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domingo, outubro 23, 2011

UMA EUROPA SEM GUERNICA NEM SENTIMENTO


nem Guernica nem sentimento | Rocha de Sousa

Não, de facto este desenho não se inspirou na Guernica, de Picasso, mas também não foi pensado num total esquecimento dela. A povoação que ajudou a gerar aquela famosa pintura sofreu um ataque brutal, em formação geométrica, pela força aérea da Alemanha de então, a Lufthansa, tendo ficado arrasada. Uma tal tragédia ocorreu sob o signo do treino e da geometria da quadrícula. Nada restou. Ou melhor: restou a memória da vida anterior e do próprio silêncio de gemidos ao fim do bombardeamento, os destroços, os rostos devastados. Seja como for, e depois da guerra que Hitler perdeu às mãos dos Aliados, num farrapo de doença e teimosia, porventura suicidando-se, a Alemanha, ajudada pelos próprios recém-inimigos, lambeu metodicamente as suas feridas e logrou reconstruir o seu corpo e organizar o seu território. A despeito do muro, o Muro de Berlim, que a União Soviética, descontente com a brandura e o poder do Ocidente, ergueu naquela cidade, atravessando-a com a mais simbólica das fronteiras, a fronteira intransponível, dois blocos gigantescos e adversos. Assim fraccionada, Berlim ofuscou as mentes do desenvolvimento e do consumo, a Ocidente, e tornou-se escassa e dominada a Oriente era aí chamada República Democrática Alemã, ironia das palavras, metamorfose dos conceitos, talvez dos princípios, determinação dos russos. E assim o mundo foi vivendo, de um lado e do outro, num medo paranoico à medida que ambos os blocos se municiavam de bombas atómicas e mísseis intercontinentais. Ninguém, afinal, era capaz de minimizar Hiroshima e Nagasaki.
O século XX foi a época em que tudo isso aconteceu e em que os países se organizaram como democracias, sob o chapéu capitalista e a social-democracia, vivendo, em todo o caso, risonhas esperanças de futuro: assim, uma reconstruída Alemanha acabou por absorver a RDA, integrando-a e reunificando-se. Aconteceu depois a queda do Muro de Berlim (durante a Perestroika) e a Alemanha intensificou decisivamente a sua influência a todo o espaço do continente.
As crises do crescimento, embora encobertas ou disfarçadas, foram absorvendo a melodia doce daquela Primavera que até a Portugal chegou. Acabara a guerra colonial e o triunfo do 25 de Abril de 74 abriu o país ao manejamento dos Estados Unidos da América e da própria Europa, sobretudo quando se criou a ideia da união nesse último espaço, outrora tão torturado, império falhado no projecto de Hitler, e se instituíu outra força, uma força monetária, a moeda euro, extensível progressivamente a toda a Europa. Os grandes organismos institucionais, Parlamento Europeu, Comissão, entre outros, tudo foi posto a funcionar com um febril pragmatismo de medidas e reorganização das próprias configurações produtivas dos países aderentes. Portugal empolgou-se e lá foi arrecadar os euros dos subsídios compensatórios, tendo, nessa mesma linha, perdido sectores tradicionais e tão importantes como parte das pescas, quase toda a agricultura, muita indústria que afinal nos completava em definição.
Não está de boa saúde, esta Europa a que pertencemos, com euro e tudo. Apesar das boas esperanças de Jacques Delors, o prosseguimento do novo, grande poder, alinhado pela globalização, suas virtudes e seus defeitos, não se consolidou no século XXI com a devida consistência, solidariedade e plural sentido de coesão. Uma crise financeira internacional, com génese numa derrocada no interior do capitalismo americano, encheu o tal mundo global de vários tsunamis. Os países que se tinham endividado na base de confiança que a a União Europeia parecia suscitar, bem depressa se viram cercados por avisos à navegação e medidas ou ameaças de derrocada. Portugal ensandeceu. No meio do oceano agitado, e com a queda de países como a Irlanda e a Grécia, Potugal, já ensandecido, continuou a viver na ilusão libertária do país das maravilhas, enchendo-se de casas, iates, carros de alta cilindrada, autoestradas em detrimento da via férrea, camiões Tir fumegando como lagartas de sul a norte, ao largo do mar salgado que nos defendera de tanta escassez e menoridade territorial. Os partidos políticos ainda não passaram da fase de aprendizagem da democracia e enchem o parlamento de gritaria e diversos tipos de insulto: estar na oposição é estar cegamente contra, estar no poder é ter cegamente razão. Tendo pedido a ajuda do FMI, uma, duas, três vezes, o país acabou agrilhoado à mais feroz das austeridades, método (dizem os entendidos) que permitirá equilibrar as finanças e relançar a economia. A Grécia, em pior situação, encheu-se de conflitualidades de rua, e os grandes da Europa (Alemanha e França, cujas dívidas iniciais foram engolidas) desataram a descrever ameaças de expulsão do euro, embora alguma parte dos parlamentares de Bruxelas se inclinassem para medidas estruturais e de fundo, capazes de reverem em parte os tratados, redimensionando as dívidas soberanas, reforçando um fundo de ajuda e meios de recapitalização do enviesado sistema bancário. Isto estava ontem na forja, depois de um namoro tempestuoso de Sarkozy e Angela Merkel, sempre feito de reuniões a dois e decisões de fundo, absurdas, sem consulta nem do Parlamento Europeu nem da Comissão. Merkel passeia em todos os cenários dessa Utopia enquanto Delors sorri com amargura. Portugal, primeiro tratado como lixo periférico, ganhou alguns pontos com a execução do Orçamento de Estado, com a resposta ao Memorando da Troika (FMI), recbendo alguns elogios. Elogios que o vento leva depressa. Elogios que soçobram ao azedume de Merkel que insiste em cacarejar pela necessidade imperiosa de punir todos os que prevariquem na dívida e na escassa resposta aos problemas entretanto criados. A Alemanha, que beneficiou de fundos internacionais para renascer da derrota na Última Grande Guerra, parece estar longe de ter uma visão abrangente e dinâmica da Europa, atropelando muita gente com a resistência que a França e outros copiam. Se a reunião dos G-20, na próxima quarta feira, não tiver proveitos determinantes, o euro entra na sombra e os tais países periféricos têm a miséria pela frente. Mas os males podem ser maiores e a agressividade dos desprotegidos, afundados pelos novos impérios, lentos impérios, pode acentuar-se. Que a Alemanha não beba a cicuta dessa taça e aceite que as culturas convivam, que a história seja possível, que a dignidade seja reconhecida aos humildes. Acabaram as Vanitas. As imagens emergentes são outras, bem as vimos em Atenas, Roma, Madrid e em mil cidades, num só dia, por todo o mundo.


