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quinta-feira, outubro 06, 2011

ATRAVÉS DUM VER DIFUSO, A INVENÇÃO DO VER


fotografias de Rocha de Sousa

Não é a primeira fez que isto me acontece: um olhar súbito, difusa a sensação que resolve o ver, e logo uma coisa mudando para outra, sem que o espaço em volta se esclareça. De um lençol silencioso e branco, algo acontece no trajecto óptico até ao cérebro, difusamente, selecciona-me ruídos, manchas, um vago xadrez pendurado em contra-luz. Nada se passa depois disso: vejo as flores na varanda e os trabalhos no prédio do outro lado da rua, eternos. Então é tudo nítido, HD, mas os olhos parecem sensíveis a essa luz e acusam em ardor tal propriedade, as pálpebras ficam vermelhas no rebordo e as pestanas colam-se umas às outras. Não é um caso de cegueira, como alguns poderão pensar com o lençol branco e a branca cegueira do Saramago. É sobretudo a resposta ao excesso de real que me envolve, desde os velhos papéis que nunca mais conseguirei ler (porque são demais e amarelados) aos livros em pilha, depois de atravancarem a estante. Esse ciclorama de lombadas e de obras caídas, aparentemente mortas umas sobre as outras, eis a resposta da mobilidade visual, tarde na vida, quando os olhos são assaltados pelo excesso de experiências próximas, ruídos brandos e ruídos nenhuns, um sonho, uma vontade de entregar a face ao tecido branco, liso, silencioso e fresco. Talvez para dormir. Talvez para pensar melhor.

2 comentários:

jawaa disse...

Sentir a vida, ainda que através de uma renda diáfana, é participar dela.
Reflectir, como sempre faz, e bem.

Miguel Baganha disse...

Este murmúrio íntimo, breve nas palavras e extenso nas emoções será guardado junto de tantos outros: ensaios e pequenos textos, livros, fotografias e pinturas, fragmentos de memórias não difusas, mas antes feitas à luz cristalina duma mente plural capaz de reinventar o modo de ver (e do dizer) a cada segundo.

Este também irá comigo. Porque sim.
Um sorriso, sempre.