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sábado, outubro 31, 2009

PRESENÇA E APARÊNCIA NA FORMA DO VISÍVEL


pintura | técnica híbrida | rocha de sousa

Achei aquela frase num simples livro de Educação Visual. Acharia outro, se tivesse vontade para procurar, entre as imagens quotidianas da metamorfose do mundo: gente e coisas, o lixo disfarçado no desvão dos cafés ou das vielas irreparáveis. O livro era pequeno, pouco ilustrado, falando de Kandinsky e Paul Klee, como não podia deixar de ser. Os exercícios de pintura de Paul Klee pareciam lições práticas, sustentadas no olhar, ensinavam entretanto a ver a ordem das formas e das cores no espaço, os valores, os ritmos, a textura de uma simples mancha aguada. Em certo sentido, era quase tudo o que havia para aprender, começando no ponto e na linha e na sua diversa multiplicação. Do visível até à pintura que dele em parte se apropria vai uma grande distância, mesmo quando não parece: quando, por exemplo, os olhos de um retrato realista destilam lágrimas ou alguma viscosidade emergente. Coloquei este pequeno trabalho aqui, sustentado por meios electrónicos, mais como uma espécie de electrocardiograma, folha de registo, linhas e fundos, formas e figuras, desenho do que me faz pulsar, qual o estado em que se encontra a minha capacidade de ordenar a desordem, de chamar imagem ao real transformado, a um espaço sobrecarregado, em suma, de sucata inominável. Vou e venho, vejo as marcas consistentes e embrulhadas nesta maneira de ver as coisas. E penso sempre: talvez fosse bom que uma anunciação deste tipo se fizesse a cru, breve e secamente, aberta em pontos, duas linhas, a mancha do mar ou a imitação esboçada de três pequenas nuvens. Mas eu gosto de adjectivar, não sei porquê. O problema pode estar na própria língua, atrás de semânticas austeras, em textos exemplares e sintéticos. Na pintura as coisas seguem também, por outro lado, o bater do coração, o deslizamento das tintas, riscos reais e virtuais, dores de quem não chega ao ponto exemplar com que sonhava, fechando-se como um bicho de conta, a espreitar milagrosamente a primeira figura do que deveria ser uma multidão, os crentes gemendo passos circulares em Meca, os peregrinos amontoados em Fátima, pés a sangrar, iguais aos de todas as batalhas, e a praça do Vaticano coalhada de cabeças, só cabeças e sobretudo escuras, pontos brancos aqui e além, o marulhar das ondas distorcido à escala tímbrica das rezas e das canções menos ásperas que se ouvem nos grandes espaços do espectáculo de massas. Não era disso que eu queria falar aqui. Queria apenas lembrar, pela suave sabedoria de Klee, que todas as vertentes da sua geometria plástica podem ganhar outra configuração, perdendo a transparência em nome da opacidade fracturada, fósseis aqui e além, ferros, peças sem contexto, armadilha de asas pela frente de uma atmosfera em azul forte, nenhum realismo na realidade alcançada, porventura legível aqui e além, presumível como resto, espaço onírico, reinventável através da análise ou do sonho, verdadeira porque sim, operática também, pânica igualmente, algo daquilo que sou em mim e nos outros, vazio às dez horas da noite. De madrugada a mesma coisa será diferente. E haverá no céu três pequenas nuvens.

terça-feira, outubro 27, 2009

A DEVASTAÇÃO DO IMOBILIÁRIO QUALIFICADO


Aqui ficam para memória futura os primeiros sinais de devastação de um prédio urbano das primeiras décadas do século XX, recoberto de azulejos, cerâmica de muito boa qualidade estética e funcional. Foram longos anos de ataque a esta fachada, zelo para hecatombes sociais, icrementado a partir da altura em que um velho chefe de família, rodeado pela mulher, duas filhas e um filho de maior idade, sucumbiu inesperadamente. Vieram outros anos, outros ventos, uma das filhas morreu ao arrepio do destino e a senhora viúva ponderava como gerir a cada vez mais dramática ausência de meios. Havia gente nas águas furtados, creio que um casal jovem e uma avó vigilante, recortada por vezes nas janelinhas alcandoradas, simultaneamente devolvida da sombra pelo seu reflexo num espelho ao fundo. No piso junto à rua, à direita, nunca percebi quem aí habitava: porque, embora as janelas estivessem tratadas e com cortinados de renda, ficavam sempre fechadas. Percebi uma vez que havia lá alguém, porque estava perto e o carteiro bateu para lá e esperou muito tempo. Depois, no vão da escada, foi um murmúrio surdo e uma tosse rápida. De resto, o lado esquerdo esteve quase sempre ocupado por uma loja de ferragens, à qual se seguiram lojas de artesanato e biscatos em papelão, colagens, animais afectuosos, de cartolina, para meninos da escola.
Em cima, a desertificação começou pelo uso que o filho mais velho da família destroçada foi dando aos quartos, sala e saletas, um quintal que nunca vi, com ramagens de aguarela. O ataque continuava, nenhuma classificação fora conseguida, ou critério de bem público (que o era) e muito menos quando a avó das águas furtadas morreu, dias no quarto, depois um funeral esquisito, acompanhado por gente jovem, mal vestida, duas moças magras, crianças recentes, de olhares já indiferentes e breves.
Tudo pronto: os homens dos papéis e da ganância lá conseguiram a licença de demolição. Nem uma meia dúzia de azulejos, para amostra, sobrou da insanidade vandalizante. Deitar abaixo é uma coisa. Arrasar a arte e a nobreza dos adereços é outra. Ninguém veio ao funeral da amável moradia que conheci durante quarenta anos. Vim eu, olhando da minha própria janela.
As duas imagens seguintes, muito belas à sua maneira, corresponem ao fundo da casa, já esburacado até às traseiras da garagem da outra rua. Oiço as miúdas de antigamente e lembro-me do senhor de cabelos brancos e olhos claros mas avermelhados. A menina mais nova, magríssima, a comer um gelado. E o gato. E aquela moça angular, de camisola sem mangas, que aparecia na janelinha direita, assente no telhado. Costumava passar discos dos Ping Floy e cuidava de um cato arrumado no canto do pequeno varandim.
Nunca mais recebi sinais dali, da menina e do rapaz, da mãe dele que acabara por casar com um engenheiro civil, longe daqui. Mas quem sabe da folha de serviços do engenheiro?



