foto montagem com colagem de rocha de sousa
Tu já viveste menino na calha de pedra onde subsiste este muro. Um branco sujo, cal outrora, encobria ruínas de edifícios obscuros, sem rosto nem fim. Esse branco, através do qual muitos ossos pareciam emergir fantasmas, enquanto a chuva descarnava areias, tornava visíveis veladas figuras de meninos e meninas, velhos encolhidos, ferros ou próteses oxidadas pela intemporal carga das argamassas. Armaduras de Ucello, pareciam e talvez fossem, guernicas depois, recortes de patas de cavalo e urros durante a morte, apesar da lâmpada suspensa do tecto do mundo, porventura o céu iluminado pelos últimos gritos, o olhar dos mortos. Tu vias essas coisas como? E fotografavas o quê, além das rugas e fracturas da superfície do muro? Eu sei: foi no tempo em que repintaram aquela longa empena de vermelho saguíneo, visão de todas as batalhas, borbulhas submersas nas novas toalhas deslavando-se, coisa de tanta areia imprópria, em breve feridas explodindo sem que ninguém reparasse na hora. Sim, claro que podes redizer: surgiam também órbitas como buracos escuros pelos quais se podia espreitar a suspeita presença, no fundo, de ossos, tíbias, mãos de alumínio, uma espécie de revelação do enterro de guerreiros biomecânicos, sem origem nem vitória visível, mesmo quando tudo não passasse, em sonho, de ortopedia superior, articulações ligadas a hipotéticos nervos e músculos de cetra gente, talvez vagos indícios de seres impossíveis ou míticos, esmagados no impiedoso emparedamento. Nada disso pode ser real, tu bem sabes, nem o próprio Universo, nem o fim nem o princípio dele. Alguém, em todo o caso, tinha medo de que se desnudasse o manto que encobria origens difusas e memórias insustentáveis: o muro voltou a receber baldes de tinta vermelha, menos definida, mas nenhuma sombra sobrou. Não se ouviu nenhum grito, nada de nada maculava a tinta ainda fresca. Todos os cavaleiros de Ucello haviam desaparecido sob aquela lisura afinal quente, não restavam sinais de ossos ou cabeças escondidas em elmos tapados de ferrugem. O muro imenso, cada vez mais tosco e anos depois abrindo outras fendas, é apenas visitado, nas tardes de verão, por pardais que ali fazem curtas escalas em direcção às árvores, ninho da noite. Hoje só podes fotografar esta última ambiguidade, brancos e argamassas enfim emergindo definitivamente por sua conta, cinzentos inexplicáveis, polpa orgânica fingida e meio apodrecida, natureza morta assim, inteira, sem vestígios além do que parece velho ou de configuração abstracta.
É outra escrita, mas igualmente uma escrita indecifrável.
É outra escrita, mas igualmente uma escrita indecifrável.