fotografia de Miguel Baganha
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Digamos que a arte não é uma coisa nem um conjunto de coisas. Mas o que serão as coisas sem a arte para as sonhar ou dizer, aceitando nomes, silhuetas, desperdícios?
Em boa verdade, essas junções, corpos nomeados e mortos por uma simples alcunha, nada disso nos escapa, entre paradoxos e cataratas da memória, um fio de nostalgia, um sentimento de surpresa. Vou pela rua e deixo que o meu olhar se assuma voyeur, aconchegado aos reflexos das montras e aos riscos de uma vandalização pueril. Foi por isso que tive de parar, fazendo uma volta de pequenos passos, da direita para a esquerda, a fim de reconstruir o que as minhas sensações mal haviam indagado no campo tão contingente de percepção visual.
Retocado o ponto de vista, acertei o vértice das lajes que formavam o passeio: os botins de senhora, azuis pardo, tacões bem esguios, jaziam, bem perto da parede mas arrumadamente quase em ângulos rectos através da orientação dos canos, um adoçado à parede, pouco erudita, e o outro, descendo na minha direcção, lado esquerdo, paralelo ao primeiro, ou quase, e o outro, descendo na minha direcção, lado esquerdo, paralelo ao primeiro, ou quase, enquanto as pontas das botas, cada uma para seu lado, naturalmente à esquerda e à direita alta, garantiam a saúde do design proposto, mas não tinham alcançado um perfeito e oriental alinhamento, fosse ele qual fosse, com o desenho dos ângulos das lajes, rectos, de bicos voltados para nós, dois completos e um pequeno triângulo sobejamente atrás da bota mais além. Sinais curtos, de cima para baixo (doze, pelo menos) eram a modernidade instrumental do sopro, assim, cadilhos breves, chovendo sobre a irónica composição instaladora que se completava em baixo. Ali, no ponto de vista que resgatou uma particular imagem do devaneio quotidiano.
Mas isto não é nada disto, obviamente, ou pode não ser. Primeiro, porque as botas de senhora não são restos sarcasticamente abandonáveis. Segundo, porque o desenho angular ou modular do chão em pedra está longe de formar um suporte irreparável para as coisas «abandonadas». Terceiro, há uma distância mais ou menis previsível entre o tempo do lançamento dos sprays e o resto.Assim, podemos admitir dois aproveitamentos transitórios das coisas como coisa em si. Donde a fotografia passa ao nível do fait-divers e as botas terão em breve o seu dono. Sociologi- camente, podemos citar, nesta instalação, um retrato do quotidiano do século XX (ou mesmo XXI), ocasional ou propositado, que acabará por reflectir, conforme o nosso juízo, o despudor do consumo e a visão redutora da utilidade dos equipamentos urbanos.
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Com base em excertos de obras de Foucault, este pequeno ensaio de indagação sobre a coisa vista repõe o problema da percepção, do real e do visível, da representação e da aparência, da instalação e do embuste.
Um comentário:
A arte, efectivamente, pode dizer a verdade pelo embuste. Mas o "embuste" não é unicamente criado pelo artista: o próprio fruidor, nalguns casos, também "inventa" a verdade daquilo que vê (para tentar exprimir a sua própria verdade).
Percepcionar faz parte do universo cognitivo do Homem, característica sensorial que concede a cada um de nós o direito a uma interpretação individual baseada quase sempre nos fait-divers de viv~encias passadas.
Em todo o caso, e tal como Focault nos faz crer: nem tudo o que parece é, mas ao mesmo tempo, tudo o que é não tem necessariamente de o parecer.
Um abraço,
Miguel
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