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Máquina trituradora, ficção na sua forma e no seu roncar. Racha tudo, parte, arrasta para a direita e para a esquerda, entulho a sobrar. Quando vem a noite, o braço de ferro tomba. O monstro acomoda-se, silencioso, sobre o entulho. Dorme.














Janelas partidas, vidros estilhaçados, uma geometria suspensa, abanando em melancolia e já no patamar do desaparecimento. Há muitas inexistências entre as novas velhas existências que fazem chão sobre o chão desaparecido.













A pata da máquina sobre os destroços. Nem o menor sinal da história humana aqui contada. Nem um simples resto de livros, cadernos, uma jarra partida. Madeiramentos soltos, já sem origem e de destino eventualmente incerto. Os homens não sabem como crescer, porventura como olhar cada paisagem devastada, coisas e espaços que podiam ser futuro de outra morte.

segunda-feira, outubro 12, 2009

ORFANDADES E SOLIDÕES, O DESERTO


Donde vieste? De longe, da Fragura, é da praça que a gente vive. Vives como, assim, e os teus pais? Já se foram, o pó de pedra deu cabo deles. Mas vives sozinha? Não, nada disso, cuido das minhas irmãs e trato da casa e arranjo a terra. Duas irmãs? Sim, a Esmeralda, que é bem mais, nova do que eu, e a Bendita, fez há pouco dez anos. Vão à escola, as tuas irmãs? E tu? Só a Bandita é que anda na primária, vai de manhã cedo e volta pela tardinha. Ainda nos ajuda um pouco, mas tem de fazer as contas e as letras, adivinhar coisas. E ela tem transporte para a escola? Ainda houve tempo que usámos o burro até meio caminho. Mas no Inverno ainda era pior e o burro, coitado, acabou por morrer. Ela vai assim, a pé, tem umas botas de borracha, roupa, o chapéu de chuva que era do meu avô. Já se habituou e gosta de professora. São muitos alunos? Já foram, já foram. Agora são onze e por isso não acabaram com a escola, como no Carrascal ou na Azinheira de Baixo. E tu, tu nunca estudaste? Aprendi a ler enquanto o meu avô foi vivo, ele tinha a quarta classe e gostava de ler jornais, mesmo atrasados, e havia um que era da freguesia, todo sobre as sementeiras, o estado das terras, os mortos. E a Esmeralda? Essa não tem nada, não pode, nasceu com pouco tino, com os olhos em bico. Mas é boa menina e sabe limpar, lavar, ajudar na cozinha. Então tu é que fazes o papel de mãe? Papel não, mãe tal e qual. As minhas irmãs precisam de mim. E têm que ser orientadas nas coisas, na rega, no cuidado com o transporte da água, na comida. A Esmeralda sabe os caminhos aqui em volta, os mais próximos, e vai buscar pão ao Forno do senhor Estorninho. Ele é nosso amigo. Por causa dele é que temos galinhas e sabemos de outros amanhos. Que é que tu estás roendo? Não sou rato, isto é oferecido pelo senhor Estorninho, parecem bolachas, pãezinhos, algum chouriço, é um grande amigo. Já levou a minha irmã Bendita ao médico, na Azinheira de Cima. E aonde arranjam dinheiro para o sustento? Pois então, como há-de ser, é das coisas que tiramos da terra e vendemos aqui, os ovos, alguns serviços que nos pedem, e de uma pensão que os senhores da Segurança Social nos mandam. É pouco, mas é o que resta da doença do pó que matou os nossos pais. E afinal tu, não me disseste o teu nome. Eu sou a Esperança.