sábado, outubro 15, 2011

OBRA LITERÁRIA E PLÁSTICA DADA EM LIVRO


AS COISAS

E AS PALAVRAS

autores
rocha de sousa
maria João gamito


Voltemos a Sísifo. É difícil fechar os olhos e decidir morrer. A lâmpada da Guernica continua acesa no tecto do mundo. E entre as pedras todas, amontoadas, sem que algumas delas nos pertençam por destino, há sempre o fragmento paradoxal do recomeço, o detalhe e o apelo que conduzem à escolha. Um resto de memória. A simulação da permanência.
Sísifo seremos nós, à espera da palavra?

Há a encosta, a planície, breves dunas, e a praia deserta. Viajando entre a espuma esponjosa da maré e do declive das areias além, olha-se na perpendicular, na direcção das nossas próprias marcas, e o que vemos são coisas. Estão ali desde o início do mundo, sem deuses nem homens, à espera de um rosto, de um nome. Ou da imagem da imagem delas (coisa sobre coisa) para que a palavra lhes dê sentido e as faça destino recomeço substantivado, ficção pelas memórias, o visível e o dizível inventando-se como amanhãs possíveis.

Esta exposição começa com uma escolha «ao acaso» e o encontro pensante (mas consciente de Sísifo) de duas pessoas diferentes, cujo trabalho por vezes reúne e as obriga à «semelhança» das conclusões. É um facto trivial, quotidiano, sem mistério nenhum, mas dificilmente determinável na assinatura individualista dos objectos/projectos que os operadores da cultura nos propõem à meditação e à posse.
Perante coisas sem nome tudo o que parte da planície chega ao cume do continente para regressar ao anonimato põe-se o problema da nomeação feita e partilhada colectivamente. As coisas, enquanto aparência absurda, desafiam a paixão solitária: na invenção de riscos, de símbolos gráficos, de símbolos fonéticos, princípio estrutural de quem somos no centro de um mundo que obviamente nos excede.
De facto, ao artista não basta a descoberta solitária. Há sempre um dia em que ele se interroga com os outros homens: «Estas são as minhas palavras. Quais são as palavras dos outros?» A meio da encosta, entre dois recomeços, a solidão pensa-se assim em termos de solidariedade e a aventura de cada nomeação, embora mais difícil, torna-se mais fecunda. A urgência da fala passa pela soma do esforço em conjunto (hoje sobretudo): trata-se de saber o valor das individualidades na consonância possível das reflexões, a par dos individualismos trágicos que a História nos aponta (esplendorosamente) após cada recomeço na ficção do futuro.

