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segunda-feira, outubro 12, 2009

ORFANDADES E SOLIDÕES, O DESERTO


Donde vieste? De longe, da Fragura, é da praça que a gente vive. Vives como, assim, e os teus pais? Já se foram, o pó de pedra deu cabo deles. Mas vives sozinha? Não, nada disso, cuido das minhas irmãs e trato da casa e arranjo a terra. Duas irmãs? Sim, a Esmeralda, que é bem mais, nova do que eu, e a Bendita, fez há pouco dez anos. Vão à escola, as tuas irmãs? E tu? Só a Bandita é que anda na primária, vai de manhã cedo e volta pela tardinha. Ainda nos ajuda um pouco, mas tem de fazer as contas e as letras, adivinhar coisas. E ela tem transporte para a escola? Ainda houve tempo que usámos o burro até meio caminho. Mas no Inverno ainda era pior e o burro, coitado, acabou por morrer. Ela vai assim, a pé, tem umas botas de borracha, roupa, o chapéu de chuva que era do meu avô. Já se habituou e gosta de professora. São muitos alunos? Já foram, já foram. Agora são onze e por isso não acabaram com a escola, como no Carrascal ou na Azinheira de Baixo. E tu, tu nunca estudaste? Aprendi a ler enquanto o meu avô foi vivo, ele tinha a quarta classe e gostava de ler jornais, mesmo atrasados, e havia um que era da freguesia, todo sobre as sementeiras, o estado das terras, os mortos. E a Esmeralda? Essa não tem nada, não pode, nasceu com pouco tino, com os olhos em bico. Mas é boa menina e sabe limpar, lavar, ajudar na cozinha. Então tu é que fazes o papel de mãe? Papel não, mãe tal e qual. As minhas irmãs precisam de mim. E têm que ser orientadas nas coisas, na rega, no cuidado com o transporte da água, na comida. A Esmeralda sabe os caminhos aqui em volta, os mais próximos, e vai buscar pão ao Forno do senhor Estorninho. Ele é nosso amigo. Por causa dele é que temos galinhas e sabemos de outros amanhos. Que é que tu estás roendo? Não sou rato, isto é oferecido pelo senhor Estorninho, parecem bolachas, pãezinhos, algum chouriço, é um grande amigo. Já levou a minha irmã Bendita ao médico, na Azinheira de Cima. E aonde arranjam dinheiro para o sustento? Pois então, como há-de ser, é das coisas que tiramos da terra e vendemos aqui, os ovos, alguns serviços que nos pedem, e de uma pensão que os senhores da Segurança Social nos mandam. É pouco, mas é o que resta da doença do pó que matou os nossos pais. E afinal tu, não me disseste o teu nome. Eu sou a Esperança.

2 comentários:

Miguel Baganha disse...

Uma metáfora breve que reflecte a condição humana numa só palavra: Esperança. É ela que move o Homem. Desde sempre.

- E afinal, tu não me disseste o teu nome...

" Eu?... tenho vários: Presente, Futuro. Há ainda quem me chame Destino. "

- Já sei quem és: és o outro, do Outro. Aquele que se multiplica numa sucessão de espelhos sucessivamente.

" Sim. Eu sou aquele que perece não estar em coisa alguma. "

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Um grande abraço, João.
Miguel

jawaa disse...

Que bonitos nomes para as meninas que ainda crescem pelos montes. Uma jóia a não lapidar, uma abençoada por ter escola e a outra, nome de Mãe.

Escrita rasgada que faz doer.

Um abraço