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quarta-feira, agosto 26, 2009

MARIANNE E O DRAMA DO PINTOR FRENHOFER



Tu vens em nome da Odette ou és a Marianne? «Começei por ser Marianne. Contracenava com o actor Picolli no filme Bela Impertinente, de Rivette. Mas de si obtive o nome de Odette, com que fiquei durante toda a memória do livro Belas-Artes e Segredos Conventuais.» E agora? «Agora fiquei de novo ligada a si, porque me evocou no livro Obra de Ninguém, nos capítulos onde são abordados vários filmes em concordância com a problemática do ver e do representar. Aquelas suas sessões marcaram-me profundamente, quer como personagem, quer como pessoa forçada a atravessar décadas com o mesmo rosto e o mesmo corpo: veja a fotografia que tem aqui e pode confirmar que os meus olhos o olham como dantes. Em todo o caso eles vieram de um laboratório que terá existido por volta de 1900. Esta face, perdida nos sonhos de Frenhofer, pintor em decadência e na evocação, cuja mágoa viveu através de mim, um amor meio longínquo, um retrato talvez acabado, talvez desaparecido, algo que tinha para ele ainda a substância carnal da pessoa, da pintura e da própria representação.» Foste muito condescendente com a violência de Frenhofer, a maneira como ele disputava o teu corpo, numa espécie de mistura do desejo e da rejeição. «Estas profissões são assim, irreversíveis em cada caso. Preferi sofrer com a exigência de Franhofer do que aturar assédios patéticos, perante uma obra que não se faz nem se desfaz. Aí prefiro perder o meu dinheiro e partir. De resto, a minha vontade era a de participar num outro filme, onde os caminhos estreitos, as cenas esfumadas e a sombra inquietante do bosque condicionariam tudo. Nesse caso, o problema da representação, que também se insere na linguagem fílmica, seja qual for o estilo, vinha do visível igualmente a perder sustentabilidade realista. E todo o material que entretanto se recolheu fez-me emergir da profundidade sombria, quase fantástica, de um belo jardim a fingir de bosque, ali ao sul, numa cidadezinha do interior. Essa parte do bosque tinha apenas, além de espessos arbustos, dezenas de troncos pertencentes apenas a quatro ou cinco árvores. A uma certa hora do dia, sobretudo ao entardecer, não era preciso operar com adereços de luz, as coisas saíam limpas, condução inerente à própria deriva dos entes sem nome da não-história. Mas havia também um tratamento por filtro das flores decadentes que surgia entre ruínas, sobre arbustos estranhos e um chão que teria pertencido a uma antiga casa de habitação, toda ela removida a favor de outra construção que não chegou a fazer-se. O tempo empurrou plantas do quintal, ao fundo, para dentro da área das antiga casa, algo que nos dava a impressão, espreitando pela óptica, de estar diante de um plano de Tarkovski, os verdes secos, os amarelados acinzentados, a luz difusa, a morte anunciada em certas raízes que não tinham conseguido furar a tijoleira e assim haviam produzido ramos sem esperança de vida, alimentados no inverno, após as chuvas e os pequenos lagos lamacentos sobrando na cerâmica rachada. Depois disso, as paredes fracturadas, os altos muros crivados de pregos, de aberturas irregulares, como relâmpagos em negativo, tudo servia para certas panorâmicas lentas, as quais teriam futura ligação com dois personagens, um homem velho e uma rapariga, ambos atentos, perturbados, escutando a água correr donde em onde, sem avistar senão aldeias devastadas por si mesmas ou pelo abandono. E de súbito, a madrugadaca vinha contradizer tudo, iluminando em especial o rosto da rapariga (Marianne ou Odette, não sei qual) e estilhaçando em difusão o caminho da última cena . Toda a luz branca crescia à medida que a câmara avançava em travelling, na convergência das linhas até um muro avermelhado a travar uma hipotética saída. Quando a objectiva chegava a esse ponto o foco era apurado sobre a parede: o campo enchia-se de nova sombra, a do muro já menos quente e mais sujo, irregular na textura e nas finas fendas que o percorriam de alto a baixo. Mas isso era traduzido a cerca de dois metros, entre o nosso olhar, o olhar focado da câmara, longo plano fixo que lentamente dava lugar a um escuro opressivo e ainda tocado pela sangrenta materialidade de um submerso tom siena.»
Fico a olhar para ela e não sei o que dizer. Não sei quem devo procurar, Marianne já se afundou na história da vida e dos filmes em que participou. E Odette era absolutamente igual à rapariga que nos servia de modelo nas aulas das Belas Artes, comendo a sua maçã ao intervalo e lendo, rosto sereno, um livro de Éluard. A minha também vai chegar, com a sua carga de memórias e os seus sucessivos apagamentos, apesar destes belos fantasmas e das imagens retiradas das gavetas e pouco depois retornadas a essa sombra apagante.




a luz esfumava as imagens
de um caminho estreito, obtido
num velho e simples jardim

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