, espalhavam-se impensáveis brilhos de lagos abertos na terra, coroas de lama pegando-se umas às outras, o céu já vermelho e roxo, projectado nos espelhos horizontais, nos reflexos mamutianos da lama. E uma simples bota que lá entrasse, porque nada parecia tão grande como realmente era, afundava-se naquela carne mole. Era terrível retirá-la de lá e sobretudo transportá-la no pé com cinco quilos de barro, pelo menos, agarrado a ela. A paz era então anunciada pelos últimos arcos-íris que enfeitavam o resto violeta suave do vosso céu, para leste, cruzando-se entre si ou arrancando de pontos que podias tocar, erguendo logo os olhos a fim de perceberes qual era a extensão desse arco multicolor, uma curva da mais sublime geometria, desfazendo-se, ao contrário de outras, além ao funco, entre nuvens baixas que pareciam pássaros silenciosos deslizando no fio horizontal da brisa. Queres dizer alguma coisa? Claro que sim. Sabias perfeitamente que eu tenho esse espectáculo, inteiro, na memória. Não, não sabia inteiramente. Calculava. Mas tu estavas dobrado, riscando por nada. Por nada, dizes bem: não era medo de tempestade nenhuma, era apenas medo de não conseguir apagar (ou esconder) a fotografia terrível que imprimira neste papel. Sobrou em cima, à direita, o rosto de uma rapariga pacífica, mas não sei o que fazer com ela. Deve ser o anjo que tu nunca soubeste ser para mim. Desculpa.

3 comentários:

jawaa disse...

O tu falando contigo, uma beleza. Bem sabe que gosto desta sua escrita intimista e aqui aparece o anjo que esta dentro de si, como o inventou WW. A descricao e soberba e toda a escrita uma obra de arte a cores e a preto e branco.
Para si, uma venia.
(Desculpe a escrita, sabe a razao)

Miguel Baganha disse...

Nunca sabemos verdadeiramente quais os registos acumulados ao longo da vida e de que forma nos moldaram. Á passagem das horas sob as múltiplas tempestades temos duas opções: esperar sentados pela incerteza ou dinamizar o pensamento enquanto a bonança não chega.

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- Queres dizer alguma coisa?...

" Sim...
Acho que o anjo sempre esteve presente... "

- É verdade, poeta...
As memórias descritas assim o confirmam.


Um abraço,
Miguel

naturalissima disse...

Elipse bem articulada no tempo e no espaço de uma guerra inútil.
Belíssima película de memórias, levando-nos para dentro de um monólogo de si para si.
Fascinante as passagens descritas, maravilhosas cores desta tempestade tropical vivida com medos.

Um beijo meu