Ainda se lê muitas vezes, em prefácios de certas obras, a propósito texto, história, aparente correspondência de factos, a seguinte nota: qualquer semelhança entre a realidade e esta obra é pura coincidência.
Eis o que acontece com o livro «Lírica do desassossego». Para muitos, contudo, nestes e noutros casos, a coincidência, citada de tal forma, não passa de um aviso furtivo, encobrimento de diferentes veracidades. Há quem a entenda, por exemplo, como previdência cautelar, antecipação da desculpa ou alteração decisiva da cor de um novelo que se desenrola sem montagem.
«Lírica do desassossego», assegura o autor, coincide no título e na crise de um vídeo que realizou, há largos anos, com alguém que estava de passagem por Lisboa. E acrescenta, por sua vez, que a coincidência dos títulos das duas obras é sobretudo um modo de registar de igual maneira um romance e um filme, apesar da diferença de conteúdos formais. Haveria problema se o filme estivesse publicado e pertencesse a outro autor.
Rocha de Sousa tem insistido numa espécie de paradoxo a propósito de alguns dos seus trabalhos, procurando tornar clara a ideia, para a mesma peça, da diferença na semelhança. De facto, no caso do filme, convivemos com uma situação residual da memória a despertar, na personagem, um comportamento paroxístico cuja fase inicial se enovela, em semelhança, com uma espécie de performance alucinatória em que as imagens resgatadas da memória vêm ganhar semelhança na cena em que a mulher voyeurista acaba por cortar com grande esforço o cabo que a envolve.
No livro, a personagem é acompanhada desde a adolescência, mostrando-se desenquadrada em muitas situações, pacífica noutras, insinuante ou caprichosa ainda, como se o seu meio não fosse mais do que uma porta de entrada para espaços de devaneio, desce cedo de natureza erótica e sexual, uma ideia transgressiva e inconsequente da pintura. Ela casa cedo e é breve no desempenho. Volta a casar, traindo as normas das festas e delírios. Os folhos quase não existem. O seu cordão umbilical não é transformado em corda mas em auto-sequestros e libertações durante viagens. Após o último casamento, ou união de facto, assistimos ao desmoronamento desta mulher, de África para Portugal, entregue ao zelo contingente de outros homens, presa do álcool e de uma inteligência que descobria o impossível e nada propunha para realizar. A solidão vem desvendar essa mulher na indigência; e, como sempre, invejando e amando os outros, já sem a mini-saia de outrora, afeita a opas lineares nas quais escondia a mutação do corpo e talvez da alma, sempre voltaria a vários vinhos consumíveis. Entidade do mundo contemporâneo, moldada um colonialismo disfarçado, destinada ao luxo e à lassidão, esta figura passando por situações abjectas e entregas surdas, pintando coisas absurdas por e saturadas na cor, vai perder a sua própria história: o que fazer da comida seca, que verdade ainda lhe poderá caber por semelhança a todos os difusos vínculos genealógicos?
Os poços de fealdade nesta vida, confrontada com as seduções actuais, é uma beleza lírica apesar de todo o desassossego.
Sousa Carneiro