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sexta-feira, junho 17, 2011

ARTE PODE DIZER A VERDADE PELO EMBUSTE

fotografia de Miguel Baganha


Digamos que a arte não é uma coisa nem um conjunto de coisas. Mas o que serão as coisas sem a arte para as sonhar ou dizer, aceitando nomes, silhuetas, desperdícios?

Em boa verdade, essas junções, corpos nomeados e mortos por uma simples alcunha, nada disso nos escapa, entre paradoxos e cataratas da memória, um fio de nostalgia, um sentimento de surpresa. Vou pela rua e deixo que o meu olhar se assuma voyeur, aconchegado aos reflexos das montras e aos riscos de uma vandalização pueril. Foi por isso que tive de parar, fazendo uma volta de pequenos passos, da direita para a esquerda, a fim de reconstruir o que as minhas sensações mal haviam indagado no campo tão contingente de percepção visual.

Retocado o ponto de vista, acertei o vértice das lajes que formavam o passeio: os botins de senhora, azuis pardo, tacões bem esguios, jaziam, bem perto da parede mas arrumadamente quase em ângulos rectos através da orientação dos canos, um adoçado à parede, pouco erudita, e o outro, descendo na minha direcção, lado esquerdo, paralelo ao primeiro, ou quase, e o outro, descendo na minha direcção, lado esquerdo, paralelo ao primeiro, ou quase, enquanto as pontas das botas, cada uma para seu lado, naturalmente à esquerda e à direita alta, garantiam a saúde do design proposto, mas não tinham alcançado um perfeito e oriental alinhamento, fosse ele qual fosse, com o desenho dos ângulos das lajes, rectos, de bicos voltados para nós, dois completos e um pequeno triângulo sobejamente atrás da bota mais além. Sinais curtos, de cima para baixo (doze, pelo menos) eram a modernidade instrumental do sopro, assim, cadilhos breves, chovendo sobre a irónica composição instaladora que se completava em baixo. Ali, no ponto de vista que resgatou uma particular imagem do devaneio quotidiano.

Mas isto não é nada disto, obviamente, ou pode não ser. Primeiro, porque as botas de senhora não são restos sarcasticamente abandonáveis. Segundo, porque o desenho angular ou modular do chão em pedra está longe de formar um suporte irreparável para as coisas «abandonadas». Terceiro, há uma distância mais ou menis previsível entre o tempo do lançamento dos sprays e o resto.Assim, podemos admitir dois aproveitamentos transitórios das coisas como coisa em si. Donde a fotografia passa ao nível do fait-divers e as botas terão em breve o seu dono. Sociologi- camente, podemos citar, nesta instalação, um retrato do quotidiano do século XX (ou mesmo XXI), ocasional ou propositado, que acabará por reflectir, conforme o nosso juízo, o despudor do consumo e a visão redutora da utilidade dos equipamentos urbanos.

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Com base em excertos de obras de Foucault, este pequeno ensaio de indagação sobre a coisa vista repõe o problema da percepção, do real e do visível, da representação e da aparência, da instalação e do embuste.

quinta-feira, junho 02, 2011

IMAGENS DE GENOCÍDIOS CONTEMPORÂNEOS

entre os conflitos que ainda hoje estão a começar um pouco por todo o mundo, evocam-se genocídios que marcaram o século XX e que nos despertam para o futuro, tendo em vista o que há bem pouco tempo ocorreu em vártios pontos do globo, a fragmentação do que foi a juguslávia e o horror em certos países africanos
como aconteceu no Burundi, 800.000 mortos que não tiraram o sono aos europeus, nem perto da linha que tanto atrai a NATO para a Líbia.




Ontem, ao entardecer, entre coisas indevidas por todo o chão, havia gente no passeio, entardecendo, murmúrios de gente que nem movia os lábios, gente curvada, pisando as folhas, passos lentos. Ao entardecer, ontem, eram velhos aliviados do peso da vida sem rumor nem temor por isso. Eles ladeavam, em deriva, a ideia da morte e os lugares dos mortos para sempre. Lugar negro. Passo a passo. Perdidas as sandálias no chão invisível, e nem sequer se dava por um fio de matéria pisada, passo a passo, pés descalços entretanto, as pernas nuas sob o manto das horas acabadas. Horas acadas assim, até a brisa se confundir com o bafo das meias palavras no curto pisar das folhas, passos quase longe, um riso curto de si mesmo. Chegaram então as luzes. Ou surgiram miniaturais no horizonte crispado. Era um cerco de luzes parando os passos, retorno torneando os que estavam ficando, temor no urmor vindo dos lados todos. Os que vinham em silhueta, vinham sem olhos, todos cegos entra a venda contra as pálpebras e a mordaça nas bocas, porque as falas também dão a ver, ver sobretudo por cima daquele rumor abrangente, a crescer, vasto círculo aumentando o seu espaço para negar a natureza do seu centro onde se viam, finalmente as populações emigradas. desatentas, temendo coisas estranhas e muito mais inquietantes do que o relento das noites. Ouviam-se ordens rápidas e ríuspidas, de longe, de perto, em volta, luzes afinal cegando quem estava livre de ver. De súbito, uma imensa e rangente trovoada rompeu o espaço, rente às cabeças apertas pelas mãos. Era um som a rolar atrás de uma chuva de estilhaços ou mais de cem mil tiros soltando-se em rajadas sem parar, rente, laminatmente, como a grande foice do Apocalipse. E a luz começou então a tremer, com tanto fogo e tantas sombras, gente de súbito irreconhecível, parecia tropeçar, desistir da corrida, ferida, e já ali perto montes e montes de mortos, atirados sem ordem no acaso dos casos, sobre moribundos que procuravam renascer, clamado, impróprios, pelas mães que já ninguém sabia quem eram. Que foi isto? Quem nos quer tanto mal? Arcanjos de asas pretas, diziam duas velhas já de luto.


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Rocha de Sousa