Páginas

sexta-feira, julho 04, 2008

GRANDES AMPUTAÇÕES DA GUERRA INÚTIL

ferida irreparável



O feiticeiro agarra uma criança pelas pernas, gira o corpo no ar, em movimendo de hélice, e larga de súbito o pequeno ser que se esborracha na parede da casa destelhada. As galinhas fogem, espavoridas, deixam penas por aqui e por ali, e os gurreiros saltam e gritam e arrebatam mais crianças das mães encurraladas. Há cabeças cortadas, rolando fofo no capim, e outros meninos a berrar como porcos na matança até quebrarem os crânios contra as paredes onde os esguichos de sangue começam a escorrer na vertical, em fios mais ou menos finos. As mães que podem fugir, depois de perdidos os filhos, ficam ajoelhadas, numa estridência de gritos, e os homens vendem a sua pele o mais caro possível. Alguns conseguem furar a barriga dos guerreiros, soltar- lhes as tripas, mas são logo dobrados para o chão à paulada e castrados com catanas. Uns negros muito negros rastejam na periferia das cenas, riem (satânicos) e juntam troncos que espetam no chão. E os guerreiros pintados, emplumados, gritam gritos de guerra, agitam no ar as cabeças degoladas, os sexos amputados, vindo ornamentar com esses despojos aquela espécie de paliçada erguida pelos seus companheiros. Estes arrumam tudo um pouco melhor, atafulhando as bocas das cabeças com os pénis grandes e moles. Os tiros estalam lá mais adiante, fora das casas destruídas, são festa e foguetes a fingir, a ordem do caos, um calor abafado em volta. Sobram crianças mal mortas e há fetos secando fora dos úteros esfaqueados, grandes poças de sangue, panos, tufos de capim e clareiras de areia cor de laranja, pássaros negros rodando muito alto, no céu cor de chumbo.
_______________________________________

Pequeno excerto o livro «Angola 61, crónica de guerra» obra publicado em 1999, pela editora Contexto, «uma crónica de guerra ou a visiblidade da última deriva». Livro que descreve toda uma realidade acontecida de facto no teatro de operações na zona dos Dembos, embora explorando a plasticidade do cenário, literariamente, e fornecendo coerência «fílmica» aos grandes movimentos, paisagem e personagens.

3 comentários:

Anônimo disse...

Nice blog. Thats all.

Anônimo disse...

Thanks to the owner of this blog. Ive enjoyed reading this topic.

Miguel Baganha disse...

Este excerto funciona como um aperitivo sensorial, preparando o nosso paladar para a degustação dum livro apetitoso mas que pressupõe uma difícil digestão.
Porém, parece-me que a sua confecção é requintada, com um elevado teor descritivo e bem condimentado pelos horrores picantes dessa guerra inútil mas que apesar disso, deixa-nos pressentir um travo adocicado. Um género de "mel poético" que se situa por debaixo da película ácida da tragédia.

Não vejo a hora de me deliciar com este "prato agri-doce", João.

Um abraço, até já...


Miguel