sábado, setembro 08, 2012
FILOSOFAR TALVEZ COISA NENHUMA, À TARDE
O pastor e o seu amigo de infância, deixando o rebanho a roer o pasto,
decidem caminhar um pouco pela terra da vereda indecisa; mas em breve,
ao encontrarem três grandes pedras arrumadas ao tronco de uma oliveira,
de comum acordo, e sem palavras, sentam-se os dois nesse sítio, aliviando
--se de alguns adereços da marcha e contra o sol. O pastor, que conhece bem
o amigo e gosta de o ouvir falar, a propósito dos estudos, da impropriedade
das escolas, da solidão dos mestres entre tantos moços bravios, olha o perfil
do companheiro e corta o silêncio daquele repouso sem nexo, dizendo num
bafo de som:
Tu és um verdadeiro filósofo.
Não digas isso.
E porquê?
Porque não consta do meu registo civil.
Uma coisa não tem nada a ver com a outra.
Claro que tem. Tem tudo a ver.
A qualificação de filósofo é a ideia que eu faço de ti.
Então não faças.
Mas porquê?
Primeiro porque eu não quero. Depois porque sou filho de um corticeiro.
Os meus estudos não sustentam nem um fio desse estatuto.
Pausa.
Paira no ar um cheiro a laranjas. O outro insiste.Estudaste os teus livros
e os livros dos outros. O teu avô paterno era professor.
Deixa lá o meu avô. Dos livros não sei nada. Mas gosto de alguns versos
do Caeiro, as pedras roladas que ele conhece entre a terra, à beira do
pasto.
O outro julga ter ali o seu primeiro argumento, nem sequer pesado:
Vês? Falas desse gosto como se filosofasses.
Que raio de coisa, amigo. Filosofar não é ser filósofo — e muito menos
verdadeiro.
O outro cala-se, fica pensativo — a filosofar.
Assim estamos bem, aqui sentados. O fresco do entardecer. Este rumor
das folhas em redor, abanadas por uma brisa que só elas sentem.
Ao lado, o pastor esboça um sorriso
As cabras, uma a uma, duas a duas, começam a descer do sítio onde
comeram longamente, esmagando ainda, em saliva, outra saliva ou
baba, que escorre pastosa, indecisamente verde.
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