Engoli uma pedra esta manhã.
Pão de pedra, passos na hora.
Achei coisa de engolir depressa,
os passos partindo, nocturnos.
Mas depressa a coisa ficou presa na garganta,
nem pão nem pedra.
Falta-me o ar,
bebo água que logo retorna, inútil.
Meto os dedos na boca,
empurro o pão para o estômago,
pão ou talvez pedra.
É pedra, certamente,
mas incha como pão
e eu julgo estar prestes a vomitar,
entre pausas.
Deixo-me cair de joelhos,
apoiando o queixo no cano da arma engatilhada.
Que vem por aí, que respiração é esta?
A arma engatilhada,
os meus pés já enviesados
arrastados pelo chão.
De joelhos, sobre calhaus redondos e pretos,
a lua acesa por cima
da minha cabeça tombada.
Tenho ordem para matar,
Duros, os calhaus nos joelhos.
Dura, e já imensa, a pedra
tomando conta das minhas entranhas.
É urgente, raios, partir a pedra seja como for
e vomita-la.
Agoniado como nunca,
curvo a espinha
forçando o vómito
num urro interminável
como se me rasgasse em sangue
e a pedra solta-se, de súbito, ao contrário:
na avidez de me salvar accionara o gatilho,
e centenas de mais pedras entraram-me pela boca aberta
num estoiro imenso:
o tiro a que eu estava mandado
cumpria-se assim, invertido,
num brutal desmando.
versos de rocha de sousa e fotografias de maria jawaa
2 comentários:
A lucidez pouco ortodoxa (para não dizer falta dela) deste poema é o que nos persuade à emoção extrema, ao delírio real da irrealidade de um sonho, à verdade de um momento introspectivo, revelador da inquietude humana sempre idagadora da sua própria identidade, da sua própria existência.
O suícidio é, talvez o maior problema da existência humana - "Ó maior dos maiores que não resolves nada".
- Quem disse isso?
"Eu."
- Logo vi.
O lirismo (ou lógica) exacerbado
Sempre se vestiu com as cores
Da incongruência.
"O que queres dizer com isso)"
- Podia responder-te
Mil uma coisas,
Mas, visto a tua condição,
É melhor deixar esse serviço
Para uma citação de um colega teu:
«Ver muito lucidamente prejudica o sentir demasiado. E os gregos viam muito lucidamente, por isso pouco sentiam. De aí a sua perfeita execução da obra de arte.»
"BUM!..."
- O que foi isso?
"Foi o som da minha decepção.
Um autêntico estouro!..."
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O MANDANTE E O MATADOR AO ANOITCER:
Um poema, uma ode, uma lírica desassossegante, uma decepção. Um belíssimo trabalho, enfim, onde as fotografias de Jawaa ilustram adequadamente o delírio saudável do "às vezes" poeta Rocha de Sousa.
Gostei. Muito.
Um abraço
Para um escritor de águas fundas, a poesia serve de catarse nas horas em que «a pedra cresce dentro do peito».
Este poema é magnífico na sua construção, fílmico, cena de princípio e fim, aqui muito bem apresentada entre imagens.
Foi só a pedra partida finalmente, (considero um final aberto), Camus também não aceitava o suicídio, apenas a revolta e a solidariedade depois, depois da consciência e da revolta, a amansar as águas.
Uma bela construção do feio, bem à maneira do autor, transmitindo emoção e angústia.
(E as javas que se acautelem, há caçadores por perto!)
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