Todos me foram dizendo, desde a adolescência, que os meus talentos apontavam para a pintura, embora eu soubesse que essa indiciação se confundia concretamente com outras viagens, outras famílias, um gostoso artesanato de escritas e leituras na base de Júlio Verne e Flamarion. Marte tinha canais, sim senhor, a Lua vivera um tempo de mares e continentes. Mal sabia eu que os telescópios desse tempo estavam apetrechados com grossas lentes para congénitas miopias. Não reparem no alinhavo destas notas. E devo dizer-vos que a fala deste texto, ao iniciá-lo, voa por uma sugestão mansa — Vá devagar, mãe, como naqueles dias em que tudo parece lento, a chuva, até os sonhos, os seus passos. Ora esta tentativa de começar um filme doméstico, porventura tocado de impressivas memórias, acontece cerca de trinta anos depois dos longínquos dias dedicados à praia, solidões arenosas e gente ainda rara. O tempo, nesta obra, ocorre a quem escreve em termos de descontinuidade, porque, em idades adiantadas, só se pode calcular maturidades dedilhando comovidamente os laços antigos, sob a memória das equações ainda erradas mas já fascinantes. Por isso é que a mãe Maria morre numa data absurda, já a guerra se aproximava do fim e já a pastosa aprendizagem do desenho com paus de carvão, diante de cabeças em gesso, me segredava que esse deixara de ser o caminho do futuro. E um dia, perdido num comboio quase vazio, em que o tempo parecia lento e dissipado, a melancolia que Angola me cravara no peito atravessou comigo todo o Alentejo meio deserto, apesar de sinalizado, de longe em longe, por casinhas espalmadas no alto das colinas, donde os cães desatavam a ladrar contra a grande «anomalia» da máquina a vapor, fumegante, porventura ameaçadora, rolando majestática.
Uma simples frase retirada do corpo deste livro, pode gerar sentimentos, gritos para nada, sentimentos que atravessavam a história e pareciam decidir por ordem os devaneios festivos ou vidas e mortes ao acaso: Maria, descida à terra, abraçando os ossos que diziam ter sido retirados da urna já pôdre onde meu pai fora colocado e na qual se desfizera como no poema em que ele dizia ter o corpo preso à terra e via a sua alma voando de mundo em mundo. Como se vê, este livro é sobre um acontecer inquieto, arrancado à terra, à vida e à morte da família, onde se convoca pela arte os desentendidos destinos humanos, entre grandezas efémeras e gente mastigando desordenadamente, no limite do absurdo, a sua difícil condição humana.
Incapaz de perceber e viver a cidade grande, a verdade é que nas Belas Artes, ao contrário do que diziam vozes iníquas, nada nem ninguém me furou os olhos.
Um comentário:
Certamente que não faltarão passageiros com vontade de fazer esta viagem, João. Uma viagem ao centro do seu mundo e das gentes que aconteceram tão inquietamente (e ainda bem) dentro de si. Estarei lá, com toda a certeza, homenageando o homem, o mestre, o amigo por tudo o que fez, pelo tanto que o constititui como ser-humano.
Parabéns por mais um, amigo.
Até logo!
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