parte de uma aldeia portuguesa onde morreu há pouco tempo
o seu último habitante
Belíssima e patética imagem, a deste trecho no limite de uma velha aldeia portuguesa, no norte, onde já houve crianças e vida comunitariamente bem resolvida, numa vida feita de essencialidades e de trabalho organizado e partilhado por todos. Foi ficando desabitada, como o próprio país, agarrado fanaticamente ao litoral e às praias em desaparecimento; nesta ilha por fim de pouca gente, restando então um só habitante, que sobrevivia da terra e haveres comprados de quando em quando; um homem de quase 90 anos morreu há cerca de dois meses, segundo julgo saber. Melhor seria que fosse ele o único a ir para o Panteão.
Um amigo meu, dos dias longos, perguntou-me: «O que te leva a matutar tanto nessas coisas, a terra sem gente, a população deslocada, as aldeias mortas?»
Faz tudo parte da mesma coisa: o mundo inteiro, sob o impacto da globalização e das lutas absurdas a par das que matam grandes instituições que fazem consumir inutilidades e amarram os homens à restrição, pelo consumo, dos meios de compra.
«Mas isso não será natural? Muitas civilizações morrerem por si ou acabarem com elas?»
Isso mesmo. Mas não era necessário que tivesse sido assim. O mundo poderia, por uma lógica dos bens e dos consumos, ter-se transformado num oásis de todos. Algumas descobertas foram, desde logo, postas ao serviço da diferença pelo poder, pela divisão entre os povos, logo viradas contra si mesmas. O fogo, o uso da água, o carvão e o petróleo, as invenções produtoras de comodidades alucinatórias e desde logo poluidoras da atmosfera e das espécies vivas -- já em crise, no limite, quando se perceber como os automóveis têm de parar, o sol tem que ser usado, o vento, os mares, na busca (em vias do apocalipse) de travar a morte da vida, toda a vida, quase ao ritmo dos filmes catástrofe que os artistas souberam anunciar, ainda que para gastar mais dinheiro sem pedagogia e alimentar os favores da raiva e das mortandades, cheiro das mortes que avassalam territórios imensos.
«Acho isso tudo um pouco pessimista.»
Não julgues. Pensa. Como combates a transformação arrasadora do clima, um pouco por toda a parte? Ou se te inquietares quando proibirem o uso de carros a gasolina, à escassez da água, à perda de milhões de vidas, entre velhos e por alianças, numa derrocada esquisita do chamado equilíbrio demográfico.
«Isso nem me parece defensável na pior literatura de ficção científica.»
Olha lá: gostas de futebol?Fazem o mesmo ao mesmo tempo.
«Claro que sim.»
E achas justo que todas as televisões do mundo gastem mais de 30% de tempo de emissão para cobrir violentas partidas de futebol, com 70.000 a 100.000 espectadores? Porquê e para quê esse excesso industrial e as corrupções envolvidas?
«Estás a exagerar.»
Quem exagera é o Médio Oriente, Israelitas, Palestinos a quem é negado o seu próprio Estado. E por ali, um novo Estado autoproclamado, o Islâmico, que retorna à antiguidade, pratica os mais brutais assassinatos colectivos, covas ao longo de estradas, inimigos raptados e degolados, levados em vídeo a todo o mundo?
«Os americanos provocaram muitas assimetrias com as guerras no Iraque.»
Pois sim. Ninguém estará impune. Mas os cristãos, há mil anos, empurraram para o sul a civilização árabe, e foram longe, omde eles se acolheram, mouros em massa, para os matar e saquear na onda de fanatismo das Cruzadas. A vingança do Estado Islâmico, mil anos depois, não tem sentido. Nem o modo como se imaginou a Europa de hoje, utopia da solidariedade, e vê o que fazem, o poder e a arrogância dos povos do norte, a tendência, já antiga, do mando germânico, o pecado do dinheiro, a recepção dos emigrantes de África -- aquela que os habitantes nativos diziam: África é dos africanos. Agora fogem dela. Nativos eram todos os nascidos lá duradouramente.
«Não percebo nada do que estás a dizer. O que te leva a dizer essas coisas?»
A situação por que passa o planeta, o cheiro da morte. Pouca gente sente porque quase toda a gente se deixa seduzir pelo consumo, pelos jogos de "vanitas", pela cultura de massas, tudo o que vai afundando o que foi, até há décadas, a grandeza do espírito humano.
«Andas a ver muitas histórias.»
Não vejo histórias, nem quase nada, porque a comunicação visual está conspurcada. Telemóveis, encerrados como armazéns tablets, computadores, colossais cadeias de televisão. Televisão que suspende um conteúdo de vinte minutos para emitir durante trinta chispas de publicidade ruidosa, intolerável, proibida -- e o pior é que todos os canais das várias emissoras fazem exactamente o mesmo, ao segundo. Esta cartelização, durante 24 horas, é crime reconhecido e ninguém faz nada: chega a haver mais tempo de publicidade do que tempo de conteúdos, os quais, por sua vez, deixam muito a desejar. Chama-se a isto delapidar a consciência, a razão, e a capacidade criativa dos sentidos. E é o que acontece um pouco por toda a parte: as cidades são mais lixo, luxúria de inutilidades modistas, má arquitectura e maus espaços colectivos, hipermercados que caiem com um sopro de vento, desmantelados pelo interior da origem dos seus produtos e jogos de dinheiro. Tudo se perde assim, entre barbas de séculos anteriores e ganga, muita ganga, calções, pernas das primaveras a fingir, sem transportes, sem equilíbrio dos ruídos, sem cinema; ou com cinema de caixa, onde meninas de calções e sapatilhas comiam pipocas sem parar, imunes ao barulho imenso com que os projeccionistas bombardeavam belos filmes. Os Cinemas de centros comerciais e coisas assim deviam ser destruídos ou fechados. Se se respeitam as igrejas e outros templos, porque razão a sociedade banaliza e conspurca os locais onde se contempla a arte, todas as artes, vendo, ouvindo, conversando. E já é tempo de se combater o "Desacordo" ortográfico com que se está a destruir a língua portuguesa, tão falada pelo mundo.
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