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segunda-feira, fevereiro 18, 2008

PARAISO INFECTADO POR VIS ARMADILHAS


As cores não servem apenas para dar vida às mais variadas coisas, fazendo parte da realidade que concretiza todas as envolvências do nosso ser. As cores, projectadas de resto pelas diferentes matérias, em função da luz que incide sobre elas, qualificam também muitos dos nossos apelos sensíveis, entre a dinâmica das percepções e a pessoal quaflidade do gosto. Entram assim na determinação dos actos expressivos, ordena diversas escritas, caracteriza a eventual natureza das intencionalidades aí inscritas.
Aqui, a fotografia inical reproduz uma pintura conotada com os fatos camuflados dos soldados um pouco por toda a parte. O obra, construída por simbiose de tintas e colagens, aparece em cima, em primeiro ligar ou ponto de partida, sem optar pela representação modelada de corpos, nem pela explicação visual do que pode ser um campo cirúrgico, a intricada mistura de instrumentos e vasos sanguíneos, instante do qual, pelas mãos humanas, depende a vida ou a morte de algum paciente. Ferido, anestesiado ou comático, da massa de corpos emerge este sopro de respiração, esta indicação do obscuro sentido das coisas em estado limite. Em baixo, numa transformação metafórica, o lado profundo do subconsciente é sugerido como uma espécie de outra dimensão, no sono, no sonho ou no espaço da morte.
Ao realizar este exercício plástico, porventura indiciador de leituras contraditórias ou inter-relacionadas, estive sempre a lembrar-me dos últimos acontecimentos verificados em Timor, outros tempos desse território, as mortes e a repressão provocadas pela ocupação indonésia, as esperanças quase perdidas na distância paradisíaca das montanhas. Quando estive em Angola, no início da guerra, um familiar meu foi mobilizado para Timor, trabalhando como médico militar e enquadrado no escasso destacamento que Portugal se viu na contingência de enviar para aquelas paragens. Anos depois, no conforto das nossas casas, lembrando melancólicamente paisagens e pessoas de tais lugares, o meu cunhado falava devagar, como se tudo estivesse gravado em câmara lenta na sua memória, sobre aquela terra de uma beleza inenarrável, sobre aquela gente que dedicava aos portugueses uma amizade instintiva, que se prolongava no espaço e no tempo. Era uma gente tão portuguesa como timorense, sabia distinguir e juntar essas condições, irmanava-se no modo generoso de ser. Mas em 75 o elo partiu-se, apesar das forças portuguesas contornarem o problema, abrindo espaço a irmãos de súbito desavindos, criando vazios onde o poder se dissolveu e certas diferenças (obscuras) provocaram mortes absurdas, não por lutas anticoloniais, onde nem sequer a colonização teve rosto digno desse nome, mas por um domínio cuja natureza sempre negou a verdadeira natureza do território.
Todos sabemos o resto da história, a história oficial, até à sangrenta intervenção da Indonésia, o massacre de Dili, a resistência fragilizada, o despoletamento de situações que vieram apelar à ajuda internacional e à independência da antiga colónia portuguesa. O paraiso parecia recuperado, apesar de todas as dificuldades, e o manejo dos golpes vis, indeterminados, fez desabar a verdadeira paz, a solidez das instituições.
Há dias, o Presidente da República Timorense, a par do Primeiro Ministro, foram alvos de um golpe armado, sem marca, sem programa, sem alma, do qual resultaram mortos e ferimentos quase fatais em Ramos Horta. Depois de se juntar tudo isto e muito do que foi sendo a história desde a guerra civil, o domínio da Indonésia, os dissidentes pós independência, foi possível mobilizar a intervenção apoiada na ONU, por australianos e portuguses, entre outros. Apesar disso, os acontecimentos perderam dia a dia visibilidade, consistência, o rascunho de um nome. As armadilhas, ao chegaram a este ponto, têm raizes que não são apenas de natureza social, nem mesmo de natureza político-militar. A falta de prontidão das tropas, os consentimentos relativamente a grupos aqui e além, a falta de uma limpeza estratégica e moralizante, tudo isso, afinal, a que se deve? Talvez nunca se saiba a verdade sobre os monstros que contaminam a realidade daquele país emergente e a Austrália é suficentemente grande e forte para não desejar facilitar a criação ali, para si, de um reserva cuja ancestral cultura deveria ser preservada de tantas fomes predadoras, dos neo-colonialismos de língua inglesa, astutos mas destituídos de legitimidade. Em Timor, um esforço humanitário e educativo, em fresca liberdade e segundo direitos antropológicos, os estudiosos poderiam trabalhar em profundidade, sem tigres de metal subindo os areais e cosmopolitizando os distúrbios.

ensaios pictóricos de rocha de sousa

Um comentário:

jawaa disse...

Timor, outro sonho desfeito.
Diz bem dos neocolonialismos de língua inglesa, interessados em apagar laços de amor, olhos fixos no ouro negro que a presa traz no ventre.
Ai que tanto ainda precisa(va)m de nós!