Que importa quem escreveu as imagens e quem desenhou os textos? É preciso dar o exemplo da humildade no acto de partilhar as memórias como o corpo de ficção. Eis o que se tenta aqui, através de um esforço de conjunto provavelmente pouco experimentado num espaço social onde, à escassez do risco e da convivência serena, se contrapõem rótulos e vulgares equívocos. Quando se pensa em conjunto, moderando para uma área comum (de nitidez) o apetite individual por afirmações definitivas, chega-se sempre a uma escolha nova. E é então que se entende melhor como nenhuma escolha é de «acaso»; ou que as coisas nomeadas, partindo da descoberta de um único objecto, se multiplicam em ferro, madeira, calcário, desertos e barcos, casas e cidades outra vez o lugar das marés, retorno por fim assumido como acto poético e não como derrota de solidões indizíveis.
Portanto ninguém assinará esta introdução: nenum dos dois autores dos objectos todos, nem uma terceira pessoa avalista institucional de méritos alheios. Se a pedra volta, de novo e apenas, para o lugar das marés, é talvez legítimo concluir que as vozes deste discurso, após a conquista de uma consonância ou de uma ideia comum, também têm no oceano da vida lugares próprios, entre a individualidade inalienável e a tarefa universal de Sísifo.

a pedra, entre textos e imagens

1+1

A todo o comprimento da praia, entre brandos rumores de espuma e vozes devolvidas pela falésia, um olhar preso à areia é um longo «travelling» sobre coisas sem valor concreto de uso por isso intemporais, por isso invariavelmente disponíveis. A maré dilata-se e encobre tudo, falsos cristais, restos de vida oceânica. Barcos de madeira esperam, com olhos egípcios imóveis. E os petroleiros passam silenciosamente nas rotas do mundo, colando-se ao horizonte da distância.
Pela manhã, a praia cresceu como os corpos vivos mas deserta de tão cedo, apenas o rumor da espuma e agora a imobilidade monumental da falésia. De novo a descoberto, sob o olhar lateral que se move, milhares de coisas diversas: conchas brilhantes de súbito raríssimas, pedras roladas que lentas sedimentações marcaram com faixas argilosas, desenhos impossivelmente naturais que o nosso imaginário reinventa todos os dias, sombras também. Olhar suspenso, paralelo ao solo, pedras e pedras e pedras deslizando, intervalos sem medida, pequenos cristais entretanto. Passam cintilações de carcaças frágeis onde já existiu vida invertebrada, nervuras de plantas aquáticas, rios de sal correndo nas fracturas abertas entre milhões de outras pedras em miniatura.
Dentro do mundo há sempre a maqueta do mundo.
Na distância, petroleiros laterais e longínquos sempre.
E então a pedra outra, vulgar, nem redonda nem facetada, acidente natural no espaço de todas as singularidades. Contudo, quando a retiramos do côncavo de areia onde permaneceu, o que resta do seu próprio rasto é um vazio indecifravelmente desconfortante. Coisa sem nome, só pedra, sedimento milenário de um pó a que não sabemos atribuir a palavra última. Coisa, antes de tudo, ou talvez primeiro instrumento de uma reconstrução: coisa de remeter (apenas e de novo) para o lugar das marés.
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Os textos publicados acima, e a fotografia e o desenho, constituem a abertura e o primeiro capítulo de um livro catálogo da exposição aqui referida. Há mais uma dezena de capítulos, sempre balanceados entre o texto e o desenho ou vice-versa, numa espécie de realismo gráfico que se reinventa na deriva da escrita. Ambos os autores reivindicam ambas as coisas. Muitos livros sobraram, leves, pequenos, graciosos e ponderados. Se alguém os quiser adquirir pode aceder a este blogue, solicitando, pelos meios usuais, a versão completa.

quinta-feira, outubro 06, 2011

ATRAVÉS DUM VER DIFUSO, A INVENÇÃO DO VER


fotografias de Rocha de Sousa

Não é a primeira fez que isto me acontece: um olhar súbito, difusa a sensação que resolve o ver, e logo uma coisa mudando para outra, sem que o espaço em volta se esclareça. De um lençol silencioso e branco, algo acontece no trajecto óptico até ao cérebro, difusamente, selecciona-me ruídos, manchas, um vago xadrez pendurado em contra-luz. Nada se passa depois disso: vejo as flores na varanda e os trabalhos no prédio do outro lado da rua, eternos. Então é tudo nítido, HD, mas os olhos parecem sensíveis a essa luz e acusam em ardor tal propriedade, as pálpebras ficam vermelhas no rebordo e as pestanas colam-se umas às outras. Não é um caso de cegueira, como alguns poderão pensar com o lençol branco e a branca cegueira do Saramago. É sobretudo a resposta ao excesso de real que me envolve, desde os velhos papéis que nunca mais conseguirei ler (porque são demais e amarelados) aos livros em pilha, depois de atravancarem a estante. Esse ciclorama de lombadas e de obras caídas, aparentemente mortas umas sobre as outras, eis a resposta da mobilidade visual, tarde na vida, quando os olhos são assaltados pelo excesso de experiências próximas, ruídos brandos e ruídos nenhuns, um sonho, uma vontade de entregar a face ao tecido branco, liso, silencioso e fresco. Talvez para dormir. Talvez para pensar melhor.