Fotografia de Rocha de Sousa
Numa velha e melancólica cidade do sul, onde em grandes armazéns se desenvolvia, pujante, a indústria da cortiça, havia, pelos anos 50, um febril palpitar da demografia operária e uma contínua produção de rolhas, de elementos diversos naquele material, além de restos ou aparas que se faziam escoar pelo rio abaixo, em direcção a cargueiros que absorviam os milhares e milhares de fardos, um material que era transformado, no país e fora dele, em pó e logo em placas ditas de corticite, aplicadas aos interiores, em paredes e sobretudo no chão das casas.
Sempre que visitava a cidadezinha, mesmo depois da crise da indústria corticeira e da derrocada pelas chamas de quase todas as grandes fábricas, passeava pelos longos corredores da periferia, olhando os altos muros escurecidos, primeiro a sustentarem ainda telhados e guardando coisas diversas, mas, entre datas, sujos de humidade e musgo, despintados, riscados por rachas onde se acoitavam lagartixas e, no verão, osgas repelentes mas medrosas. Ao longo dos anos fui fotografando as paredes e as janelas em ruína daquela zona da cidade, só hoje mais habitada, com fábricas, depois de longos anos abandonadas, substituídas por construção de todo um imobiliário procurado por gente da cidade (em troca de casa) e de muitos funcionários que vieram de fora e cobriram em parte a desertificação resultante da migração em massa dos operários corticeiros em direcção à margem sul do Tejo.
Agora, no maior daqueles edifícios ainda de pé mas completamente abandonado, o que vejo são paredes imensas, sulcadas por doenças inenarráveis, salpicadas de forma intensa, entre sobreposições a letras sopradas a negro e azul, dermes purulentas de grandes animais sem nome, nem do jurássico nem talvez da própria Terra. Através de planos alargados ou de planos próximos, os registos fotográficos obtidos chegam a alcançar a qualidade da mais genuína e expressionista pintura abstracta -- rugas, restos de pinturas brancas, sanguíneas ou azuis, fendas colossais, imagem como que em plongé interminável de alguma superfície planetária neste universo que nos cerca e que só há uma década nele se descobriram centenas (de uma contagem posterior de biliões) de planetas em sistemas como o nosso, esperança de um dia se notar em tais paragens outras paredes com qualquer coisa como lagartixas, vida legítima, talvez humanoides ou gigantes ainda longe da tecnologia da comunicação por ondas invisíveis, à distância.
Fica aqui o enquadramento de parte de um muro centenário para jogos imaginários de tempos perdidos, de vidas passadas, da acção do tempo e dos homens, talvez uma primeira semelhança com um primeiro planeta rochoso exterior ao sistema solar que nos acolhe por um lapso de tempo irrisório na escala do universo e da sua marcha não se sabe para onde.
Um comentário:
Mestre,
sempre que o leio constato, uma vez mais,que a mente não conhece limites.
E se Foucault visse a imagem que ilustra o texto, acredito que diria qualquer coisa como: «isto não é um muro!».
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