Estas duas imagens pertencem a dois instantes do longo e belíssimo travelling do filme NOSTALGIA, da Tarkovsky, num lugar vazio de banhos, lugar que o autor transfigura para uma sequência quase ritual ou litúrgica, a prece por alguém, a promessa de alguém, terrível travessia sobre pedras, restos de água, detritos de lata, na condição processional que é, só por si, e também, figuração do sacrifício e da esperança que a chama de uma vela transportada pelo personagem se mantenha contra a brisa do tempo indefinido. Duas vezes a chama se apaga, três
vezes o penitente recomeça. Ele ainda nos explica, com os edos, que à terceira é de vez, superstição das pessoas, propiciação da esperança e da perpetuidade do fogo em partilha com a água.
vezes o penitente recomeça. Ele ainda nos explica, com os edos, que à terceira é de vez, superstição das pessoas, propiciação da esperança e da perpetuidade do fogo em partilha com a água.
Num silêncio nem absoluto nem puro, o homem mostra-se o grande inventor de todos os ritos e todos os mitos, com os quais procura exprimir-se para melhor se conhecer. A grandeza desta cena de Tarkovsky é, só por si, um filme completo, talvez a história de um Sísifo triunfador, exactamente quando conseque atravessar todo o espaço inominável, sempre com a chama acesa, numa delicadeza difícil de sustentar, e cujo sentido ontológico nos vem declarar a permanência dos elementos vitais, o fogo e a água.
É porventura trágico viver-se numa época em que o objectivo deste inabalável discurso da travessia entre a morte e a vida, um renascer construído com tal metáfora, não voltará a ter equivalente no cinema de amanhã, aquele que se aproxima, tecnológico e autista, lúdico e impensável, como uma grande onda capaz de engolir cidades inteiras, sem direito a restos, algo que talvez aponte um futuro onde a beleza ensurdecedora das obras de Tarkobsky não passrá de património arqueológico, devoradoramente investigado por alguns sábios cujo interesse reside, com efeito, em demonstrar que o homem do século XX já era um ser pensante, para o qual a filosofia vogava nas palavras e nas imagens, apenas tornando visível a profundidade confusa de todos os genocídios. Os cientistas que procuram o passado e as suas grandezas, talvez antecipações do futuro, índicações da morte irrevogável, saberão concluir que nunca mais haverá as Grécias de um tempo restrito, o silêncio significante de NOSTALGIA, porque se terão fechado as fábricas onde o pão se fazia contra o silêncio, à superfície e no abandono. A verdadeira performance do homem não está em Deus, está, como Tarkovsky nos mostra, nele mesmo, pela Arte. Toda a transparência do ser está na singeleza ímpar deste rito, feito para lá do vazio, sempre através da água e do fogo, que muito poucos meditarão com esta exacta grandeza, daqui a cem anos, já sem arte nem sonhos, apenas de frente para a orgia espectacular, no crepúsculo da imagem do fogo bruxeleante e no pântano onde a água desaparece. Será um tempo em que, inexplicavelmente, cada vez mais, milhares de pássaros caiem do céu, sem razão nem ruído.
foto de Rocha de Sousa
2 comentários:
João, amigo:
a sua retórica interpretativa sobre a razão de Ser é tão justa e bela quanto a de Tarkovsky (explorada neste magnífico filme e em toda a sua obra cinematográfica).
O Homem caminha, desde o início, para cima e para baixo inventando, criando, recriando - um movimento contínuo e penitente sem grande apelo espiritual cuja ontologia nunca será suficiente para o explicar. Talvez o verdadeiro milagre seja paradoxal: procurar e esperar pela verdade autêntica interminavelmente.
Godot ainda não veio e o Homem numa espera sem fim, adormece caindo no abismo da sua própria consciência.
Quanto a mim, parece-me que as coisas belas não se devem repetir. Acho preferível continuar a tentar inventa-las - nem que leve a vida inteira.
Obrigado por tudo, mestre.
Um abraço,
Miguel
Há sempre uma razão funda para que os pássaros tombem do céu sem ruído.
Também nós cairemos um dia, sem apelo nem agravo, e não tenho a certeza se haverá sequer, daqui a cem anos, lugar para a Arte.
Dos Humanos, digo.
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