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quinta-feira, fevereiro 17, 2011

QUANDO DEUS USA A EUTANÁSIA EM SOLIDÃO

oito anos de morte em profunda solidão
O país dorme no cansaço da crise. Como já envelhecera em famílias ordeiras sob o eufemístico rigor de Salazar. A morte era tratada em litúrgica beleza, triste ou trágica, por famílias que acompanhavam as floridas encenações em horas de espera ou marcha, velando os defuntos como se ainda estivessem dormindo, daí a pouco prontos para uma espécie de ressurreição pacificante. Os velhos morriam a tempo e horas, após os últimos martírios, por vezes inconscientes sob os efeitos da morfina, aplicada sempre que possível e aconselhável, líquido administrado no instante mais terminal de todos, ou na espera dura, derradeira, para que o fim concreto do acamado pudesse depender apenas da decisão divina.
Com o avanço da medicina e a ordem pública do Serviço Nacional de Saúde, os idosos tornaram-se cada vez mais velhos, embora alguns ganhem o benefício de passar os cem anos, juntando a memória do tempo monárquico aos ventos da República, ao 25 de Abril e a estranhas inovações entre as escolas e os hospitais, entre as finanças e as esmolas do Estado aos mais deprimidos.
Mas há bons sinais que antecedem as marcas da perda, crises nacionais e internacionais, entre as tinyas sujas mas niveladoras da globalização, algo que um dia acabará com os países, as histórias, as culturas, apenas para dar forma a um enorme bingo, sem rosto nem identidade verdadeira.
E falando nocamente em sinais, devemos reflectir o mais possível nos mortos solitários, casos de outrora mas também, impensavelmente, de agora, achados aqui e além, por vezes nove anos depois de se haver partido o fio da vida. Quem é esta gente? Que anunciação pode atingir-nos desta maneira, ao lado das estradas e dos carros de luxo, das cidades atulhadas, das emigrações aterradoras, reinventando por mar aquelas, nos anos 60, as que os portugueses assumiam a salto, sonretudo para França. Alguns morriam por lá, mas não, apesar de tudo, ao abandono. E deixavam em Portugal uma casa de bonecas, todas parecidas umas com as outras, simbiose de culturas, o gado recolhido em baixo, a escada exterior, a ben-aventurança no piso superior.
Na fotografia aqui inserida, em baixo e depois de um corpo morto (pintura), corpo descomposto de uma pobre avó sem pertences nem filhos nem netos.

lugar e apoio aos solitários idosos foto de Adriano Miranda

Um jornalista sádico legendou a fotografia, na base de uma citação institucional, esta frase: o ideal é que os idosos se mantenham no seu ambiente, desde que acompanhados por estruturas de apoio. É como falar na defesa do inquietante património destes fantasmas. Alguns responsáveis desta área da organização social falam de idosos que se encontram autónomos e a viver nas suas casas, tristes e sós. Perto de 40% dos idosos sobrevivem nessa condição um resto de vida, em casa, com mais de 65 anos de idade e auito-sequestrados (ou doentes) durante mais de oito horas por dia, admitindo, em certos momentos e de viva voz, que se sentem todo o tempo tristes e deprimidos.
Villaverde Cabral, do Instituto de Envelhecimento da Universidade de Lisboa, fala da «urgência» (talvez uma urgência imanente que vai escapando cada vez mais aos gritos mutilados do género humano) e aponta a necessidade de meios e métodos para amparar este fenómeno.
«É pena que tenha de haver casos trágicos como este para que a opinião pública tome consciência do problema cada vez mais frequente do isolamento em que vive uma grande parte dos idosos.»
O Sistema, ao contrário, é que criou condições geradoras do mo do como estas mortes acontecem. Porque os vizinhos (opinião pública) sempre e depressa ajudaram os lugares habitados e a narrativa da vida não acontecia apenas e por acaso na televisão. A solidão que leva a estas mortes sem qualquer chamamento é o ramo perverso do abandono sistemático das pessoas sem meios que talvez se entreguem, exangues, ao último prato de fome. Lá fora, depois do deserto do país, saltita a cultura meridional do consumo e do crescimento. Qual crescimento. Que indecência é essa de imaginar tampões da apoio antes que os cães desatem a correr pelos quintais e venham devorar os próprios humanos seus companheiros?
Fechem depressa as catedrais do consumo, em papelão e publicidade interminável. Visitem os que não precisam de prémios nem de descontos.
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Entre as notícias sobre este assunto, destam-se seis casos de descobertas de pessoas mortas em casa, sozinhas, algumas («desaparecidas») há muito tempo. Augusta Martins, 95 anos, Rinchoa, Sintra, foi encontrada morta após 9 anos. Em Matosinhos, um homem morto assim, só foi encontrado após instantes protestos dos vizinhos. Cantanhede: um reformado do Exército, 71 anos, esteve morto, durante três meses, em casa. Amadora: Ex.PSP, Ernesto Henriques. esteve morto em casa dez dias. Ourém: Corpo de homem de 67 anos encontrado em Ourém. O laconismo da notícia começa a ser significativo. Faro: Um homem de 65 anos morreu sozinho na sua habitação.
Quantos mais casos haverá por este país fora, fruto de uma sociedade onde ascmunidades se desfizeram e a pressa de antecipar o futuro conduz as pessoas a comportamentos alucinatórios e a esquecimentos como estes. Há sítios onde muitas portas fechadas desde há anos, habitação de vizinhos que foram perdendo o rosto, vão certamente ser abertas com mais frequência. É que uma decente organização civilista pode passar a encontrar, em casas e lugares, mais vivos do que mortos.