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terça-feira, janeiro 13, 2015

DEUSES LAMINARES DEGOLAM MUNDO GLOBAL




os mortos, depois de mortos, 
nem sequer ficam sós


Ninguém sabe se Deus existe e de que morte padece o homem, o crente do nada. As fantasias que tecemos à volta das nossas percepções, a qualquer hora do dia, são apenas um enquadramento do visível a tornar-se real. Tudo é tanto que precisamos baixar a guarda, deixando mergulhar as mãos, a sua prece, a sua espera. Mas as coisas em geral são reanimadas, um jornal aparece na mesa, os dedos enfim tocando na notícia, inquietos, ou daí a pouco voltando essa primeira página, fazendo aparecer a seguinte, quase sempre o olhar a deixar-se seduzir pelo rosto à direita, vendo os bocados da composição.
Hoje podemos fitar longamente aquela fotografia: quatrocentos e cinquenta mil curdos em fuga, atravessando a fronteira da Turquia, deixando atrás de si um rasto de corpos decapitados e crianças esmagadas, cemitério ao sol e sob o brilho das adagas dos islamitas radicais — um Estado absurdo, religiosamente alucinado em pleno século XXI, contra velhas fronteiras, outras etnias, o Ocidente inteiro. As novas tecnologias abriram para todo mundo a realidade em tempo real, as explosões e as ruínas, as guerras em efeito dominó, metade do Iraque em estilhaços, a Síria destruída, o Irão vigilante, a Ucrânia violada por ímpias invasões de rebeldes de carnaval, Putin sorrindo entre as enormes portas douradas que se abrem à sua passagem. A Rússia anexou a Crimeia, acompanhou mais dois roubos de território  a leste. Combate-se por lá, de forma estúpida e logística encerrada em camiões humanitários mandados por Moscovo, filas deles, todos forrados com lona branca. Sem letras. Sem números. Sem nota de origem nem títulos de guarda.
Esta grave crise internacional, ricochete das várias bolas de neve que simbolizam as diversas promiscuidades da globalização, internacionalidades sem fronteiras, transportes de todos os tipos atravancando o espaço das vias, vem rodando a roda dos negócios ou negociatas, roendo o perfil dos princípios e ajudando a sepultar valores, vidas, indústrias, culturas. Tudo o que povoara o mundo nos anos 60, a Europa sobretudo, gente como Sartre, Camus, Huxley, Bergman, Tarkovsky, Antonioni, entre muitos outros, os poetas, os músicos, um solene respeito pelo grande património gerado nas épocas mais longínquas, tudo isso começou a desfazer-se em vagas silhuetas, obras descartáveis, novas tecnologias resvaláveis e sobretudo um abaixamento dos níveis avançados, em excelência, durante quase todo o século XX, desastres rasgando  os caminhos reais do futuro. E agora, à entrada desse futuro, as crises anunciam, cada vez com maior despudor, o insucesso dos grandes projectos e o valor de sustentação vindo das metas superadas pela ciência ou pelas artes. Podemos agora imaginar Picasso substituído através de aleatórios desenhos soprados em tinta pelas bocas de pequenos robots, de forma ocasional ou em telecomando. Tais alternativas, a par dos minimalismos obsessivamente radicais e outros inusitados modos de formar, abrem à criação plástica um verdadeiro universo imensamente tolerante para com o gesto e a mancha, instalações perecíveis, novos mitos, outros génios sem conta, tudo cada vez mais descartável ou preso a grandes cadeias produtivas focadas na indústria das artes, como conservas de raízes, marcas, sinais, coisas intercoláveis, capazes de tornar a variação do espaço habitado uma paisagem infinitamente massificada pelas escolhas do efémero.



