Eu era menino, já formava palavras e fazia contas. Foi há muito tempo, sem brinquedos nem prendas soberbas, a casa velha e fria, uma avó santa que me ajudava nas pequenas redacções e me oferecia, quando regressava de Aljezur, caixas com regimentos inteiros de soldadinhos de chumbo. Chamava-se Angélica, a avó, e fazia lindas rendas em crochet, costurava camisas e vestidos singelos de senhora. Cozinhava petiscos de galinha do campo e por vezes mandava ao forno público tabuleiros de folares. Em certos dias, quando não falava e nos dirigia olhares saudosos, era fácil perceber que tipo de sentimentos a povoavam e as saudades adiantadas para depois da morte. Tinha 90 anos e uma saúde de ferro. Escapara à pneumónica e tivera seis filhas.
O meu padrinho era um senhor farmaceutico, que emigrara para França e lá casara com uma senhora de boas famílias, madame Renée, que ainda conheci largos anos depois da guerra. Tinha um flho da minha idade e acabara por ser igualmente minha madrinha.
Quase no fim da guerra, o meu padrinho veio a Portugal para se tratar de uma doença dos pulmões e trouxe-me duas ofertas de sonho: um carro descapotável, pequeno, que andava a corda e no qual podíamos rodar o volante, mudando a direcção das rodas, e ainda um relógio de pulso, à prova de água, com ponteiros luminosos, segundo creio de muito boa marca.
Foi rápida a minha adaptação ao automóvel, em metal e com rodas de borracha, um luxo que nunca vira nas feiras onde só havia tralha de lata, de madeira e arame, coisas pitorescas mas que sucumbiam junto do meu peugot. Os meus dedos finos, de criança, manejavam o volante com facilidade e em bom acompanhamento de marcha.
O relógio, lindíssimo, grande de mais para a minha idade, é que era o pior. Pior porque eu não sabia ver as horas e não queria revelar a ninguém essa falha. Nem sequer me ocorria pedir a um dos amigos do meu pai, na Havaneza, que me ensinasse. Isso não seria estranho, pensava eu, tanto pela minha idade, como pela minha relação com a pessoa, o senhor Costa. Mas tive vergonha, de uma timidez congénita, e fiquei sem poder usar o relógio, embora o visitasse muita vez e lhe tivesse dado corda.
Eu ouvia as pessoas falarem das horas: «Maria? Que horas são?» E a voz dela, lá do fundo: «São dez e trinta e cinco». Depois percebi, quando a avó alimentava de corda o seu velho relógio de parede, acertando logo as horas, que o ponteiro mais pequeno correspondia aos números, aos doze números, o sinal das horas, sendo o maior um instrumento das tais partes ou minutos. Cada vez, neste jogo de espionagem, sabia mais sobre o funcionamento dos relógios e a marcação das horas.
Um dia, estava a minha avó a fazer a cama, perguntei-lhe: «Vó? Que horas são no seu relógio? Não vejo bem daqui.» E ela: «Pois claro, filho, és tão pequeno. São nove e dez». «Ah, está bem». E logo corri para o meu quarto com o intuito de colocar os ponteiros do meu relógio na posição em que vira os dela. Depois fui espreitando o andamento dos relógios. Por volta das cinco da tarde, decidido a aprender a ler as horas, meti-me na casa de banho e com um papel apontei aquele famoso «nove e dez». Percebi depressa que poderia, logo a seguir áquela hora, haver uma outra, no caso das dez. Se o ponteiro pequeno fosse colocado nas dez e o grande na posição das nove e dez, o resultado só podia ser «dez e dez». A partir daí começei a fazer experiências diferentes, rinventando o tempo que os outros apregoavam durante o dia. Eram seis horas quando descobri tudo, com uma alegria interior brutal. Quase a tremer, rodei o meu ponteiro das horas para as seis; e o maior para o número três. Segundo a minha descoberta seriam seis horas e 15. Corri para o corredor, onde a minha avó se sentava e vigiava o seu próprio quarto, mas, para disfarçar, desandei para o quintal. Um pouco depois clamei: «Vó?» E ela: «O que é, menino?» E eu:«Que horas são no seu relógio?» Ela inclinou-se para ver e disse: «São seis e vinte». Estremeci. Esperei. Acrescentei cinco aos 15, porque o seis já eu lobrigara do corredor. Fui, enfim, com ar distraído e sonso olhar a renda da avó e, logo que me foi possível pôr a jeito, olhei para o relógio dela: os velhos e rendados ponteiros estavam na posição dos meus: seis e vinte e quatro.
Nesse dia, até à noite, andei pela rua e pelo café a perguntar as horas. Quando mas diziam, eu pensava. O ponteiro pequeno está nas sete e o grando está nos 30, que eles chamam de meia hora.
E assim, longamente, tudo foi batendo certo. Não esperei por mais idade para colocar o relógio. De manhã coloquei-o no pulso, antes de ir para a Escola, e quando parti eram sete e trinta e cinco: sete horas e trinta e cinco minutos.
Rocha de Sousa
Um comentário:
Neste momento, o meu relógio marca o tempo de:16:06.
Sinto que essas recordações de infância não se atrasaram um só segundo na sua memória.
Agora são: 16:07...
Gostei deste breve regresso ao passado, João.
Um abração,
Miguel
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