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quarta-feira, junho 10, 2015

A LUZ DESACONTECE NAS CABEÇAS HUMANAS


Já nem é preciso falar de Portugal: a velha e sonsa Europa, sobretudo a do Norte, não sabe de História, nem de geografia, nem do sítio onde tem o rosto, aqui mesmo, no nosso país, os olhos fixando o grande oceano que outrora atravessou em vários sentidos. Arranjaram quem nos apertasse nesta União com tratados empedernidos, poderes enviesados, uma austeridade que não é espartana, nada disso, é sobretudo vampírica, egoista, todos de costas voltadas na mentira dos dias e dos anos, a finança a mandar nos deuses e Sísifo condenado ao transporte da grande pedra -- um destino, a alucinação e o non sense de um futuro manietado para nada, a parede amanhã, ou seja, os espaços sem fim que nunca poderemos percorrer.
Há dias, consciente do meu corpo envelhecido, quase inerte, deixei-me apanhar pela televisão. Pensei: vou ver. Olhei mas quase não vi nada. Estavam a dar publicidade, em vertigem da imagem e do som, coisas curtas, salvações, benefícios obviamente falsos, produtos gananciosos, e carros, muitos carros, vícios consumistas, conduzidos por belas mulheres ou medusas encantatórias, os cabelos feitos de serpentes coleantes, cegando tudo em volta. Revoltei-me, senti medo e nojo, mudei de canal: também havia um carro parecido com as naves de Flash Gordon. Uma mulher incandescente deslocava-se pendurada dessa máquina, tudo suspenso no espaço"interstelar". O «carro-nave», assim anunciado, rugia acima da  capacidade humana; e eu achei, mais uma vez, que a pornografia também se pode imaginar assim, pelo que resolvi procurar outro canal: o ecrã estava negro e logo apareceu um ponto vermelho ao centro, aumentando de escala, acompanhado por um som estridente insuportável, alcançando uma forma azul circular, sobre a qual, então à escala de toda a janela do televisor, se iniciou a propaganda para incidentes de incapacidade eréctil. Olhei para o comando e pressionei um vulgar canal de serviço público (como lhe chamam): lá estava uma rapariga contorcionista, em cores de Alice no País das Maravilhas, a depelar electricamente certos excessos como pó de Talco, enquanto a câmara circulava do pé à coxa e um homem susurrava... não se esqueça, apenas uma hora antes do acto sexual. Desta vez não decidi nada: deixei o olhar pendurado no ecrã, pensando vagamente que daí a pouco esta proibitiva cartelização dos anúncios em todos os canais, coincidência arrogante e humilhante da mesma acção e até com critérios semelhantes no tempo ou na forma. Não sabia o que vinha a seguir, mas sempre imaginei que poderia ser o noticiário ou a primeira novela da noite. Mas não era assim. Este intervalo publicitário em todo o espaço televisivo português (teriam as populações do norte europeu razão?)



Se as pessoas aguentavam este massacre ao longo da noite, esperando eventualmente o início de um novo programa (e sem protestar por telefone ou por tribunal, evocando possíveis leis aplicadas à comunicação social), então toda a gente desacendia a sua luz dos olhos ou da própria consciência.
Apesar de tudo, fiquei à espera. No canal em que estava sintonizado, a publicidade continuava com toda a sua agitação num tempo irreal, exactamente a par dos outros canais e até subcanais. E de súbito apareceu o título de uma novela. Não começou logo: foi  preciso anunciar primeiro os negócios ou produtos que davam apoio «À PRODUÇÃO». Fui atacado de ansiedade, parti um copo antes de conseguir beber água e deixei-me ser atacado pelo genérico (péssimo) da tal novela, qualquer coisa no género de «ÁGUA SALGADA». Encostei-me. Semi-cerrei os olhos. Os actores funcionavam razoavelmente, a fotografia parecia-me bem, mas a banda sonora encarniçava-se contra mim, tornando-se notada em todas as sequências, e até cenas, mas esteticamente (pela natureza das músicas usadas) canções esganiçadas, a contar a história da história visível, comendo o ruído local, matando os esperados silêncios num olhar demorado em espanto, por exemplo. Lembro-me desta mistela feita pelos brasileiros. Mas nós temos uma cultura e uma aprendizagem próprias.
Fui à cozinha buscar outro copo. Comi, de passagem, uma fruta e voltei para a sala. Peguei no jornal. Li "o caso da pulseira do Sócrates". Espiolhei a tragédia da Grécia, com aqueles homens rígidos negando tudo, apertando, ameaçando em surdina (imaginei) que os gajos estavam a pedir uma saída da zona euro. Por causa da palavra lembrei-me do filme  "Stalker" e da famosa «Zona» de eventuais mistérios da tirania dos homens e de Deus.
Na televisão continuava a novela. A família não se entendia. Uma rapariga viera do Dubai saber da filha roubada à nascença. Encontrava, não econtrava. Impingiram-lhe uma a fingir. Depois foi o horror de tal pecado... não sei bem, porque talbém havia um filho roubado, morto havia já dezasseis anos, talvez não, uma troca de meninos, o filho da moça ainda estaria vivo, era preciso procurar. E procurar com gente vil, com quem ela já separara as águas, e assim por diante, os maus, os bons, uma salsada de argumento, a passar diante do nosso pasmo, perto de uma hora -- e sem cortes de publicidade!!!!
Mas a lógica não tem aqui cabimento, talvez uma ponta cínica de estratégia. Depois de mais vinte minutos de propagandas e dietas e carros, outra novela. Fui à procura de notícias: Só havia mesas cheias de marretas a discutir futebol. Futebol que concorre com a publicidade. Nunca houve tanto futebol e suas intrigas como o que acontece agora nos canais televisivos portugueses, desacendendo a luz da cabeça e do bom senso. 
Mais tarde, o canal que me puxara pela adrenalina apareceu com uma novela brasileira, a terceira da noite. Era um exercício curioso, com um argumento meio sério, meio comédia, a lembrar a literatura fantástica sul-americana.  Um pouco a medo, segui  o episódio em curso, atendi a certos estímulos, mas, após cinco minutos depois do começo, um corte de publicidade. Berrei. Dez minutos depois, a ficção brasileira voltou. Não era erro de edição. Era a inteligência e a ganância da equipa sei lá de quem. Peguei outra vez na belíssima interpretação da personagem principal. Estava a seguir, com curiosidade, como ele agia e como eles moviam os meios. Corte. Publicidade outra vez. Fui à casa de banho molhar os olhos. Voltei: todos os canais estavam enleados na publicidade. Levantei-me, a caminho do quarto. à saída da sala, os brasileiros entraram em campo. Se calhar (pensei) isto agora tem a temporalidade capaz de respeitar os blocos sequenciais e os racords até aos pontos inamovíveis.
Pois enganei-me. Durou tudo muito pouco e a publicidade passou a fazer-se em ordem a cenas das várias novelas e dos próximos episódios.
Eu acho que é preciso legislar sobre estas coisas. Meter um director de programas em prisão preventiva, por exemplo.

     Desacendem a luz em todos os planos da realidade nacional, é preciso chamar a polícia e elevar à condição do século XXI as coisas da arte e do saber.