José Cardoso Pires
O DELFIM
Das bocas do mundo corre a ideia de que "O Delfim", obra sem dúvida maior de José Cardoso Pires, o é também «unanimemente», tanto mais que o autor é «considerado um dos maiores escritores portugueses do século XX, numa galeria onde podemos encontrar nomes como José Saramago ou António Lobo Antunes». Fala-se de uma «carreira literária marcada pela inquietação e pela deambulação.» Toma-se em conta que Cardoso Pires escreveu dezoito livros, publicados entre 1949 e 1997. Não sabemos se é tempo demais para tão poucos livros se são muitos livros para quase meio século (48 anos). Não se vê como coerente a inserção da sua obra no neo-realismo: parece um erro de perspectiva, pois o autor, embora também contrário ao regime autoritário português (Salazar), descolou para um combate mais avançado, frequentando os grupos surrealistas, desde o início da década de 40, e foi muito influenciado pela literatura americana (dizem), olhando para a estética de Hemingway, além da narrativa cinematográfica, em prosa e no domínio do cinema ele-mesmo. Daí resulta um português especialmente trabalhado, com discursos curtos e diálogos concisos.
Foi justamente sobre o livro O DELFIM que a televisão apresentou um documentário, no qual importantes figuras da nossa literatura, crítica e edição saudaram as qualidades do livro e do escritor, obra em geral, linguagem medida, bem carpinteirada, onde os adjectivos se escondem e qualquer tonalidade barroca está sempre ausente na modelação austera das frases, das vozes, das palavras. Salientaram as personalidades que a língua portuguesa peca por um enleio barroco, entre «panejamentos» que disfarçam o legível e atrapalham o leitor. Assim, sim: com a régua e o esquadro, sem cair em minimalismos mas amando americanos e caminhos anglo-saxónicos. Por mim, li o Delfim sem atender a isso. Tem lá uns momentos de repetição narrativa que lembra o cinema, o atrasar do tempo, os pressentimentos de certos planos. O pior é que os actores (no filme de Fernando Lopes) debitam as falas muitas vezes como se se lembrassem em demasia do Teatro D. Maria e o próprio realizador tenta conter-se diante do mistério da lagoa e corta aqui e além como se perseguisse o escritor e a sua medida. No cinema, Dreyer espalhou muito disso, mas o romance aqui em causa precisava de mais cheiro e menos compostura, apesar de uma memória aristocrática que o Delfim propriamente dito passeia pelo Cais do Sodré e por uma delinquência demasiado fardada. Mas isso interessa pouco. O filme não é do melhor de Fernando Lopes mas encanta o espectador médio e os lances eróticos gastam poucos adjectivos visuais.
escrita barroca, em português
Deixemos o filme e passemos à indiscutivelmente bem medida escrita de José Cardoso Pires. A escrita não se pode comparar com a dos dois escritores citados à partida. Não porque seja pior. Nem melhor. É preciso é ter conta com o que se diz sobre a língua portuguesa: pode ser belíssima em modo barroco, sem esquecer que os efeitos dos adjectivos está estudado a vários niveis, até na convulsão redundante e em grandes autores de todos os tempos. Andar a esconder adjectivos não tem sentido. Poupar o seu uso para certos fins pode ser um belo caminho. Estas basbaquices modistas fazem mal em certas veredas e caminhos: já ouvi um editor considerar que a obra que tinha sob os seus olhos era belíssima mas não podia arriscar a publicá-la porque era demasiado rebuscada, «já ninguém escreve assim». Ora o que ouvi sobre Cardoso Pires com quem convivi e até trabalhei, não pode servir de referência séria para ninguém. Não são casos de barroquismo nem nada disso. Lobo Antunes o que será? E o Saramago, que prega tão bem os pregos das palavras, e nunca enjeitou o peso delas, os panejamentos, a espera, o tempo espesso, a mistura das palavras faladas com as suas próprias palavras escritas. É uma idiotice? Ou é a liberdade da invenção artística? O cinema influenciou a literatura e vice-versa. O livro «O HOMEM DA CABEÇA RAPADA» tem a sua correspondência genial num filme que o traduz para a imagem como talvez nunca se tenha feito. E agora vêm sábios e jornalistas numa espécie de dever de austeridade na escrita. Então Fellini, no cinema, é pior do que Antonioni? E veja-se como Antonioni fez, com vários inserts barrocos ou rápidos e de grande valor poético, o famoso BLOW-UP. Quem me dera ver «O Delfim» tratado com essa capacidade de viver e dar a ver. Como o próprio Fernando Lopes fez em «Uma Abelha na Chuva». Foi linear como o autor do livro homónimo? Foi e não foi. O cinema tem a sua própria pluralidade, trabalha com o tempo, tempo em si e tempo visual. E é claro que os tais escritores americanos, talvez influenciando a tertúlia do Areeiro, não eram nenhuns avarentos, inimigos de adjectivos, mesmo trabalhando com uma língua estruturalmente despojada. Lembro a força de «As Vinhas da Ira», «A Um Deus Desconhecido», o teatro de Tenessee Williams, o lado antropológico e sociológico de «Morte de Um Caixeiro Viajante» do Miller. E as longas frases de Faulkner, atravessando a paisagem do nosso próprio imaginário.
Vou viajar: até na poesia há coisas impublicáveis para certos editores: lembro-me do quase escondido Herbert Helder. Tudo nele tem medida, mas o sentido da sua poesia, feita de palavras, rompe o sentido da medida ou medida dos adjectivos censurados e da escrita sólida mas amordaçada.
O PIOR DE SE ESTAR MORTO
É QUE SE FICA À MERCÊ
DOS VIVOS
É QUE SE FICA À MERCÊ
DOS VIVOS