    poder e ser sem ver? o futuro o dirá


Nenhuma civilização, desde que a História se tornou ciência, e no momento do seu ponto mais significativo, resistiu ao descontrolo daquelas relações, depois de ser e ter, ver e fazer; todas elas, em tais circunstâncias, após cumes de iluminação, entraram em falência, começando a desistir de grande parte dos seus objectivos, deixando-se seduzir por maneirismos prosaicos e preguiçosos, pensando cada vez menos na conservação das obras ou dos pensamentos fundamentais da sua génese. Foi sempre assim, genericamente, fragmentando-se ou não, desinteressando-se das regras, do sonho e dos seus próprios contextos técnico-artísticos.
Essa terrível sinopse, além de apontar para longas análises e buscas sobre as mais importantes civilizações que nos precederam, corresponde afinal a uma grande parte dos desastres principais acontecidos na idade contemporânea. Desde as guerras mais remotas às duas grandes guerras mundiais do século XX, o desrespeito da entidade humana e dos seus direitos (hoje consagrados mas sem resposta), ultrapassou a medida, mesmo genérica, da vida em comunidade, abrindo processos de retrocesso um pouco por todo o planeta, entre latitudes muito diferentes, com dinheiros assimétricos, quase um século depois de terem sido destruídas em breves segundos, com apenas duas bombas atómicas, duas significativas cidades no Japão, país na altura ainda em guerra com as forças Aliadas, fundamentalmente os Estados Unidos da América.
Mas toda a cultura que se formara e condensara por volta do século XV, no benefício da expansão territorial e oceânica, salpicada das memórias antigas, conjugando tais imagens, tais ideias, tais benefícios do ver e da representação com outros planos de pesquisa e descoberta, atingiria o século XIX num plano de abertura ao planeta, aos utensílios e obras de arte, ou numa espécie de esboço para o que podemos chamar de primeira globalização. Isso fez-se na trajectória da ocupação de mais terras pelos novos impérios, contendas quanto aos direitos de chegada e usufruto, povos locais manietados à crença de um trabalho que lhes era retirado das mãos, rotas comerciais sinalizadas por fortalezas, interesses cruzados ou trocas que provocavam depois importantes circuitos por essa Europa fora, migrações de trabalho ou crença. As catedrais românicas foram passando ao gótico, entre configurações em altura, como se tais agulhas significassem a ligação a Deus e muitos soubessem que a fé católica, dominando as nações, precisava cada vez de maior presença, de maior fascínio, feita da raridade dos efeitos, talvez milagres — enquanto a submissão das massas de camponeses, a par dos artesãos, dos pedreiros, dos afeiçoadores da madeira, da pedra, do ferro, dominava a própria luz solar através de hábeis tratos de refracção pelos vidros de cor justapostos ao jeito das grelhas de chumbo, porventura na ambição de evocar os milagres dos santos representados ou estrelas, rosáceas, o movimento nos olhos de quem se imobilizava em contemplação.
Com o advento das comunicações à distância, por meios virtuais ou perto disso, essa época florescia de complexidade e de forças de tensão entre nações, entre os próprios continentes. Os génios voltaram então a ter nomes ligados à raridade do seu pensar e do seu fazer, pulsando imaginários acima dos generais que se recordassem das legiões de outrora, dos ocupantes e dos escravos que lhes preparavam sulcos de segurança pela terra fora. Agora, vencidas as distâncias marítimas e terrestres, aperfeiçoados os meios de comunicação à distância, tudo se estende em rede; tudo o que nasceu com a revolução industrial,  cujo doloroso parto perante muita da sua rusticidade nos meios mecânicos foi bem dolorosa, apesar da sua rápida abertura aos automatismos, às cadeias de montagem, à invenção de outras necessidades, umas após outras em ordem aos comércios, às trocas em massa. Falava-se em evolução tecnológica, depois de novas correlações, construção urbana, vias férreas e estradas asfaltadas, domínio dos ares, ainda maior que todos os outros quanto à velocidade, as máquinas futuristas, as armas propriamente ditas rondando fronteiras e grandes espaços onde se adensara a população, as classes sociais, a luta de interesses numa vasta competição em que os sonhos da expansão globalizante pareciam ranger políticas de ruptura, sistemas políticos paralelamente diferentes e semelhantes. Os génios modernos, no pensamento das variadas disciplinas do fazer, questionavam também a vida humana, a condição humana, vigiados de perto pelos falcões ávidos de máquinas  militares, incluindo navios de guerra, meios aéreos de velocidade supersónica e mísseis inteligentes. Uma enorme força surda, do alargamento do poder, como durante os dois grandes conflitos mundiais, com dezenas de milhões de mortos, parecendo placas téctónicas em vias de choque. Tudo suspenso  como nos instantes que deverão preceder o apocalipse. Tudo assim, apesar da violência do clima na Terra, o Homem como que subordinado ao efeito de inferno que alienara no espaço, pelos céus, oceanos e recursos de sobrevivência, a esquecer os recursos naturais limpos, não os fósseis e outros de química bem perversa.
Se as tecnologias permitiram cuidar da saúde humana, os lixos que produziam eram veneno, alastrando do ponto de abandono às plantas e aos rios freáticos. Como tal, outros fornos de aquecimento, a obstrução da vida pelas metrópoles cada vez menos modernas pela multiplicação anárquica das obstruções mortais, produzindo nas pessoas em geral dependências recessivas: a arte morria entre décadas, os eventos massificantes, alucinatórios, ocupavam em grandeza e quantidade baldios onde já se habitara a céu aberto, como nas praças e colunatas do século XX. A multidão, representando-se por milhões de desempregados e a depender de sistemas financeiros sofisticados em termos de corrupção, o dinheiro a circular entre esconderijos e brotando nos jardins dos multimilionários que a indústria produzia, ano após ano, respostas a necessidades fúteis, imaginárias, sobretudo como método insensato de levar à decadência (profunda) a todos os excluídos do processo que caracterizava esta outra Idade Média. Não havia castelos feudais mas havia uma nova espécie de feudos. E cidades inteiras meio abandonadas, com milhares de prédios rasgados em altura, por fim vazios ou explorados por alguns vagabundos: assim foi Detroit, entre outras, depois de abrir falência, procurando reagir às ruinas da grandeza através de estranhos créditos a par de pequenos negócios, vendedores passivos, dois dólares por dia, trocas tristes, olhares baços. Nesse lugar, como noutros, a magia cultural descia ao nível do vandalismo, paredes pejadas de graffiti a iludir degradações, vãos abandonados, como se a técnica spray, amplificada, pop ou realista, pudesse apagar todas as grandes memórias, os grandes edifícios, a Renascença e os artistas da sua pintura amplamente consagrada aos valores da religião e aos mitos do espirito. Artesãos e artistas já velhos ou solitários perdiam-se na miniatura da sua produção, apesar do fascínio da ideia milenar que pareciam convocar.




O Médio Oriente incendeia-se numa espécie de Primavera do amanhã, rapidamente confundida por fracturas entre a irmandade muçulmana, os árabes das fortunas do petróleo, os talibãs que matam para que o seu império seja um espaço sem cor, sem artes, cego e surdo, sem nada, mulheres tapadas. Al Quaeda polariza-se em mortes de alguém. Os islamitas radicais querem terra, contradizem Alá e degolam os inimigos vencidos, enquanto a novidade de 2015 já nos conta que crianças de dez anos, cobertas de explosivos que se detonam à distância, desaparecem no horror entre multidões encharcadas de morte e sangue. Falta só clamar pelos novos profetas e crucificar um Cristo virtual.